Cai a noite. No empedrado da avenida que segue pelo centro da vila, vincam-se, a traço de carvão, as dobras dos prédios.
Defronte para o jardim central, de entre a correnteza de edifícios, por cima da casa das ferragens, um apartamento acende suas lâmpadas. Para o exterior, uma dona de casa perfila-se, estática e silenciosa, olhando, pela janela da sala, o exterior tonto e atarefado.
Seu marido aproxima-se, por detrás, a passos inseguros. Coloca-lhe a mão direita sobre o ombro esquerdo, força-lhe uma breve atenção e beija-a. Já de costas voltadas para o exterior, ela faz vaguear seu olhar pelo rosto dele, carregando o desassossego das primeiras palavras na respiração.
- Que é isso, homem?
- Um beijo.
- Mas há quanto tempo não me beijavas?
- Não sei.
- Porquê hoje?
- Lá em baixo, tava um casal de namorados e lembrei-me do nosso tempo.
- E do tempo de casado? Hoje é dia do pai. Isto também não te faz lembrar nada?
- Espera. Não há necessidade de repetirmos discussões passadas. Eu nunca soube ser pai. Pronto.
- E procurar a Cristiana, quanto tempo mais vais demorar a fazê-lo?
- Fui um palerma.
- Não me respondeste.
- Vê bem. Passo a vida enfunado naquele gabinete camarário. A par e passo, entra e sai um ‘Senhor arquitecto dá licença’. Por um elogio, uma palmada nas costas ou gratificação nunca deixei de dar parecer favorável a um andar a mais aqui, ali e acolá. É, sou uma sanguessuga, nem mais nem menos. Apanho minha filha, aos dezoito anos, a drogar-se com o namorado no seu próprio quarto, atiro-lhe com a minha honestidade de família, arrasto-a corredor fora e cuspo-lhe na cara que já não sou seu pai. Ponho-a fora de casa.
- Ah. Com que então dás-me razão?
- Dou.
- Voltando atrás, qual é a resposta?
- Tenho aqui um presente.
- Um beijo, um presente. E a resposta?
- Não é pra ti. O presente é dela.
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