As convenções comuns referentes à narratologia do romance têm por base a exposição mais ou menos linear de uma «história», com princípio, meio e fim facilmente identificáveis e com personagens de contornos facilmente reconhecíveis. Esta forma expositiva decorre de um racionalismo que assenta nas usuais concepções europeias do imaginário e das suas configurações estéticas. Ou seja, o romance tal como é habitualmente entendido é um modo expositivo sem sobressaltos, em que a forma narrativa propriamente dita não contém surpresas.
Se chamo a atenção para isto é porque os hábitos de interpretação resultantes desse género de leitura podem criar obstáculos ao entendimento de narrativas que não têm por base essa linearidade do romance, que é quase sempre romance de enredo.
Neste domínio da literatura, creio estarmos também perante dois mundos, ou duas diferentes concepções do mundo: uma que assenta no formal racionalismo dum imaginário previamente estruturado, outra que se alicerça numa busca filosofante, que pode partir, por exemplo, da perspectiva exploratória que um verso de Ruy Cinatti sintetiza: «O melhor mundo / está por descobrir».
A primeira concepção do romance, costumeira e predominante, corresponde a uma categorização da narrativa que subentende uma diferenciação essencial entre prosa e poesia, historicamente decorrente da separação pragmática entre o que é considerado racional e o que é tido como extra-racional.
A outra concepção da narrativa provém duma inspiração que se furta às imposições e limitações do pragmatismo e que, por isso mesmo, creio remeter para a noção de mito, para a narração que não separa prosa e poesia, não as separando precisamente por ter raízes mais extensas, por mergulhar numa mais ampla concepção do mundo – mais ampla no seu arco temporal e nas personagens que abarca, em que os humanos não são necessariamente seres superiores, fazendo parte duma complexa teia de seres também eles fabulosos: os outros animais, os vegetais, os minerais, e as restantes substâncias ou entidades, visíveis e invisíveis, constitutivas do mundo.
Por conseguinte, segundo os cânones vigentes da análise literária, pode levantar-se uma dúvida formal: será Cântico do Crime um romance? Pessoalmente, agrada-me a ideia de que não o seja, quer pela conotação comum atribuída à referida ideia de romance, quer por me parecer mais instigador que uma narrativa como esta não tenha de definir-se com base em categorias da análise literária porventura redutoras.
Cântico do Crime é um diálogo com a obra de Herberto Helder, com a obra toda deste poeta. Esse diálogo, que já vinha de trás, acentuou-se com a reacção calorosa do poeta ao anterior livro da autora, Ó de Amoque.
Tendo em conta que Herberto Helder não se considera um autor moderno, e que a sua inspiração remete para aquilo a que podemos chamar um tempo holístico, cuja ordem de grandeza abarca os grandes espaços temporais da espécie humana, parece-me necessário ter presente o mito enquanto narrativa desse tempo holístico, e não apenas como expressão do homem circunscrito ao arco temporal da modernidade. Foi por certo nesta confluência que ocorreu o encontro do mundo mítico da autora com o mundo mítico de Herberto Helder.
Apesar de a noção de mito poder ser entre nós alvo de equívocos, visto na linguagem comum a palavra mito ser sinónimo de mentira, penso ser estimulante (e diria mesmo: cada vez mais estimulante) inserir o mito enquanto narrativa literária nos questionamentos contemporâneos, inclusive nos questionamentos estéticos. Com efeito, na acepção vulgar da palavra mito, um dos grandes mitos da nossa cultura é que as nossas narrativas (e antes de mais a narrativa histórica) não seriam mitos – por se partir do categórico princípio de que todas essas nossas narrativas são produto dum universo científico, tido como automaticamente superior.
Ao contrário dum romance de enredo, Cântico do Crime não é facilmente resumível, a sua trama é incomum e as suas personagens não são apenas seres facilmente identificáveis. Julgo que isto acontece porque o que nele vigora é uma busca. Não se trata propriamente duma busca de contornos iniciáticos, porque aquilo que este texto exprime não contém nenhum programa engatilhado, mas a dimensão iniciática também se encontra presente nas ligações entre o plano da vida imediata, documentável, e o plano duma ontologia em processo, duma exigência de conhecimento que para conhecer tem de fazer desmoronar o edifício do conhecimento autorizado.
Antes de mais, há nesta narrativa, onde as relações simbólicas não são acidentais, a problemática do crime. E sem dúvida começa logo no título deste livro uma problematização das categorias mentais que em geral nos moldam ou a que obedecemos. A íntima junção de dois vocábulos aparentemente contraditórios (cântico e crime) cria ab initio a perplexidade cuja trama percorre depois a narração, numa sequência de interrogações essenciais, lúdicas e humorísticas. Com efeito, as conotações espirituais da palavra cântico não as destinariam, em princípio, a que ela qualificasse a palavra crime, cujo conceito corrente remete para uma identificação contrária à sublimação.
Mas o crime de que neste livro se trata não é, justamente, de ordem prosaica. Estamos aqui perante um crime primordial, mas ao mesmo tempo obscuro e sempre encoberto: o crime da individualidade – assumido, numa cultura que não é comunitária, como a rejeição da uniformidade castradora e patológica, como a recusa do estruturante modelo duma necessária obediência à arbitrariedade. Este crime é o da existência do indivíduo contra as leis mundanas, que lhe impõem, por regra, um emudecimento.
Sem dúvida por isso é uma criança a personagem principal desta narrativa, cujo movimento interno pende para as graves (e também sarcásticas) entonações do mito. Porque na criança ainda reside, por algum tempo, o humano primordial, arcaico, primevo, que se abre ao mundo na sua inocência criminosa, ou seja, originariamente interrogante, pondo em questão, nesse seu impulso, as formas de que o mundo se reveste, as relações que os seres humanos estabelecem entre si e as que fazem vigorar com o mundo natural.
A mescla dos tão contraditórios conceitos de cântico e de crime exprime-se depois, ao longo da narrativa, na mescla processual de poesia e prosa – mescla essa que é característica, precisamente, do mito enquanto relato irreprimível na sua eloquência criadora de conhecimento. De certo modo, o cântico é aqui a expressão da poesia, sendo o crime a expressão da prosa. Mas isto, convém sublinhar, é apenas uma forma esquemática de o dizer, porque na realidade cântico e crime, poesia e prosa estão aqui indissoluvelmente ligados, na mútua penetração destes sentidos que em aparência se opõem – tal como se interpenetram a vida e nós próprios, ou as crianças e nós.
Se o universo mental da criança tem nesta narrativa tanta importância, não é todavia para o destacar como uma espécie de entidade à parte, embora esse universo possa por vezes sugerir a ideia (de resto criticamente estimulante) de que na criança é ainda concebível consubstanciar-se um paraíso perdido – perdido porque nela, a criança, ele será sempre provisório. O universo da criança criminosa é aqui importante na medida em que esse seu universo se inter-relaciona com o universo do adulto, dessa outra entidade humana que, por exaustão ou medo, não tem perguntas a fazer ao mundo (ou prefere não as ter), pelo facto de essas perguntas implicarem uma busca, e por isso um esforço.
Um outro tema relevante nesta narrativa é a vitalidade. Elementarmente, a vitalidade está aqui sem dúvida associada à criança, cuja energia deseja desbravar os grandes mistérios que a circundam e a cercam, não para os eliminar enquanto mistérios, mas para intimizar com eles, para gulosamente os conhecer por dentro, para fazer parte deles. E neste movimento da vitalidade integra-se, com a naturalidade das coisas que se impõem por si, uma vibratória sensualidade, presente em quase tudo que a narrativa vai carreando, mas antes de mais presente na própria materialidade vocabular, na língua como substância lúdica, como acto de desfrute do que pode haver de intenso na comunicação humana.
Júlio Henriques