JOSÉ OLIVEIRA....
Cunha de Leiradella - Para além de gosto

1. Homem e autor fáustico

Fausto, o sábio prodigioso, alquimista, feiticeiro e o esconjurado, enquanto mito, a partir de Goethe, assumiu-se símbolo da própria humanidade porque condensa, em si, a força realizadora da vontade humana. O homem fáustico questiona-se e questiona o mundo, não se apazigua a saberes, aliás o conhecimento torna-o exigente consigo e com os outros, arrastando-o para uma eterna procura.

Conheço Cunha de Leiradella tal como ele me conhece: partilhando o divisível e o indivisível que sabemos de nossas existências. Leiradella é um homem fáustico, aliás, e se dúvida houver, vejamos que assim se oferece quinzenalmente, enquanto cronista, na página 4 deste periódico.

Todavia, o autor Cunha de Leiradella, povoense de Brunhais por nascimento, residência e afecto, enquanto romancista, contista, dramaturgo, roteirista de cinema e televisão e ensaísta é, pelo seu universalismo, também um autor fáustico. Este autor vive em cada uma destas linguagens, formas e plataformas a busca da verdade para actos humanos, a par da recorrente e irónica incomunicabilidade humana.

2. O processo de criação

“Apenas Questão de Gosto”, editado pela editora Ciência Moderna (Rio de Janeiro, Brasil, 2005), apresenta-nos, na sua acção central, uma aparente intriga policial (digo aparente porque este romance vai para além do clássico romance policial). A personagem central e narrador é o detective Eduardo da Cunha Júnior, um homem idêntico àqueles que cruzam o nosso dia-a-dia na rua, no trânsito ou nos nossos empregos, pois é um ser que procura simplesmente garantir a sua sobrevivência e a satisfação dos seus desejos e prazeres, seja um whisky Ballantine’s, o seu Porsche Turbo 3000 ou uma realização sexual.

Quanto ao tempo, os factos decorrem durante sete dias a partir daquela “ terça-feira, 15 de janeiro de 1985, lua minguante do plantão do anjo Aladiah e dos santos Miquéias,(…)”, dia que, na História brasileira, é marcado pela chegada à Presidência de Tancredo de Almeida Neves que recebe o epíteto metafórico de “cavaleiro da Távola Sempre-Em-Cima-Do-Muro”, isto para caracterizar a sua esperteza saloia e o seu oportunismo político. É, neste mesmo dia 15 de Janeiro, que o detective Eduardo tem a oportunidade de subir mais um degrau no seu palmarés detectivesco, recebe uma cliente – Raiolinda de Menezes Forfait – que o incumbe na investigação de uma possível relação adultera protagonizada pelo marido, Zózimo Forfait, um produtor e director de cinema. Eduardo passa, então, a usar o disfarce de jornalista da “Revista da Cidade”, usando o nome de Adauto Simplício, para acompanhar as filmagens de “O Grande Cidadão e a Lenda do Cururu Voador” até chegar ao seu pertenço objectivo: um flagrante que satisfaça a cliente e lhe permita uma recomendação para trabalhos futuros.

Durante sete dias, o detective Eduardo passa pelo burlesco que envolve a sua relação com o universo do cinema, política e sociedade brasileiras, daqui ao cómico, à ironia e à sátira é um passo, a este propósito é significativo o capítulo seis onde o autor, seguindo a estrutura formal da epístola bíblica, faz um compêndio dos termos cinematográficos importados da língua inglesa porque, incompreensivelmente, parecemos ter pejo em usarmos a nossa língua, daí a pergunta: “Trial Divan – Não seria verdadeiro dizer-se teste do sofá; pois não começa com o candidato (male or female) na posição vertical e termina na posição horizontal depois de experimentadas todas as posições do Kama Sutra?”

Nos seus fluxos de consciência, que entremeiam os diálogos, deparamo-nos com um cuidado trabalho linguístico, com passagem pelo neologismo e pela refundação de máximas populares como: “quem rouba uma galinha é ladrão e quem rouba galinheiro vira deputado ou senador”. Em tudo, Leiradella parece renovar a ironia, porque esta não se reporta a fenómenos ou actos individuais, mas sim a toda a existência/realidade que se torna estranha ao seu sujeito.

No final, o detective descobre que Zózimo traía sua mulher com o seu stand-in (o substituto dos actores nos testes de filmagens) e o motivo de adultério era a sua homossexualidade. É então que Eduardo mostra ter solução para tudo, basta que o cliente pague: encena uma relação entre o produtor/director e Florismália, a sua actriz mais bela, recebe da cliente inicial, Raiolinda, e de Zózimo que, assim, esconde o que não deseja assumir.

“Apenas Questão de Gosto” mais que um enredo policial caracteriza-se pela sua metatextualidade e com a expressão observo o facto de, em muitos aspectos, o texto transbordar para outros leitos (ou tipologias). Repare-se que a intriga assume também afloração de conflito dramatúrgico, uma vez que Eduarto, pelo que tem de anti-herói, é uma personagem em conflito (confronto) consigo e com o mundo. Este facto é tanto mais evidente quando nos deparamos, pelo menos, com duas possibilidades de leitura: lendo apenas os diálogos, passando sobre as divagações de Eduardo, privilegiando-se o contacto directo com a intriga e a relação do detective com os outros ou lendo simplesmente os fluxos de consciência e entranhando-nos, então, na visão do mundo e de si mesmo por parte do narrador. Ambas são tentadoras, logo todas merecem ser tentadas.

 
 
Fonte: Jornal "Castelo de Lanhoso". Póvoa de Lanhoso, 28 de Julho de 2006. http://www.castelodelanhoso.com

José Oliveira nasceu na cidade de Paris, França, em 1969. Mas, desde os sete anos reside na Póvoa de Lanhoso, em Portugal.

Publicou "Rumos", um livro de contos (Editora Labirinto, 2004). Participou também de antologias. "Histórias para um Natal" (Editora Labirinto, 2004) com o conto "Caminhos de Natal" e "Dias do Pai" (Editora Ave Rara, 2006) com o conto "À esquerda das horas, o tempo". Na secção "Oceanos", espaço dedicado a escritores lusófonos do Jornal “Rascunho” (Porto Alegre, Brasil) publicou em Junho de 2006 o conto “Caminhos de Natal”.

jose_pereira_oliveira@clix.pt