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Revista TriploV
de
Artes, Religiões e Ciências
Nova Série |
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JOÃO SILVA DE SOUSA |
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Tarouca, nas indecisões
de Sancho II |
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O facto de
haver um problema não envolve
que haja uma solução para ele.
O facto de haver um mal, não quer dizer que
ele possa desaparecer.
Não há solução satisfatória para nenhum problema social
(Fernando Pessoa: 1905-1916). |
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1. Após as incessantes e árduas empresas militares que haviam tomado
lugar em Portugal ao tempo de D. Afonso Henriques e de D. Sancho I, seu
filho, - bem em menor número durante o governo de D. Afonso II -, D.
Sancho que a este sucedeu, em 1223, prosseguiu a política de povoamento
já antes iniciada e uma acção centralizadora, num caos de guerra e de
irresolúveis motins sociais. Era uma óbvia consequência dos fossados e
presúrias que arrasavam áreas para além das linhas territoriais
alcançadas e se encontravam em permanentes retrocessos dos marcos de
delimitação, por novos avanços dos Muçulmanos. Ganhavam-se aldeias e
vilas e perdiam-se as mesmas de imediato ou a curto prazo. Voltava a
insistir-se e recuperavam-se, então.
De modo que,
mais a Norte, em áreas onde seria possível reorganizar a economia, a
Igreja, a defesa militar e a administração, em novas e mais
especializadas vertentes que ficaram a dever-se à acção de Afonso II e
dos seus conselheiros mais experimentados e avisados, o poder central
lançou, de imediato, mãos, criando medidas para o desenvolvimento.
Nestas
situações de recobro da crise antes instalada, o Entre-Douro-e-Minho e a
Comarca da Beira restabeleciam as velhas tradições romano-godas e
anunciavam a desforra: de Chaves a Viseu, passando por Lamego e Tarouca
com a recuperação dos seus dois mais importantes mosteiros cistercienses
e da igreja de S. Pedro.
Seguindo as
pisadas do pai, Sancho II tentou uma política convergente, chamando a si
muitos dos bens e privilégios que haviam sido anteriormente distribuídos
como forma de recompensa por serviços prestados.
Entre os vários
visados a uma maior disciplina no que diz respeito à recuperação de
feudos de maior ou menor superfície, estava o alto clero. De mais ou
menos valia, pelas condições do solo e pela localização mais central,
por concentração ou dispersão dos prédios, pela outorga imparável de
imunidades, pelos abusos constantes que tinham a ver com a aquisição de
alódios de pequenos possessores livres – vinhas, hortas, pomares,
linhares, soutos, searas... -, por compra, doações de tipologias
diversas, testamentos e dotes de bens móveis e de raiz e ainda de
posições de forte implantação política no Conselho Régio, encontramos
aquele importante e influente grupo social, onde, no seu seio,
pontificavam o arcebispo, bispos, cónegos, abades, mestres das ordens,
comendadores e sargentos.
Viam-se,
sem dúvida, protegidos pelo Direito Canónico, como sabemos, mas também é
do conhecimento de todos o contributo que a realeza, os nobres, o povo,
em geral, - embora este com contributos menores -, davam, com grande
frequência, aumentativos dos seus feudos e do seu consequente estatuto.
O rei doava, por um lado, e pretendia retirar pelo outro, alegando que
”poderia acaeçer que os moesteyros e as outras ordijns de nosso Reyno
poderiam conprar tantas possidões que see tornarja en gramde dapno nosso
e do Reyno” (1). No entanto, o governante não deveria ferir o Papado a
quem eram anunciadas, com regularidade, as suas atitudes e as da
nobreza. As regulares surpresas que se faziam às gentes da raia do lado
de Castela ajudavam a compor as doações a todos estes.
A centralização do poder do soberano não
poderia ser levada a bom termo sem uma acção contra os grandes
terratenentes que se apresentavam como donatários de quanto o rei lhes
havia coutado e ocultavam, como podiam, o que, por formas ilegais, ia
parar a suas mãos. Aumentavam as áreas dos prédios, acumulavam cargos
políticos, desempenhavam a importante função de serem o elo de ligação
entre o Reino e o arcebispo e destes dois com a Santa Sé. Na prática,
achavam-se intocáveis e o monarca, directa ou indirectamente, ia
tentando limitar-lhes as doações e coarctar-lhes o modo como as recebiam
e, assim, estabilizar-lhes a importância e o prestígio. |
O menor pretexto bastava para qualquer se considerar
como pertencendo àquela classe [do Clero], e o abuso
de conceder a tonsura tinha chegado ao último auge.
Alexandre Herculano |
2. O rei de Portugal, no entanto, não tinha melhor sorte com o cada
vez mais numeroso sector social laico. Teria de saber bater-se em duas
frentes, se queria reivindicar a fortaleza do antigo imperium de
tradições visigodas, de que se achava herdeiro por direito próprio,
desde os primeiros movimentos que partiram das Astúrias em meados do
século VIII. Como as usuais influências do Clero na monarquia Goda se
haviam conservado nas autoridades cristãs, só, acidentalmente, poderiam
modificar-se, consoante a necessidade das circunstâncias. Na sua
essência, podemos, seguramente, afirmar que a situação política do
clero, nos primeiros tempos da monarquia em Portugal, era a que advinha
da hegemonia dos antepassados romanizados católicos, mas muito
acrescentada pelo próprio monarca, acatada e respeitada a custo e,
consequentemente, temida por quem prevaricava contra ele.
Esta especial importância que residia ainda
nas regalias que o Clero detinha por estatuto próprio, clara e
naturalmente, advinha de direitos firmados na tradição secular e
apoiados pela Santa Sé no auge da sua força e do seu prestígio.
Aceites pela
maior parte dos “Estados” romanos ‘, dado que o seu próprio sistema vem
a receber uma forte influência do Direito Romano Justinianeu - decretos,
cartas decretais, epístolas pontifícias - ou seja, as normas
jurídico-canónicas advinham da livre e directa iniciativa dos Papas, o
Kanoon, a regra ou regula, usado nos primeiros séculos da Igreja, e que
designavam decisões dos concilia. Este ius vetus (do séc. III até ao
Decreto de Graciano, 1140) veio a ser reforçado, com alguns items, as
alterações verificadas com o ius novum (de 1140 até ao concílio de
Trento, 1540), não dando grande margem de actuação aos monarcas
portugueses para os contrariar e fazer rever a autoridade dos principais
representantes da Igreja nacional. Além de que o Cristianismo nasceu e
desenvolveu-se no quadro geográfico do império Romano.
Por outro lado,
não podemos nem devemos omitir o facto de os soberanos, eles mesmos,
terem sido os primeiros a acrescentar, pari passu, o património das
instituições religiosas, contribuindo para o aumento do prestígio do
Clero, de que faziam parte as pessoas de maior respeito e muito
influentes, porque de uma mais sólida cultura e instrução. Como poucos
ou mesmo nenhuns, na sociedade laica, soubessem escrever, nem conheciam
o latim em que se redigiam os diplomas, eram os clérigos, já de si
influentes na corte e no Reino, nas reuniões da Cúria e do Conselho, que
se encarregavam do ensino prestado a leigos e do total e profundo
conhecimento dos actos da governação.
Mais
tarde, era o próprio rei que se referia à importância do Clero, no seu
aconselhamento, inclusivamente, na feitura, revogação ou mera correcção
das leis, afirmando que “pera nom allegarem ignorancia mandamos que esta
Hordenaçõm se publique nas audiençias por primeiro dia do mez”. Num dos
comandos normativos, sublinha, então, em abono do interesse que se devia
ter em que o Clero o aconselhasse, dado que tudo o que fosse feito nesta
vida teria de ser claro e conforme a razão. Logo, pois, se houvesse que
corrigir-se uma lei, chamar-se-iam os entendidos e quanto maior o seu
número tanto melhor. Mas “sse el rrey tamtos homens nom pode auer nem
tam entendidos nem tam sabedores, há ho que fazer com aquelles que
entender que majs amam a Deus e som a prol da terra” (lei XV.
Além disso,
eram embaixadores, plenipotenciários, protonotários na Santa Sé,
chanceleres-mores, regedores da Casa da Suplicação, governadores da Casa
do Cível, livradores do Desembargo, corregedores da corte, ou das
comarcas, ou ainda corregedores-mores, procuradores dos feitos d’el-rei,
legistas, juizes, notários, procuradores, em geral, tesoureiros, mestres
e... confessores.
Entre os seus
privilégios contavam com o Direito Canónico, o qual, durante a maior
parte da Idade Média, foi o único direito escrito (2) e, por
consequência, certos campos do direito privado seriam, exclusivamente,
regulados por aquele Corpus. Ainda, qualquer que fosse o conflito, eram
os cânones da Igreja que o regulavam. Encontravam-se isentos do munera
que consistia no serviço braçal (3); das anúduvas, da vela e da rolda
(4); não solviam imposições extraordinárias, as superdictiones, espécie
de adicionais ao imposto (5), estando, no entanto, sujeitos às canonica
inlatio (contribuições ordinárias), a capitatio humana, ou seja, as
pessoais, fosse a capitatio terrena, isto é, as territoriais. Detinham
foro eclesiástico, extraordinariamente amplo, abrangendo o direito
comum, entre leigos e clérigos: além do tribunal da penitência, o
chamado foro externo – em razão dos humanos, a Igreja julgava todos os
seus clérigos; no que respeitava às matérias, estariam em causa os
sacramentos. Tinham também o direito de asilo, desde o Concílio de
Coiança de 1050, por sinal mais amplo que o da Coroa, tão-só reduzido,
para casos óbvios, diga-se, no Concílio de Oviedo de 1115 (6); o seu
próprio direito impedia rigorosamente a alienação, fosse a que título
fosse, dos seus prédios e era-lhes, inclusive, reconhecido o direito
geral de adquirirem o que quisessem (excepto por compra, segundo um
ordenamento de D. Afonso II, de 1211), o de herdarem ab intestato de
clérigos e monges, na falta de parentes (excepto por doações fingidiças);
tornaram-se irrevogáveis as doações inter vivos e as post obitum (nada
tinham a ver estas com os testamentos), além dos dotes que lhes eram
entregues pelas mais variadas razões, até mesmo em Capelanias.
Detinham a supremacia legislativa sobre as
normas do reino português, em caso de contradição (7) e em questões que
envolvessem matéria de pecado, sendo difícil haver algumas em que tal
não acontecesse. Auferiam das dízimas e redízimas, desde o século VIII,
o que teve, como finalidade, suprir a deficiência das antigas oblatas
dos fiéis, em geral. Recebiam os afolares, quando os pais baptizavam os
filhos; as lutuosas ou doens, as quais, por piedosa devoção, passaram a
obrigação rigorosa, embora terminassem com o fim da Reconquista e ainda
as mandas – donativos oferecidos por rezas de missas por alma dos
benfeitores. |
Numa sociedade em que o maior elemento de coesão
repousa na figura do rei e em que [...] o défice carismático
que quase inevitavelmente resulta da ascensão
ao trono de um rei mal chegado à adolescência não pode
deixar de se constituir como um elemento de perturbação.
Hermenegildo Fernandes, 2006 |
3. Na realidade, serão futuros exemplos notáveis, D. Afonso V
e D. Sebastião.
D. Sancho II, ao iniciar o seu governo, tinha sob a sua
escrivaninha os resultados da demanda do pai no sentido de examinar os
bens materiais de possidentes nobres e eclesiásticos e os respectivos
cadastros, além do registo de inúmeras confirmações que foram
viabilizadas então. Alguns problemas relativos à nobreza teriam sido
medianamente solucionados –será, no entanto, apesar de tudo, força de
expressão da nossa parte – mas faltava-lhe a resolução de inúmeros
problemas que o Clero, muito particularmente, lhe levantava. Enfim,
examinados os casos e prosseguindo o caminhar político do real
progenitor, não estaria de muito boa vontade em resolvê-los a contento
dos queixosos e, mesmo, tentando, aqui e ali, mostrar-se atento e
benevolente, não poderia solucionar todos a favor, exclusivamente, da
clerezia.
Nestes assuntos, apelaram a Roma, e o Papa, com as armas que tinha, já
que o Direito e os direitos não eram seguidos nem salvaguardados a seu
gosto, mostrou-se interessado em meter-se nos assuntos e pôr-se,
maioritariamente, ao lado do Clero, pois não admitia, por princípio
algum, a violação dos poderes adquiridos. A batalha agora trava-se em
duas frentes: o clero contra o rei e os seus ministros e estes contra a
Santa Sé que improvisava rígidas medidas, a fim de causticar a
governação do monarca.
Roma repreendeu o rei variadas vezes e as concórdias e
concordatas eram conseguidas, depois de um número infindo de letras e
bulas papais ameaçadoras com excomunhões e interditos, ao longo do
frágil reinado de Sancho II. A política nacional cindia-se e, uns a
favor outros contra, as respostas e atitudes do soberano acabam por
fazê-lo substituir pelo irmão, o Conde de Bolonha que, à morte do rei
deposto, é Afonso III de Portugal.
Os agravos eram de ordem vária e prendiam-se com atitudes de
D. Sancho II e da nobreza influente que não via com bons olhos ter de
partilhar os seus privilégios com um grupo já de si, altamente
beneficiado e com um extraordinário impacte no “aparelho estatal”.
Os problemas que se iam amontoando nos despachos do soberano
relacionavam-se, para sermos mais concretos, com:
A. O desrespeito pelos direitos de padroado;
B. Os tremendos esbulhos que se traduziam nas exigências relativas à
aposentadoria dos nobres e ao jantar do monarca e do seu imenso séquito
– pelo menos que não fossem agravadas como até então, pelos exactores da
Fazenda;
C. O arrendamento e a venda de igrejas pelos vassalos, o que
desconhecemos como seria possível chegar-se a este ponto;
D. A escassa intervenção do monarca em matérias, mesmo contratuais, que
respeitassem ao pelouro do Clero;
E. O desrespeito por todos e quaisquer direitos pecuniários, em
géneros e serviços dos religiosos, não os devendo compelir a trabalhos
que, pela própria lei do Reino, estavam isentos;
F. A falta de uma boa e capaz solução, proveitosa ao Clero, por
virtude dos resultados das inquirições levadas a termo a mando de D.
Afonso II, em 1220, e das confirmações que as antecederam;
G. A ousadia em causar danos materiais e espoliações nas terras da
Igreja e nos templos a ela pertencentes.
Era demais. Misturavam-se matérias lesivas à Coroa e à Nobreza
que, por estatuto próprio, também tinham os seus direitos e em que a
segunda se achava capaz de tirar bom proveito das actuações irreverentes
contra a clerezia e os seus bens móveis e imóveis, direitos,
privilégios, entre outros. Digamos que o feudo eclesiástico era por
demais poderoso para que os outros grupos permanecessem paralisados e
serenos ante as reivindicações, uma eventual concordância por parte do
rei e as exigências dimanadas do Papado. Eram como muralhas de ferro que
se alteavam, a fim de espartilhar a acção, os poderes e os direitos do
rei, como primus inter pares e chefe das linhagens. Que par e/ou igual a
quais? Chefe de quem? O regime feudal reacende-se em três blocos: rei,
clero e nobreza. O bispo do Porto – eventualmente, o mais ferido entre
todos -, D. Martinho Rodrigues, andava envolvido na questiúncula contra
a Coroa. O arcebispo, D. Estêvão Soares, o mordomo-mor do rei, D. João
Fernandes, o deão de Lisboa, Mestre Vicente, entre muitos mais que
faziam parte do governo... opunham resistência a favor da Coroa. O bispo
não demora, então, a enviar à Santa Sé uma exposição de ofensas que
dizia partirem do monarca, como símbolo daqueles princípios estatutários
da sua “soberania”. Tratava-se de um acrescido rol de agravos.
O rei, ante tudo aquilo, sente-se fracamente desapoiado e
incapaz de pôr termo às questões (não à questão, como lemos em bons
autores, porque elas eram múltiplas). E o Papa “espingardeia” com as
suas bulas, partindo do princípio que os diplomas seriam acatados, sem
discussão, como antes.
Quando a situação parecia ficar definitivamente resolvida com
o consenso dos interlocutores, os dissídios com a Igreja reacendiam-se.
Os abusos continuavam contra a autoridade desta e o que havia sido
estabelecido pelo Direito Canónico, além do que tinha sido decidido pelo
soberano em proveito daquela poderosíssima instituição. As queixas
mantinham, invariavelmente, os mesmos princípios que se viam violados
pelos leigos. Foi, então, a oportunidade que D. Soeiro, bispo de Lisboa,
encontrou para iniciar um novo conflito, por virtude das violações
feitas contra os bens e liberdades da sua diocese. Os templos
continuavam a ser saqueados, os párocos obrigados ao serviço militar e
ao cumprimento das ordens dimanadas do Trono. Novas queixas originaram
novo interdito aposto por Roma, em 1238, e à excomunhão do soberano.
Estratégias políticas levam o rei a novas promessas, no sentido de
guardar, de futuro, os direitos e liberdades do estado eclesiástico (8).
O mal-estar instalado para ficar permaneceria ao longo dos governos
seguintes. Sem dúvida foram eles que, abatendo-se sobre o rei, deram
origem à sua deposição e substituição no seu governo por D. Afonso,
chamado de Bolonha, o futuro Afonso III.
Até então, sucediam-se as ameaças e acções papais e, a 22 de Outubro de
1225, o Sumo Pontífice dirige letras a Tarouca, no sentido de dar uma
solução a este estado caótico que parecia opor bandos de membros da
alta-nobreza contra outros do mesmo grupo social, uns pelo Clero e pela
defesa dos direitos deste, outros contra, reivindicando para os seus
patronos o protagonismo que a Igreja havia tomado ao longo dos primeiros
tempos da nossa monarquia. Neste cenário concreto, Tarouca, por um lado
e Lamego, por outro, cujo bispo, D. Paio Furtado apoia os religiosos
locais. Não sem solicitar à diocese de Viseu idêntica intervenção do seu
bispo, D. Gil. |
No Eclipse da
Esperança, esquecem-se
as dívidas da Glória e sublinham-se as Desventuras.
Camilo Castelo Branco |
4. A 22 de Outubro de 1225, de Latrão, pelas letras Attendentes
karissimum, Honório III, envia ordens ao bispo de Évora e aos abades dos
mosteiros de S. João de Tarouca e de Santa Maria de Salzedas, da diocese
de Lamego, em que, tendo em conta a pouca idade de D. Sancho II e a
proximidade dos Muçulmanos das linhas limitativas de defesa, toma o rei
e o Reino de Portugal sob a protecção da Sé Apostólica e sua, ordenando
àqueles que, se alguém molestasse o referido País, o reprimissem com
censura eclesiástica, sem possibilidade à apelação.
Como se
afiguravam diferentes estas letras papais das que, a 11 de Novembro de
1231, pela bula Venerabilis frater, o papa Gregório IX incumbia, desta
feita o abade de Tarouca e o deão de Zamora de tomarem conhecimento e a
devida nota de que o rei de Portugal lançava mão, como constava, das
igrejas vagas na diocese de Lisboa e as retinha em seu poder enquanto
fosse sua vontade e desejo dos seus colaboradores mais directos que,
eventualmente, o aconselhavam a tal. Em 1225, D. Sancho II contava
dezasseis anos de idade; em 1231, tinha 22 anos, continuando a reinar
até 1245.
No primeiro
caso, coube a Lamego, nas pessoas dos abades dos seus dois importantes
mosteiros cistercienses – “Sancti Johannis de Tarauca et [...] de
Salzeda abbatibus, Lamacensis diocesis”, o protagonismo no desenrolar de
uma política de protecção do novo e jovem rei de Portugal: “Attendentes
karissimum in Christo filium nostrum jllustrem regem Portugaliae fauore
apostolico eo amplius indigere, quo est in annis adolescentie
constitutus et uicinus inimicis fidei christiane, personam et regnum
suum cum omnibus iuribus et honoribus suis suscepimus sub protectione
apostolice sedis et nostra, discrictius inhibentes ne quis iura sua
temere inuadere aut quomodolibet perturbare presumat”, seja, pois,
castigado com censura eclesiástica, sem recurso (9).
No segundo caso,
face à bula, o Sumo Pontífice incumbe o abade de S. João de Tarouca e o
Deão de Zamora de conhecerem a referida situação que lhe havia chegado
ao conhecimento no caso de, efectivamente haver abuso, de maneira que
ninguém ficasse privado do culto divino, enquanto o Papa não
providenciava de outro modo, devendo lançar censuras eclesiásticas a
quem quer que tentasse colocar obstáculos à execução das determinações
de romanas (10).
Não foram brandas as
tomadas de decisão do Papa, ante os relatórios. Dos inerentes avisos
foram encarregados o bispo, deão e chantre de Zamora, o bispo de
Cerriano e o arcediago de Palença de aconselhamento a D. Sancho II e de
especial missão junto dos executores das violências imputadas ao rei.
Por que razão, o
Papa parece, então, poupar o monarca português das humilhações que
inflige aos seus ministros e mesmo aos padres que com estes colaboram?
Atendamos que nos
situamos nos anos entre 1225, 1231 e seguintes.
A partir de 1226, o
nosso rei inicia a campanha militar na comarca do Alentejo,
aproveitando-se das lutas que Afonso IX de Leão empreendia contra os
Mouros. Tendo invadido todo o actual distrito de Badajoz, decidiu tomar
Elvas, onde fez a sua estreia como soldado. Perdida, veio a ser
recuperada três anos depois, recebendo carta de foral. Em 1239 mandou
tomar Jerumenha; em 1232, foi a vez de Serpa; em 1234, Aljustrel; em
1238, Mértola, Alojafar de Pena, Aiamonte, Cacela e Tavira. E o grande
problema que ofuscaria a vida política do jovem monarca, tinha,
precisamente, neste ponto, nas sucessivas batalhas da Reconquista, e no
sucesso das mesmas, a sua origem.
Contraditório ou não, de facto, a nobreza
vitoriosa, inchada de orgulho das suas vitórias militares, regressava às
suas terras com a “arrogância dos vencedores, contribuindo com os seus
distúrbios e prepotências para anarquizar a sociedade”, e, por outro
lado, a clerezia cimeira aproveitava esses distúrbios para reiterar as
suas já antigas exigências “e se imiscuir nos assuntos da vida pública”.
A luta tornou-se, então, permanente entre os ricos-homens e infanções,
de um lado, e os representantes da Igreja, do outro. D. Sancho II,
incapaz de dar uma solução definitiva a estes distúrbios, sentiu-se
espartilhado por ambas as facções e deu-se o inevitável colapso. Após a
sua abdicação por bula papal, foi substituído pelo irmão no governo do
Reino, com promessas sobre promessas e cujo incumprimento se arrastou,
em Portugal, por todo o século XIV (11). |
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(1)
Cfr. Livro das Leis e Posturas, org. por Nuno Espinosa
Gomes da Silva e Maria Teresa Campos Rodrigues, Lisboa, Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, 1971, lei de 1211.
(2)
Além das leis casuísticas, resultado do esforço de Afonso II e
dos monarcas que se lhe seguiram, só conhecemos o Livro das Leis e
Posturas que terá sido publicado em finais do século XIV, princípios
do seguinte.
(3)
Referimo-nos, por exemplo, a jeiras e corveias, serviços
gratuitos que tinham de ser prestados ao rei e aos senhores laicos e
eclesiásticos, nas suas terras e termos e que consistiam em atalaias
(velas e roldas), e veredas (arranjo de caminhos, pontes, muros, torres,
fontes…), além da obrigatoriedade em servi-los no amanho e cultivo das
terras e na procura, nos bosques, de alimentos e matérias- primas para
as suas “indústrias”, entre outros.
(4)
Disse D. Afonso II “Porque nos pareçe cousa desaguisada que
aquelles que ssom a serujço de deus de sseerem aguardados por poderjo
segrel […] Estabeleçemos que […] non seiam costraniudos em nas colheytas
que pera nos tirarem nem pera aqueles que de nos as terras teuerem nem
as Remdas, quamdo as os Conçelhos assy querem teer has nossas teRas
Arendadas nem nos muros. Nem en toRes ou hir fazer nen atallayas”.
Livro das Leis e Posturas, cit., lei de 1211.
(5)
Tais como sisas, jugadas, pedidos, empréstimos, fintas, talhas,
entre outros.
(6)
Estavam, então, em causa o servo de nascimento, o profanador da
igreja, o traidor convicto, o ladrão público, o excomungado e os
clérigos fugitivos.
(7)
Estabelece uma lei de 1211 que “as sas leys sseiam guardadas e os
dereytos da sancta Egreia de Roma Conuem a ssaber que se forem fectas ou
estabeleçudas contra eles ou contra a sancta Egreia que nom ualham nem
tenham”. In Livro das Leis e Posturas, cit..
(8)
Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, tomo
I, pp. 402 e ss.. António Domingos de Sousa Costa, Mestre Silvestre e
Mestre Vicente. Juristas da Contenda entre D. Afonso II e suas Irmãs, Braga, 1963; Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal.
Vol. I. 1080-1415, 3.ª ed., Lisboa, Verbo, 1979, pp. 124 e ss..
(9)
Archivo da
Vaticana, Reg. Vat., Vol. 13, fl. 10, in Monumenta Henricina,
ed. E notas de António Joaquim
Dias Dinis, Vol. I, Coimbra, 1960, doc. 32, p. 57.
(10) Visconde de Santarém, Quadro Elementar das Relações Politicas
e Diplomaticas de Portugal com as diversas potencias do mundo, tomo
IX (Relações políticas e diplomáticas com a Cúria Romana, de 1137 a
1431), dir. por L. A. Rebelo da Silva, Lisboa, Academia Real das
Ciências, 1864, p. 109. Alexandre Herculano, História de Portugal,
9.ª ed. tomo II, Livrarias Aillaud e Bertrand, s.d., p. 322.
(11) Christóvão Rodrigues Acenheiro, “Chronicas dos senhores reis de
Portugal”, in Collecçaõ de Historia de Portugal, tomo V, Lisboa,
Imprensa Nacional, 1926; Crónica dos Cinco Reis de Portugal, ed.
de A. de Magalhães Basto, Porto, Livraria Civilização, 1945; Frei
António Brandão, Crónicas de D. Sancho II e de D. Afonso III, ed.
de A. de Magalhães Basto, Porto, Livraria Civilização-Editora, 1946;
Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, ed. de Carlos da Silva
Tarouca, 3 Vols., Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1952-1953;
Maria Emília Cordeiro Ferreira, “Sancho II, D. (1209-1249) ”, in
Dicionário de História de Portugal, dir. por Joel Serrão, Vol. V,
Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1975, pp. 443-445; A. de Almeida
Fernandes, A Honra de Gouviães e a sua estirpe (Sécs. XII-XVI),
Braga, 1971, pp. 70 v e ss. Tarouca na História de Portugal, I,
Viseu, 1990; As Dez Freguesias do Concelho de Tarouca (História e
Toponímia), Braga, Câmara Municipal de Tarouca, 1995; Duarte Nunes
do Leão, Chronica Del Rei Dom Sancho o Segundo, in Tesouros da
Literatura e da História, introd. e revisão de M. Lopes de Almeida,
Porto, Lello e Irmão-Editores, 1975, pp. 125-144; Rui de Pina,
Coronica do Muito Alto, e Esclarecido Principe D. Sancho II, ibid.,
1975, pp. 131-155; José Varandas, “Bonus Rex” ou “Rex Inutilis”. As
Periferias e o centro. Redes de poder no reinado de D. Sancho II
(1223-1248), dissertação de Doutoramento em História Medieval,
Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2003 (polic.);
Hermenegildo Fernandes, D. Sancho II, Lisboa, Círculo de
Leitores, 2006, pp. 187 e ss.. |
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João Silva de Sousa. Prof. da Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Académico
Correspondente da Academia Portuguesa da História) |
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