Judite Maria Zamith Cruz

PSICOLOGIA DO AMOR ROMÂNTICO - II
O prodígio das histórias de amor na transformação humana

INDEX

3.1. A descoberta do amor por Eros e Psyche : o valor da metáfora

Neste texto começar-se-á, por conseguinte, por dar relevo ao belo mito histórico de Eros e Psyque , com o intuito de observar a transmutação de sentimentos no amor sexual. Assumido o amor, transfigura-se em ódio e castigo, ciúme e «magia maligna», culpa e reparação de culpa .

A estória perpétua sente-se a partir de uma escultura também muito bela e da qual se conta uma narrativa mitológica representada por António Canova (1787-1793) - Cupido e Psyque - figura nº 2.

Cupido foi assumido como o Deus grego Eros, símbolo do desejo sexual – a libido freudiana.

Na figura inicia-se assim uma estória com um possível momento-chave do enredo desse amor:

De asas ainda entreabertas, Eros desceu à terra, em certo dia de vento forte, para trazer de volta à vida, com um terno abraço, a sua agonizante amante, muito amada, Psyque...

O termo psyque significa «alma» no mito romano de paixão juvenil e é conotado com pureza e inocência. No seu amor por Eros, a menina Psyque preserva a ideia de uma relação amorosa casta, com ausência (ou não) de relação sexual.

Escrito pelo latino Apuleio, no século II, que pensava que os demónios transformavam os seres humanos em animais (1), esse amor foi registado em Metamorfoses e ficou conhecido por O Asno de Ouro - um príncipe transforma-se em burro.

O mito reporta-se, portanto, a uma metamorfose, ou seja, a uma forma de iniciação, causa dessa transformação (de sentimentos).

No mito mais extenso, digamos que Cupido é um Deus semelhante aos animais-noivos dos contos de fadas para crianças e ficou invisível para Psyque. Na versão indo-europeia, trata-se do mito da busca do marido perdido ou do animal-noivo (2). Na tradição oral italiana, duas das cerca de sessenta versões do mito são, por exemplo, A Bela e o Monstro e O Touro Negro de Norroway (3).

A crença de que o amor busca o espírito (Psyque) e não o corpo, pode ser ainda observada, como se disse, para essa alegoria (4). Em certo passo da narrativa, Psique é desviada pelas irmãs, podendo pensar-se, aliás, que o sexo «é uma enorme serpente, mil vezes enroscada».

No longo relato seguinte, retrata-se a luta contra o sexo interdito por irmãs borralheiras:

A história de Psyque começou há muito, muito tempo, quando um rei e uma rainha tiveram três filhas. Não ficaram escritos os nomes dos reis. É uma história muito antiga.

Uma das filhas, Psyque, possuía uma extraordinária beleza, pelo que a grega Afrodite (Vénus, Deusa romana do amor) ficou ciumenta, mandando o seu filho – o próprio Eros - castigar Psyque, fazendo-a apaixonar-se por um homem abominável. Podia ser Hulk – o homem verde ou o homem das cavernas. Poderia ser indiferente quem ele fosse, se somente nos cingíssemos a um tema essencial: ciúme e «magia maligna».

Perante tamanha desgraça, os pais de Psyque consultaram o Oráculo de Apolo, em Mileto – Ásia Menor, perto do mar Egeu.

O oráculo «disse» que Psyque teria de ser colocada, vestida de noiva, no cimo de uma colina, para ali ser a presa de um monstro parecido com uma serpente – um seu admirador oculto.

Uma serpente é sinal da terra e do submundo (inconsciente), mas a esse lugar não é feita referência no mito. Freud, que bem conhecia o mito, também viu nela outro sinal: fálico.

Na comunidade local, ficou decidido atirar a rapariga para um monte. O destino estava traçado. Perante uma sina tão atroz, ela foi conduzida numa procissão fúnebre, pronta para ser enterrada viva. Mas um vento suave, vindo de Oeste - o Deus Zéfiro, transportou-a quando menos se esperava pela colina abaixo, depositando-a num palácio vazio (de Eros) onde todos os seus desejos seriam satisfeitos. Podia pedir o que quisesse que logo ali se realizaria a sua vontade. Podia pedir tudo, menos para fugir.

O monstro (Eros) somente lhe apareceria de noite, ao deitar.

Ele avisou-a de que não tentasse vê-lo à luz do dia. Porquê? Porque, nessa circunstância, um futuro filho de ambos perderia a imortalidade divina do pai.

Mas ela estava grávida!

No palácio abandonada, Eros conservou Psyque fechada como sua amada. Estava, para todos os efeitos, presa, encurralada.

Uma bela manhã de Sol, l amentando a situação em que ela se encontrava, há já longo tempo em isolamento total, Eros permitiu que as irmãs a visitassem. Uma infeliz ideia, convenhamos.

As irmãs alcoviteiras disseram a Psyque que ele era uma «enorme serpente, mil vezes enroscada». Elas convencem-na, inclusive, a cortar a cabeça a Eros com uma faca mas, quando o ia matar, Psyque viu-o transformar-se, naquele lugar de traição, em um lindo príncipe.

Entretanto, Eros acordava com um pingo de cera que lhe caiu da lamparina por ela transportada, diligente.

Furibundo e arrasado, ele foi embora. Abandonou-a, pura e simplesmente. Nem quis saber que Psyque só tinha iluminado a sua cara com um pequeno espelho (para ver se era um monstro) e que transportava uma minúscula lamparina.

Mas a lamparina era para o ver melhor? Não. Era para o matar, claro, com luz suficiente, vendo-o, olhos nos olhos. O que aconteceu foi, mais exactamente, que um pingo de cera caiu no ombro do belo jovem sem lhe desfazer a cara. Perante tamanho desaforo, Psyque ainda tentou suicidar-se, mas foi novamente salva – o Deus proibiu-a de se matar.

era filho de um bode, transfiguração do Deus Hermes para seduzir a sua mãe, uma ninfa desconhecida (Dríope). Psyque, tão bonita, não se devia matar.

Pense-se que ele também era filho do «Deus dos Rebanhos» (Hermes) e não se queixava da sua magra sorte – ele próprio era a personificação da Natureza. tinha sofrido, mas a sua estrela bafejara-o de bem-aventurança no final da tormenta. Tocava sempre a sua flauta pastoril que inventara para alegrar as festas em que acompanhava o grande Deus Baco (romano). Ela estava impedida de se suicidar!

É nessa fase da trama arrastada que se inicia a busca do marido perdido. Desde então, Psyque passaria a procurar Eros.

Ao longo dessa busca inglória, ela viveu muitas provações, habitando «o mundo dos criminosos». Na sua primeira tarefa de iniciação, bem árdua, teve que separar cereais misturados. Contudo, obteve a ajuda preciosa de formiguinhas que iam a passar, diligentes. Elas foram, como seria de esperar, muito trabalhadoras. Por fim, Psyque teve que pedir o estojo de beleza à Deusa dos Infernos. A sua última tarefa - mais uma tarefa (im)possível – conduziu-a a um sono profundo, semelhante ao sono da morte. Porquê? Porque abriu o estojo de beleza, tendo sido desaconselhada a fazê-lo por uma Torre Mágica.

Eros estaria saturado por tanta insistência? Ele acabava, somente então, por pedir ao Rei dos Deuses do Olimpo, Júpiter (Zeus grego), que Psique fosse imortalizada?

Não resta dúvida que se uniram no Olimpo e tiveram uma filha imortal - Volúpia - a quem se dá o nome de «prazer».

Todos sabemos que, na iconografia ocidental, as setas de Eros suscitam desejos sexuais.

Em suma, vimos quais possam ser os vários sentimentos dominantes ao longo da narrativa extensa. Registou-se como se orientaram as personagens centrais no relacionamento mútuo. Em termos mais gerais: «- Quais são as nossas características herdadas, educadas e escolhidas?»; «- Como devemos agir?»; «- O que é correcto e o que é uma má acção?».

(1) Norman MacKenzie (1965, trad. fr. 1966, p. 67).

(2) Neil Philip (1999; trad. port. 1999, p. 34).

(3) Philip, ibid, p. 34.

(4) Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 115).

Judite Maria Zamith Cruz é doutorada em Psicologia pela Universidade do Minho, onde lecciona cursos de licenciatura e mestrado dedicados ao estudo do desenvolvimento humano e do auto-conhecimento do profissional de educação, desde 1996, é membro de instituições nacionais e internacionais dedicadas ao estudo e investigação da sobredotação, talento e criatividade e, em 1997, integrou equipa internacional e interdisciplinar, coordenada pela Professora Doutora Ana Luísa Janeira, nos domínios de ciência, tecnologia e sociedade - «Natureza, cultura e memória: Projectos transatlânticos». Colabora, desde 2000, no Instituto de Estudos da Criança, em projectos centrados na educação matemática; depois, na área da língua portuguesa e artes plásticas, como membro do Centro de Investigação «Literacia e Bem-Estar da Criança» (LIBEC) da Universidade do Minho .

Entre Janeiro e Julho de1982 foi professora de psicologia e de pedagogia em Escola de Formação de Professores do Ensino Básico de Torres Novas. De Junho a Setembro de 1982, assumiu o lugar de Assistente Estagiária na Universidade de Lisboa – Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, de que se afastou para desempenhar funções de psicóloga clínica em cooperativa dedicada a crianças e jovens deficientes motores e mentais, em Lisboa – CRINABEL (1982-1985). De 1985 a 1988 foi professora do Ensino Secundário, em Braga, leccionando a disciplina de psicologia na Escola D. Maria II. De novo ocupou funções de psicóloga clínica em associação dedicada à educação de crianças e jovens deficientes auditivos (APECDA-Braga), entre 1988 e 1992. Em 1987, realizou trabalho como psicóloga no Hospital Distrital de Barcelos, de que se afastou em 1990 para efectuar curso de mestrado. Em 1992 ocupou o ligar de Assistente de metodologia de investigação, na Universidade do Minho, em Braga, onde é professora auxiliar.