Octavio Paz referiu-se à poesia como a outra voz. A expressão do escritor mexicano, vencedor do Prémio Nobel da literatura em 1990, é particularmente feliz quando, nesta formulação simples, visa alertar-nos para dimensões e potencialidades que nem sempre reconhecemos à poética . A voz da poesia é outra porque lhe permite desmultiplicar-se enquanto voz deste mundo, das visões, das paixões, do homem que passa, do menino que chora, do velho que olha o silêncio, do sonho, do nada e, antes do poema acontecer, o poeta é um ser humano como qualquer um de nós a precisar dessa outra voz.
O pseudónimo
António Gedeão é o pseudónimo literário de Rómulo de Carvalho que nasceu a 24 de Novembro de 1906 em Lisboa e faleceu a 19 de Fevereiro de 1997 nesta mesma cidade, comemorando-se, este mês, o centenário do seu nascimento. Sob seu próprio nome, Rómulo de Carvalho, licenciado em Ciências Físico-Químicas pela Universidade do Porto, foi um professor dedicado: publicou vários volumes de divulgação científica através da colecção “ Ciência para Gente Nova” da Atlântida e, já na década de 70, nos “Cadernos de Iniciação Científica” da editora Sá da Costa.
Todavia, a par desta actividade como professor, sob o pseudónimo de António Gedeão, a partir da segunda metade do século XX, nomeadamente após a publicação do poema “Movimento Perpétuo” (1956) torna-se uma das vozes incontornáveis do movimento neo-realista português, apesar de o caracterizar, enquanto poeta, uma originalidade e independência única.
Particularmente curioso, e nem sempre sublinhado, é a escolha deste pseudónimo. De um modo geral, os escritores habituam-nos a ver no pseudónimo, tal como acontece em Miguel Torga, a criação de uma relação de identidade entre o homem e o seu respectivo programa artístico.
António Gedeão não foge a esta regra, podemos inclusive dizer que o nome pressagia as linhas de força da sua poesia: António remete-nos inevitavelmente para Santo António de Lisboa - o exímio orador e incansável pregador – , para Padre António Vieira – uma voz persistente na defesa dos direitos do índio brasileiro – e Gedeão palavra de origem hebraica – GEDEHON - que remete para a ideia daquele que luta e que não desiste. Desta forma, António é a metáfora da persistência e da determinação da voz do poeta, esse herói épico em sentido neo-realista, ou seja, aquele que com a sua objectividade – representação – se propõe transformar a sociedade.
O papel da poesia
Estamos perante um poeta que olhou atentamente para a relação que se estabelece entre o individuo e a sociedade que o rodeia como espaço de intervenção. Veja-se a este propósito o poema intitulado “ Poema do Homem Só” (Sós,/ irremediavelmente sós,/como um astro perdido que arrefece./Todos passam por nós/ e ninguém nos conhece.) onde o poeta expressa a sua visão do Homem, como vemos, marcada pelo seu carácter anti-social, apresenta-o, em outros poemas, também como animal esquecido, mau, confuso, miserável e oportunista (Eu sou o homem. O Homem./Desço ao mar e subo ao céu./ Não há temores/ que me domem/ É tudo meu, tudo meu.) como no “Poema do homem-rã”. O mundo, que inevitavelmente carrega este fardo chamado Homem, também não lhe oferece melhor visão como em “Esta é a Cidade” (Aperfeiçoo a focagem. / Olho imagem por imagem/ numa comoção crescente. / Enchem-se-me os olhos de água. / Tanto sonho! Tanta mágoa!/ Tanta coisa! Tanta gente!/ São automóveis, lambretas,/ motos, vespas, bicicletas,/ carros, carrinhos, carretas,/ e gente, sempre mais gente,/ gente, gente, gente, gente,/ num tumulto permanente/ que não cansa nem descansa, /um rio que no mar se lança/ em caudalosa corrente.// Tanto sonho! Tanta esperança!/ Tanta mágoa! Tanta gente!). No entanto, face a esta realidade António Gedeão não renuncia. Há uma solução: o sonho. Esse mesmo sonho que tem força mítica como em “Pedra Filosofal” (Eles não sabem, nem sonham, / que o sonho comanda a vida. / Que sempre que um homem sonha/ o mundo pula e avança/ como bola colorida/ entre as mãos de uma criança.), volta-se para o mundo através da poesia que pode humanizar, transformar e harmonizar pelo amor e assume a voz daqueles que não têm voz numa perspectiva total onde todos nos revemos e onde o próprio poeta, num primeiro estádio, também se sente. Surgem, assim, na sua poesia várias personagens como que acusando suas próprias narrativas – a cantora, a criança, a bailarina, a filha do alfaiate, a Luísa que sobe a calçada (como lhe sobem as dificuldades na vida), o Galileu (símbolo de coragem), a multidão, a vítima da guerra, o bêbado, os camponeses e tantos outros – porque todos têm alguma coisa a dizer e querem dizê-lo.
Poesia e poeta atemporal
António Gedeão assumiu, através da poesia, um programa de transformação da sociedade pela procura da alteração do modo de viver das pessoas e através de uma comiseração face aos que sofrem. O mundo já não pula. Avança simplesmente cada vez mais veloz e este como outros autores que usaram a arte como força transformadora, correm o risco de serem, erradamente, limitados ao contexto próprio do seu tempo quando, na verdade, esta expressão é atemporal, visto que os problemas que lhe deram azo ainda estão bem presentes e perceptíveis entre nós. Mas o que, de facto, não se entende é o distanciamento, em relação à sociedade hodierna, patenteado pela maior parte dos nossos escritores contemporâneos que, fechados em suas redomas, são cada vez mais a voz de seus próprios casulos. No preciso mês em que comemoramos o centenário do nascimento de António Gedeão, recordemos a sua voz ainda como voz de cada um de nós.
José Oliveira
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