Judite Maria Zamith Cruz

A PERSPECTIVA ARQUETÍPICA DA MENTE
O inconsciente colectivo de Carl Gustav Jung (Index)

2.2. Don Juan: uma persona em acto

«Parece-me sentir o cheiro de mulher...» (1) - Esta frase é o exemplo acabado do efeito de irradiação sensual de Don Juan, um eterno animus. O figurão foi uma persona de encantar.

Primeiro, ele foi representado numa peça de 1630, criada por Tirso de Molina, um dramaturgo espanhol. Depois, viria a ser confundido com Don Miguel de Manara (1623-1679) que se constou ter tido, no total, 1000 mulheres.

Na versão de Molière (1622-1673), Don Juan não seria a representação do amor e da morte trágica que o acompanhou sempre. Ele expressava antes a figura de um intelectual.

No original de Mozart (1756-1791), ele foi Don Giovanni, trágico e cómico. À ópera chamou-se Il Dissoluto Punito por se tratar de alguém castigado. Com efeito, Don Juan preferiu descer aos infernos e morrer a arrepender-se pelo mal feito.

O problema amoroso da infidelidade daquele homem magnético, comilão e apreciador de festas com máscaras («personas»), é situado por Mozart no século XVII, em Sevilha - Espanha.

A sua estória conta-se, por recriação da ópera (2):

Não é Don Giovanni o primeiro a aparecer como animus na performance. Ele é um ser humano que se esconde na persona, até mesmo atrás do seu servo risonho, Leporello.

O testa-de-ferro é um homenzinho medroso e palhaço. Leporello significa «pequena lebre» e, em italiano, «terra-a-terra», um simplório. Na peça, também é ele o primeiro a queixar-se de esperar um tempo infinito pelo seu amo, perdido em uma qualquer aventura amorosa.

Ao momento em que ocorre a sua entrada no Acto I, parece ser Dona Anna a vítima fatal da sedução, ela que se mostra uma mulher digna, filha do Senhor Comendador de Sevilha.

Na boca de cena, é também o pai da formosa Dona Anna a convocar Don Giovanni para um duelo, morrendo logo em seguida. Não se podia comparar a sua genica à do ignóbil conquistador.

Como tantas outras vezes, Don Giovanni foge escondendo-se em ruelas e caminhos escuros e esconsos.

Don Ottavio , noivo de Anna, quer também vingar-se. Dona Anna tem igualmente sede de vingança, possivelmente mobilizada por aquele amor teimoso - Ottavio.

Na rua sombria ouve-se Elvira que chora, abandonada por Giovanni. Ele ainda a ouve quando passa na rua fugindo de Anna... Nem olha para trás. E o patife do seu criado, Leporello, não espera para contar o sucedido à pobre abandonada Elvira.

Entretanto, Zerlinda e Masetto vão casar, também, em Sevilha. Toda a gente fica a saber, incluindo DonGiovanni que volta a colocar-se no meio dos noivos. Ele corteja Zerlinda sem escrúpulo, diz querer casar com ela e fazem um duo, em que cantam: «Lá me dás a mão».

Quem salva Zerlinda é Elvira que surge para desfazer a esperança da outra jovem sensível e tentada pelo malvado.

O noivo de Zerlinda, Masetto, nem quer acreditar e enfurece-se mesmo com o diabo do homem que lhe quer levar a sua querida Zerlinda.

Realiza-se o Baile de Máscaras habitual e, mais uma vez, DonGiovanni resolve seduzir a menina de Masetto.

Novamente é descoberto o seu intento e Don Giovanni retira-se, mas já no Acto II troca de roupa com o seu criado. DonGiovanni chega a acusar o pobre Leporello de ser ele o sedutor de Elvira.

Pareceria uma aventura interminável se DonGiovanni não dispusesse Elvira a render-se, mais uma vez, às suas palavras. Para a distrair, Leporello chega a fazer uma serenata... Quem lhe deu ordem para cantar foi o amo.

DonGiovanni aproveita para namoriscar a camareira de Elvira…Que confusão! Se a própria camareira é namorada de Leporello, mas quem a corteja é Don Giovanni... Leporello continua vestido como se fosse o seu patrão.

Eis senão quando Elvira deixa de se querer vingar. Ela ama Don Giovanni de verdade.

Ainda a rir do seu estratagema, Don Giovanni desloca-se - imagine-se - ao cemitério, com Leporello, que entretanto se escapulira da briga feia com Massetto. Que figurão!

Nesse lugar sinistro ouvem-se vozes, entre as quais a voz lúgubre do Senhor Comendador de Sevilha, morto em duelo tempos atrás. Trata-se do pai de Dona Anna que jaz sob uma estátua. Como é que um morto pode falar?

E outro acontecimento se sucede, por ordem de Don Giovanni: Leporello convida o Comendador para um jantar. Em seguida, faz comentários, burburinhos e ruídos associados à voz da estátua: «tá-tá-tá-tá». Convoca a alma do morto para um jantar com o seu amo libertino, outra e outra vez.

A estátua do falecido insiste em que o fanfarrão se arrependa.

O sedutor desenfreado recusa-se a arrepender-se.

Por castigo, Don Giovanni morre em cinzas.

Cabe às outras personagens realizar o canto moral, no final do Acto II.

Insista-se em que Don Juan nunca existiu (3). Existiram, isso sim, personagens com esse nome ao longo da História, marcando o nosso animus imaginário para a libertinagem.

Notas

(1) Jeanne Suhamy (1992, trad. bras. 1995, p. 39).

(2) Suhamy, ibid, pp. 37-41.

(3) Don Juan chegou até aos nossos dias no filme de 1997 - Don Juan DeMarco -, realizado por Jeremy Leven e protagonizado por Johnny Deep. Joseph Losey realizou outro filme que divulgou a ópera de Mozart, mas essa obra faz parte da História do Cinema Francês.

 

Judite Maria Zamith Cruz é doutorada em Psicologia pela Universidade do Minho, onde lecciona cursos de licenciatura e mestrado dedicados ao estudo do desenvolvimento humano e do auto-conhecimento do profissional de educação, desde 1996, é membro de instituições nacionais e internacionais dedicadas ao estudo e investigação da sobredotação, talento e criatividade e, em 1997, integrou equipa internacional e interdisciplinar, coordenada pela Professora Doutora Ana Luísa Janeira, nos domínios de ciência, tecnologia e sociedade - «Natureza, cultura e memória: Projectos transatlânticos». Colabora, desde 2000, no Instituto de Estudos da Criança, em projectos centrados na educação matemática; depois, na área da língua portuguesa e artes plásticas, como membro do Centro de Investigação «Literacia e Bem-Estar da Criança» (LIBEC) da Universidade do Minho .

Entre Janeiro e Julho de1982 foi professora de psicologia e de pedagogia em Escola de Formação de Professores do Ensino Básico de Torres Novas. De Junho a Setembro de 1982, assumiu o lugar de Assistente Estagiária na Universidade de Lisboa – Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, de que se afastou para desempenhar funções de psicóloga clínica em cooperativa dedicada a crianças e jovens deficientes motores e mentais, em Lisboa – CRINABEL (1982-1985). De 1985 a 1988 foi professora do Ensino Secundário, em Braga, leccionando a disciplina de psicologia na Escola D. Maria II. De novo ocupou funções de psicóloga clínica em associação dedicada à educação de crianças e jovens deficientes auditivos (APECDA-Braga), entre 1988 e 1992. Em 1987, realizou trabalho como psicóloga no Hospital Distrital de Barcelos, de que se afastou em 1990 para efectuar curso de mestrado. Em 1992 ocupou o ligar de Assistente de metodologia de investigação, na Universidade do Minho, em Braga, onde é professora auxiliar.