1
Um ruge-ruge ciranda avenida abaixo. Parques
subterrâneos, buzinas, travões e passagens para peões espalham
frenesins, aromas e meneios cosmopolitas.
Envoltos no bulício, os escritórios e consultórios do número
87 rosteiam sua melancolia centenária e nem o amarelo-torrado a trepar
até ao quarto andar – parecendo empalidecer o azul celeste durante o dia
ou fazendo-se chamejante ao sol-pôr – os
tornam alvos de apetite humano.
Seis da tarde. A porta de acesso ao primeiro andar,
apressada, alivia funcionários, técnicos e últimos clientes, passando,
distraída, de mão em mão. E mal se fecha por completo, puxada por um
amortecedor que a aferrolha à caixilharia, logo se reabre, gemendo, uma
vez, outra, outra e outra vez. Numa delas, empurrada pelo ombro de uma
jovem que sai vasculhando, com ambas as mãos, a mala colocada a
tiracolo.
2
No passeio, a ânsia da procura detém-na e encurva-lhe os sentidos para a
mala. Desacorrenta um compartimento interior e dele retira os óculos de
sol que logo coloca. Continua o seu percurso, passeio abaixo, até à
primeira paragem de transportes urbanos. Recosta-se sobre um dos postes
metálicos que sustêm a cobertura e, com a mão direita em desassossego,
reabre a mala. Fá-la descer até à base, dedilhando segredos e palpando
dúvidas. Por instantes, imobiliza-se e, indiferente ao bulício, escuta o
pulsar do instante – talvez tentasse esconder o rosto naquele pequeno
resguardo de intimidade ou reencontrar-se por entre uma fotografia
íntima, um objecto preso a um tempo ou aroma –, mas, num repente,
retirou um lenço de papel e fê-lo emudecer as lágrimas que procuravam
vencer as margens criadas pelas hastes dos óculos.
Um BMW 320d prateado, vagaroso, aproxima-se da paragem. Seu condutor, com
a segurança dos quarenta anos, fixa-a, lê-lhe a atitude e leva, consigo,
a imagem daquela jovem de cabelos abertos, tez morena e esbelta.
Ao sentir a indiscrição do carro, arma a postura, exibindo o acto de
retirar o passe. Volta-o para si. Passa o indicador direito sobre seu
nome – Felisbela Santos Silva – como quem palpa a sua própria
identidade.
3
O autocarro (Nº 45 – S. Victor) aproxima-se. Pára, oferecendo a porta da
frente ao interior da paragem. Pela porta traseira saem meia dúzia de
passageiros, pela dianteira entram dez, doze, não mais.
O motorista confirma pelo espelho interior a segurança dos passageiros.
Fecha as portas. Prepara a marcha do veículo, mas logo a interrompe.
Dois jovens lançavam as costas das mãos ao vidro da porta.
- Obrigado, senhor motorista. – Sublinha o primeiro.
O segundo, firmando-se com a mão esquerda à barra que se sobrepõe às
escadas para aguentar os solavancos do autocarro, rodopia o suficiente
para ficar de frente com os lugares, mantém o olhar pregado ao telemóvel
e, lesto, com o polegar direito digita uma mensagem escrita.
Sentaram-se. Este último mostra o texto digitado. Ambos riem largamente,
baloiçando o instante no banco.
- Eh, meu. Gostei dessa: “ tho prexa d t vr, saudads d t bjar.”
Fixe. Temos poeta. Tou mesmo a ver a Tininha a beijar o ecrã do
telemóvel.
- Meu. Tás a ver. Tenho uma reputação a manter na escola.
- “ O mais romântico”. Com diploma passado após votação.
No último banco do autocarro, Felisbela sacudia quinze minutos de mais uma
viagem de regresso ao quarto arrendado. Reclinou a cabeça sobre o vidro
e, através daquele rectângulo fosco, observava a cidade passar pelo
autocarro como quem se vê diante uma tela de cinema. Carros, luzes de
reclamos, pessoas que correm no passeio, montras e bancas de jornais
como que adquiriam uma velocidade real. Eram tempo, eram vida, eram o
seu tempo e a sua vida. E aquele fim-de-dia bem poderia, também ele,
integrar-se como imagem adâmica e ingénua, a lembrar os anúncios que
rebolam nos ecrãs de TV – a bela jovem que sai do seu local de trabalho
realizada – ou como espelho para sua paz interior.
Mas um relâmpago de verdade ziguezagueava-lhe com vozes, gestos, olhares e
a imagem do consultório de oftalmologia onde trabalhava há quatro meses.
- Felisbela. Venha ao consultório – Ecoou, estridente, o intercomunicador.
Bateu à porta e, serena, de dentro, soou uma ordem de entrada. Viu-se, a
passos tímidos, romper por entre aquele espaço salvaguardado da luz
exterior, numa diagonal, a lusco-fusco, até à secretária.
- Felisbela. Como correu o dia?
- Bem, senhor doutor.
- Isto é que foi um dia de trabalho.
- É verdade, senhor doutor.
- É mesmo assim, tempo de férias. Já sabemos. – Levantou-se, puxou um
cadeirão, colocado lateralmente em relação à secretária, fê-lo deslizar
e, com o levantar de dedos, um recolher de mãos, um encolher de braços à
sua posição mais vertical, passou-o a Felisbela. – Sente-se. Está
confortável?
- Obrigada, senhor doutor. Estou bem. Obrigada.
- Felisbela, na sua aldeia também se diz que empregado gabado é
trabalhador estragado?
- É verdade.
- Eu também não tenho o hábito de o fazer. Mas há uma primeira vez para
tudo. Não é verdade? E confesso que por sua causa vou ter de quebrar uma
regra.
- Por minha causa, senhor doutor. Não. Não quebre.
- Sinto-me na necessidade de confessar que este consultório, consigo, é
outra coisa. É outro.
- Como assim?
- Ora como? Está melhor. Muito melhor. Estas coisas nem sempre se
conseguem explicar. Mas veja, respira-se uma simplicidade, uma
honestidade e uma proximidade entre pessoas que não existia. E você é
que trouxe tudo isso.
- Não diga isso, senhor doutor. Não passo de uma empregada que recebe
ordens e faz o que lhe mandam.
- Felisbela, o que eu quis deixar claro é que a sua maneira de ser é uma
preciosidade. Você magnetiza as pessoas.
- Assim deixa-me atrapalhada. Tanto elogio. Senhor doutor …
- Ainda bem que apenas os elogios a atrapalham, Felisbela. Confesso-lhe
que, a mim, assusta-me a ideia de, um dia destes, não ouvir o som dos
seus passos ou não ver o sorriso com que me desperta todos os dias.
- Não diga isso.
- Comecei por dizer que não o costumo fazer.
- Não estou habituada a elogios.
- E eu não estou habituado a fazê-los. Mas os sentimentos não se escondem.
Não podemos fugir deles. A vida ensina-nos isso. Não pensa assim?
- O senhor doutor conhece-me bem. O currículo que enviei é o espelho da
minha vida. Quando o senhor doutor diz estas coisas, com essa segurança
toda, fico sem saber onde quer chegar e o que tenho a ver com o que diz
sentir.
- Felisbela, podemos gastar aqui todas as nossas palavras, mas não
adiantaremos um segundo sequer à realidade. Nem a nós próprios. Importa
a ousadia de um gesto. Um simples gesto. – Nisto, o médico sai da
verticalidade que lhe sombreava o rosto, reclina-se apoiando mãos e
tronco nos braços do cadeirão, já de olhar, respiração e rosto trémulo
desvendado pela luz do candeeiro de mesa, encaminha seu rosto na procura
de um beijo.
- Senhor doutor…
- Um beijo só. Depois não haverá nada a explicar.
O telefone toca uma primeira vez, mas ambos ignoram. Mas outro toque
insiste, outro e outro. O médico, em sobressalto, retorce-se, olha o
visor, procurando confirmar o número.
- Tenho de atender. – Toma o auscultador e escuta.
Felisbela, pé ante pé, afasta-se. À porta do consultório, sentiu que devia
executar o voo das aves engaioladas. Sair, não interessa para onde nem
de que modo. E saiu. |