Joëlle Ghazarian
Dossier organizado por Rui Mendes

 

Título: Cântico do crime

Autora: Joëlle Gazarian

Tradução: Júlio Henriques

Em uníssono com: Herberto Helder

Edição: quasi

1ª edição Setembro de 2007 

O Nadador Nu

"Depois foi um grande silêncio, porque em toda a palavra está o silêncio dessa palavra e cada silêncio fulgura no centro da ameaça da sua palavra – como um buraco dentro de um buraco, no ouro dentro do ouro.

Como transmitir-lhes força, pôr as mãos no idioma, forçar as tripas, como assobiar nos seus sacos quentes, transmitir o segredo? Como apagar a linguagem transe de conteúdo insaciável e infinito de que o nosso corpo é o lugar circunscrito, mundo escrito dolorosamente (mas num fogo suave) nas faixas de seda saídas do âmago das bestas plenas? Ou será preciso que a mão se suavize para que a frase seja fina como a seda que de súbito se rasgasse pela força de um nome derradeiro?

Nesta confusão, o brilho da linha verbal, poderosamente atada a um universo marmóreo, cosendo os órgãos da frase de carne, é um meio subtil de transferir a violência da vida para uma unidade mental de significações. Sim, para encontrar o ouro é preciso perdidamente e ordenadamente virar as palavras em todos os sentidos, para dar à luz a sua matéria orgânica vital. Por esta inspiração da língua e dos órgãos confundidos em todo um corpo tenso, apto aos segredos e às delicadas subtilezas da terra, o enigma materno talvez então lhes seja transmitido.
e
– É tão leve o esperma antes de se tornar espesso, murmura Macha quase involuntariamente. Tira de mim, escultor, a tua palavra encharcada de baba que deveria ser um canto encantatório, uma ventania do corpo. Deixa de obturar as aberturas da nossa carne. Ele afasta-se para a parede que contemplava a sua brancura ao fundo.

Ela espreguiça-se, por fim, devagar. Desde há horas, centrada na cama, os seus gestos tinham-se esquecido:

– Estou deitada e os lençóis fluem e refluem nesta ressaca sob o ar arqueado. Os lençóis reluzem como se eu tivesse tomado veneno.

Ele contempla-a a mexer nas palavras dos seus membros, a organizá-las no espaço deste espaço, a estabelecer-lhes movimentos de rotação e translação umas com as outras, criando-se nele de novo uma tensão que evita a fuga completa da vida interior, tensão que Macha sente."

Vídeo com entrevista em "Conversas no sofá": http://blip.tv/file/377357
Joëlle Ghazarian. Escritora franco-arménia residente em Portugal.