Na imagem que encabeça o presente texto, a espada está cravejada de jóias, mas o mais impressionante é a mulher que a segura ter morto um homem. Ela é decorada com salsichas, couves-de-bruxelas e o seu brinco é uma caneca de cerveja. Já a cabeça de homem decepado é como uma batata, com fatias de bife e carne fumada a envolvê-la. Essa é uma fotografia da história de «Mãe» - Judite, que cortou a cabeça ao invasor assírio Holofernes, mas com o intuito de salvar a sua terra. Como veremos adiante, essa figura assemelha-se a Salomé, outra mulher histórica assassina – um arquétiposombra.
O arquétiposombra associa-se sempre a um ser que é inadaptado, primitivo ou inferior.
Em alternativa dicotómica à sombra, Carl Gustav Jung (1875-1961) afirmou o seguinte sobre a poderosa força feminina ou masculina do «eu», definida como pura intencionalidade: «Só aquele que pode responder reflectidamente ‘sim’ às potencialidades do sentido de vida (que descobre em si mesmo) se torna uma personalidade» (1). Possui um projecto de vida, portanto.
Neste artigo destaca-se a mitologia no pensamento, fantasia e sonho desse homem de características particulares, um dos primeiros discípulos de Sigmund Freud (1856-1939). Tanto a ciência como o pensamento artístico iluminaram a transcendência de Jung. Para além desses interesses, ocupava-se igualmente de astrologia, alquimia (transmutação de metais, com vista à obtenção de ouro), religiões orientais, contos de fadas, telepatia (comunicação à distância pelo pensamento), fenómenos de premonição (antecipação), de sincronização (simultaneidade de eventos) e arquétipos peculiares…
Foi depois de um sonho de Jung que a noção de inconsciente colectivo se lhe aflorou:
«Eu estava em uma casa que não conhecia. Era a ‘minha casa'.
No primeiro andar, havia um salão mobilado em Estilo Rococó.
Não sabia como era o estilo do andar de baixo. Ali, tudo parecia muito mais antigo. Essa parte da casa devia ser do século XV ou do século XVI. O mobiliário era medieval. Os soalhos eram de tijoleira. Eu andava de uma sala para a outra, pensando: ‘Tenho de explorar a casa toda.’
Cheguei a uma porta muito pesada e abri-a. Uma escada de pedra levou-me à cave. Desci e encontrei-me numa linda sala abobadada que parecia muito antiga. As paredes eram da época romana. O chão era de blocos de pedra e, numa das pedras, descobri uma argola.
Puxei pela argola e vi uma escada estreita de pedra que descia.
Desci e encontrei-me numa cave baixa. No meio da poeira, havia ossos e pedaços de cerâmica semelhantes a restos de uma cultura primitiva.
Encontrei duas caveiras humanas, obviamente muito antigas e semi-desfeitas. Depois acordei.» (palavras de Jung, no filme The Wisdom of the Dream, 1989).
Os sonhos e as ficções foram encarados por Jung como narrativas simbólicas e, supondo existir o inconsciente colectivo, Jung denominou arquétipo (2) à estrutura mental que congrega essas produções imaginárias do indivíduo. É um fundo imemorial de pulsões/impulsos, de imagens e de símbolos. O uso por si do termo arquétipo configura uma imagem ou um símbolo delineados no armazém psicológico. A teoria do inconsciente colectivo de Jung é, portanto, uma espécie de reservatório na mente recheado de pulsões, «filmes» e memórias residuais, comuns a todos os seres humanos.
O modelo teve influência em dois escritores (3), John Boynton Priestley e Hermann Hesse, durante a Segunda Guerra Mundial, ao incorporarem o fascínio pelo espiritualismo e o misticismo oriental. Justifica-se esta injunção literária de escritores pela abordagem à época histórica. O impacto de fenómenos como a telepatia, a sincronização, o sonho premonitório e o pressentimento/intuição com base no psiquismo era apreendido no universo inteiro – o inconsciente colectivo.
Voltando ao exemplo do sonho de Jung, seria evidente que a casa constituiria uma imagem da mente em que a consciência era representada pelo salão, com uma atmosfera habitada. O rés-do-chão associou-o ao primeiro nível do inconsciente. Com a escuridão, a cave romana e a cave pré-histórica seriam, por fim, significativas de épocas remotas. Nas suas palavras, « (…) o meu sonho apontava para as funções da história cultural, uma história com níveis sucessivos de consciência. Assim, o meu sonho constituía uma espécie de diagrama estrutural do psiquismo humano. Essa foi a minha primeira suspeita de que algo colectivo estaria por baixo da mente individual» (4).
Apesar de sonhador, Jung fora uma criança tímida, isolada, obcecada (5) pela religião por influência do pai que era um membro do clero evangélico - Igreja Reformada Suíça.
De acordo com o seu pensamento ambivalente, nascemos predispostos a abarcar qualidades antitéticas e projectamo-las em arquétipos que as integram: heroísmo/cobardia, gentileza/grosseirismo, maldade/bondade...
Por essa via, a sabedoria ou o perdão também podem ser reconhecidos em aventuras de figuras históricas. A verdade, a justiça, a coragem e o amor foram sempre características abstractas encontradas (de forma nem sempre consciente) em personagens de contos, mitos, lendas e tradições múltiplas.
Jung concebeu uma arqueologia psíquica sugestiva, porque não somos diferentes do que éramos no passado: possuímos qualidades e limitações comuns.
Se bem que inconscientes, os arquétipos são tidos como consciencializáveis por sistemas simbólicos comuns. Quando apreendemos e reconciliamos as nossas energias arquetípicas, então estamos a orientar-nos no caminho da saúde psíquica. O nosso bem-estar dependerá, segundo aquele clínico, da conciliação de energias arquetípicas – masculina e feminina. Esse é um pensamento antitético: o animus (o «íntimo») opõe-se à persona («máscara») (6), o ego («eu») opõe-se à sombra, ou seja, a «algo inferior, primitivo e inadaptado».
Em suma, os arquétipos básicos foram configurações do «eu» fundeadas no inconsciente colectivo.
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