O outro mundo foi uma descoberta platónica.
A noção de amor com o significado de verdade pode ser encontrada também em Platão (429- 347 a. C.). Pela primeira vez, o conhecimento teve um alcance erótico. O espírito faria parte da Natureza que se digladiaria entre ordem e caos.
Em A República, Platão propôs-se agarrar a essência das coisas, precisamente pedindo ajuda à mente, «semelhante à realidade que se aproxima dela e se une com ela». No original «unir» significa syneimi, ou seja, «relação sexual» (1).
Em O Simpósio ou O Banquete (2) integrado em A República e outros Textos, ainda Platão se refere ao modo como a mente também se abstrai do corpo mortal, por recurso à ideia de Eros («amor sexual»). Mas, nessa comparação, Eros é entendido como «amor não físico», em que dois amantes se contemplam e se reflectem, projectando-se nas suas imagens, uma e outra vez… Nessa recorrente situação não sexual - imagine-se - a mente pode projectar a verdade do amor, por conflito e/ou por enigma, ampliando-se a «sublimação» (3) e a «resistência» (4) freudianas.
Freud (1856-1939) ainda foi quem reparou que a noção de sermos basicamente bissexuais decorre de textos hindus anteriores ao Simpósio em que os Deuses são hermafroditas e diz-se, provavelmente, Platão não terá sentido a «certeza» da sua identidade sexual (5).
Foi na referida obra de Platão que se apoiou a prática de pederastia (6), ou seja, a prática de relação sexual entre um homem e um rapaz.
Mais globalmente, O Simpósio retrata o entendimento do amor avalizado pelo mestre de Platão, Sócrates, entretanto falecido (7). O cenário é a casa de Agatão, um poeta dramático e anfitrião do célebre festim/simpósio em que os convivas, todos homens, ficaram a conversar até altas horas da noite.
As personagens do «ensaio filosófico» sobre a origem, natureza e significado/verdade do amor são destacadas figuras do meio ateniense: Sócrates, Aristófanes, o reconhecido comediógrafo de As Nuvens (8) e Alcibíades, um autêntico aristocrata, com qualidades e defeitos extremos, ambicioso e bonito general.
Vingou a posição de Aristófanes para os tempos vindouros: ambicionamos ser-com-outro(s), o que nem sempre se realiza.
O velho Sócrates ainda poderia ter argumentado a pertinência de uma concepção de amor etéreo, duradouro, quase perfeito e, na realidade quotidiana, improvável.
Aristófanes colocava, em alternativa, a origem do amor em termos alegóricos, mas autênticos – verdadeiros: ambicionamos ser-com-outro(s).
Nessa alegoria, o amor é colocado no tempo remoto em que os seres eram moldados com quatro braços, quatro pernas, duas caras e um corpo. Essa é a alegoria verosímil se pensarmos que queremos ser unos e a comprová-lo passa-se a expor a estória de O Simpósio:
Os primeiros entes humanos eram fruto da obra de Deuses jovens e eternamente belos. Foram, assim mesmo, construídos de forma diversa dos seus criadores: redondos, completos e integrais. Mas tinham duas caras... Foi quanto bastou, aliás, para que as divindades temessem ser passados para «uma segunda classe de seres», a partir do poder de controlo próprio e, por tal facto mesquinho, os Deuses cortaram os primeiros seres ao meio. Cada ser humano passou a possuir uma só cara e pares de membros robustos.
A revolta não se fez esperar mas, como seria de prever, fracassou. O prognóstico estava correcto. Era preciso mais do que duas metades idênticas, mesmo multiplicadas, para se haverem com os Deuses. Ainda assim, os novos seres «humanos» andavam melhor, corriam e saltavam a dois pés.
Insurgirem-se por serem unos levá-los-ia, por fim, ao júbilo pelo sorriso decorrente da nova vida alcançada, levada com alegria e ligeireza; mas a inquietude mais profunda assustou-os de novo: comuns mortais, eram caras e metades incompletas.
Assim remodelados, alguns esforçar-se-iam (ou não) e encontrariam a sua cara-metade; outros, infelizes, errariam no mundo sem eira nem beira. Quem sabe se os primeiros, mais sociáveis e afáveis, teriam a seu favor a sorte...
Mas Aristófanes viria a concluir existirem pessoas feitas umas para as outras, mas também que esse seria um anseio profundo de comunhão com o próximo, por dever cósmico (9) . E o mestre da comédia esclareceu, em palavras insuspeitas, traduzidas da seguinte maneira (10):
«Ninguém pode acreditar que é o mero prazer físico (Eros) que leva uma pessoa a sentir um prazer tão intenso na companhia de outra. É claro que a alma de cada uma delas tem outro anseio que não é capaz de exprimir, mas que apenas pode imaginar e a que só é capaz de referir-se de uma forma vaga. Imaginemos que Hefesto, com as suas ferramentas, as visitava quando se encontravam deitadas lado a lado e, erguendo-se acima delas, lhes perguntava: o que esperais vós, mortais, lucrar um com o outro? Imaginemos ainda que, se eles não conseguissem responder, ele repetiria a pergunta nestes termos: o objecto do vosso desejo é estarem sempre o mais possível perto um do outro e não se separarem nunca nem de dia nem de noite? Se é isso que quereis, estou disposto a fundir-vos e a soldar-vos para que em vez de dois passeis a ser um só corpo; enquanto viverdes tereis uma vida comum e quando morrerdes tereis uma morte comum e continuareis a ser um só, e não dois, no outro mundo. Contentar-vos-ia tal destino e satisfaria ele os vossos anseios? Sabemos qual seria a resposta; ninguém recusaria a proposta; ficaria claro que é isso que toda a gente deseja, e todos considerariam essa a expressão exacta do desejo que há muito sentiam, mas que não tinham sido capazes de exprimir: poderem fundir-se com o seu amado e serem, depois, um único ser e não dois.» (Platão, trad. ingl. de W. Hamilton, 1951).
Importa dizer que o grego Hefesto era o venerado «Deus do Fogo e da Forja», constando-se que ele podia fazer quase tudo.
Em suma, e a atender à versão do amor platónico, esta coaduna-se com o nosso viver: o amor não é infindável, ainda que queiramos ter uma alma gémea. E o amor não é perfeito por iniciativa dos próprios Deuses.