|
Revista TriploV
de
Artes, Religiões e Ciências
Nova Série |
|
|
|
|
|
JOÃO SILVA DE SOUSA |
Professor da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Académico Correspondente da Academia Portuguesa da História. |
|
João de Barros: Um
Polígrafo do Humanismo |
|
1. Nasceu na cidade de Viseu ou
no aro da mesma, por volta de 1496, como deduz Carolina Michäelis de
Vasconcelos, no Panegírico da Infanta D. Maria (1). Quando
herdeiro, foi-o de boas famílias, embora bastardo e, muito novo.
Acolheram-no na Corte (2). Seu pai, Lopo de Barros, residente em Braga,
havia sido corregedor da comarca do Alentejo (3) e escudeiro do rei. Seu
avô. Álvaro de Barros, padrinho de D. Jorge, filho do Vedor-Geral, D.
António de Ataíde, o 1.º Conde de Castanheira, era tido por D. João III
(4), como um dos maiores amigos de infância, o que nos leva a crer que
tenha crescido e fosse educado junto do Príncipe e futuro rei de
Portugal. Nas palavras de D. Manuel I, “foi criado de minha Casa e
Feitor das Casas da Índia e Mina” (5) – e de Ceuta -, onde o monarca lhe
fez mercê de “todas as honras, privilégios, liberdades, graças e
franquezas que são concedidas e outorgadas aos meus Desembargadores”,
como ele o deixou dito (6). De menino, começou a servir no paço real,
“na idade do jogo do pião”, onde recebeu disciplina e cultura (7) (Fig.
1) |
|
Estátua de João de Barros, no Parque Aquilino Ribeiro, em Viseu
|
|
Para aqui foi trazido por D.
João de Menezes, 1.º Conde de Tarouca, capitão da praça de Tânger,
expedicionário a Arzila, cavaleiro-fidalgo, membro do conselho do
soberano e camareiro-mor do infante D. João, homem da máxima influência,
a quem D. Lopo de Barros havia recomendado o filho. Não deve ter faltado
a intervenção de seu tio, o cronista Lourenço de Cáceres que fora mestre
do Infante D. Luís (8), e dos conhecimentos de Frei João Álvares, Duarte
Galvão e Garcia de Resende, todos homens do mesmo ofício.
Foi, pois, na Casa do rei de
Portugal, em Lisboa, ou onde esta se encontrasse, por motivos políticos
ou lúdicos, no País, que João de Barros tomou contacto com a
gramática, o que era já usual havia tempos e sobretudo desde o
governo do Príncipe Perfeito, quando os representantes dos concelhos
solicitaram em cortes que a nobreza aprendesse o equivalente ao início
do Trivium (Gramática, Retórica e Dialéctica) (9). Vinham depois
as Ciências, o Latim e o Grego (10). Casou com D. Maria de Almeida, de
Leiria, e teve dela cinco rapazes e cinco raparigas (11): Jerónimo,
António, João, Diogo e Lopo de Barros; e Maria de Almeida e Isabel de
Almeida que casou com um homónimo do irmão, Lopo de Barros, e Catarina
de Barros, - mulher de Cristóvão de Melo, filho de Diogo de Melo da
Silva, vedor da rainha D. Catarina -, e Ana de Barros, além de uma
última cujo nome se desconhece.
Seis anos mais velho do que D.
João III, conviveu muito de perto com este, e, além de criado e amigo,
foi seu guarda-roupa (12), cargo que declara ter desempenhado no Prólogo
da sua Chronica do Emperador Clarimundo.
Quando em 1521, D. João III
subiu ao trono, João de Barros foi viver, sobretudo a partir de 1525, em
sua casa, em Lisboa, transitando entre esta e o Paço e a sua quinta da
Ribeira de Alitem – aliás, granja de seus sogros – junto a Pombal, onde
aconteceu recolher-se, um pouco demoradamente, cinco anos depois,
aquando de um surto de pestenença “de grandes inundações de água e de um
tremor de terra que se verificou, no ano seguinte, a 26 de Janeiro”,
como no-lo refere o seu biógrafo Manuel Severim de Faria (13).
Entretanto, havia recebido o
cargo de Feitor do Castelo de S. Jorge da Mina, na Costa do Ouro, para
onde partiu de Lisboa, Belém, em 1522. Foi o início de uma de uma nova
actividade de cariz burocrático, tendo regressado, em 1525, para ser
provido, em substituição de Vasco Queimado que se aposentara, na função
de tesoureiro da Casa da Índia, Mina e Ceuta que desempenhou até
Dezembro de 1567 – data em que lhe sucedeu o Dr. Henrique Esteves da
Veiga. Ocupando o lugar de feitor da Casa da Índia, ficou como
responsável pela expedição das armadas e pelo comércio de África e Ásia,
lugar de grande responsabilidade, como o próprio fez questão de
salientar no Prólogo da Década Primeira. Queixava-se de que eram
“cárregos que com seu peso fazem acurar a vida, pois léuam todolos dias
dellas e com a ocupaçam e negócio de suas armadas e cõmércios, afogam
todo liberal engenho”. Por isso, se via obrigado a dividir o tempo,
“dando os dias ao offiçio e parte das noytes” à escritura da Ásia.
A 8 de Março de 1535, foi-lhe
outorgada uma capitania no Brasil, numa região das mais nobres da
extensa colónia, “em grandeza de rios, fertilidade de plantas,
abundância de animais e fama de riquíssimas minas”, além da exuberância
da terra e das suas gentes (14): toda a costa e o hinterland dos
actuais Estados do Maranhão, Rio Grande, Ceará e Pianhy.
Não foi bem sucedido na
administração da capitania, perdeu todos os seus bens e com a hipoteca
dos mesmos pagou às viúvas e órfãos de náufragos falecidos em acidentes
vários ocorridos com barcos de seu próprio comércio e do País,
regressando muito pobre e descontente – ainda mais do que quando partiu. |
|
2. A sua obra mais célebre é, sem dúvida, as Décadas da Ásia.
Barros dividiu este texto em estudos e narrativas que apresenta,
agrupando-os em períodos de cinco anos: na I, recalca Gomes Eanes de
Zurara e estuda os descobrimentos portugueses desde o Infante D.
Henrique até 1505; na II, dedica-se ao período de 1505 a 1515; na III,
ao intervalo entre 1515 e 1525 e, finalmente, a IV, ao período que
decorre entre 1525 e 1539. Como a IV década só surgiu publicada em 1615
por João Baptista Lavanha, que a retocou por conta e risco, existem duas
IV Décadas (15). Quando Diogo do Couto continuou a obra de João de
Barros, desconhecendo a existência de uma quarta Década, fez uma sua, no
seu conjunto até à X Década da Ásia. |
|
(Gravura
associada à edição de 1628 da década primeira da Ásia, de
João de Barros, Biblioteca Nacional de Lisboa) |
|
João
de Barros orienta-se por Tito Lívio, autor de uma importante história do
povo romano (desde a fundação até Drusso, no ano 9 a. C.).
A partir desta obra exemplar de
Barros, o nosso autor deixa bem clara a sua própria concepção de
História, de que realçamos os três seguintes objectivos:
1.º A História, como tal, deve falar
verdade, mas sem que infame as pessoas; 2.º Tem de ser uma
verdadeira lição de Moral;
E, em 3.º lugar, a História deve ser contada com uma correcta ordenação
e um bom estilo.
Assim, a História deve seleccionar a verdade.
No Prólogo da Década III,
o nosso autor diz que “a primeira e mais principal parte da história é a
verdade dela; e, porem, em algumas cousas, não há-de ser tanta, que se
diga por ela o dito da muita justiça que fica em crueldade,
principalmente nas cousas que tratam da infamia d’algum, ainda que
verdade sejam”.
Barros vai, então, narrar,
sobretudo, verdades edificantes e ocultar as que possam redundar em
desfavor dos Portugueses, embora condene os exageros, bem como a
lisonja, sonegando também defeitos físicos, como o pintor o fez a
Filipe, pai de Alexandre Magno.
A História deve ser ordenada e
retórica. Ordenada, racionalmente, nos assuntos que expõe e tem ainda de
ater-se à justa proporção, na sua exposição escrita. Escolherá, como
tenciona fazer, apenas “palavras lavradas e polidas dos mais ilustres
feitos”, não dando qualquer importância a coisas miúdas, a fim de “nom
fazer mui entulho”. Diz mais, curiosamente, que cada grupo profissional,
interessado nas coisas da Índia, esperaria, por certo, que ele se
referisse tão-só aos feitos da respectiva especialização de cada qual: o
marinheiro às viagens. Assim, quanto à navegação, diz-nos que o seu
estudo abrangerá “uma universal geographia de todollo descoberto”, com
mapas e tábuas e latitudes e longitudes “há quall nom sofre compostura
em linguage e por isso irá em latim”.
O geógrafo à localização das
terras, prendendo-se o seu labor de historiador com o que foi dito
acima.
O comerciante, aos preços e às
qualidades dos géneros, como no que se refere às especiarias.
O curioso – o etnólogo –, à
variedade e aos costumes dos nativos… E, de tudo, só falará o essencial,
pondo de parte o anedótico e o que for particular e demasiadamente
circunstanciado. Mas, acerca do modo de redigir, conclui:
“Tem tanto
poder a força da eloquência, que mais doce
e aceite he na orelha e no animo uma
fabula composta com
ho decoro, que lhe convem, que, ua uerdade,
sem ordem, e
sem ornato, que he uma forma natural della”.
(16)
Assegura-nos, no entanto, que
mencionará as suas regras universais e particulares, as qualidades e
quantidades das coisas da Natureza ou da indústria que os homens
costumam explorar, os pesos e medidas, entre outros.
Assim, no “título da real coroa destes
Regnos”, se entendem três coisas distintas:
“ha primeira he Conquista, a quall trata da
milícia”…
A segunda, “ha Navegaçom, a que corresponde a
geographia”
E, a terceira “ Comercio, que convem aa mercadoria”.
E das três coisas vai escrever
separadamente, a fim de demonstrar que o Rei de Portugal é legitimamente
“Senhor da Conquista, da Navegaçom & do Commercio de Aquém e de Allem
Mar em Afriqua”.
Ainda acerca da Conquista
e da Milícia, refere-se à Conquista portuguesa que se
estendeu a todo o Mundo, e divide-a em quatro partes:
“à primeira […] chamamos Europa, começando no tempo
em que os Romanos conquistaram a Espanha”; “à segunda […]
chamamos África, cujo princípio é a tomada de
Ceuta”; “ a ter -
ceira […] o seu nome é Ásia […], começando no
tempo do In -
fante D. Henrique”; e a quarta “haverá nome
Santa Cruz”.
Por certo, João de Barros não se está a referir ao que resultou do seu
trabalho, mas ao que intentava fazer, o que nos leva a crer que se
trataria de uma História “à dimensão do Planeta”.
Como lição de moral, a História
que o autor considera irrepetível, pode, contudo, dar os seus frutos “em
proveito próprio e comum”. Homem do Renascimento, considera o facto
histórico como uma experiência. A meditação da História, como uma escola
para governantes e súbditos: uns e outros, se quiserem, têm todas as
bases para aprenderem a acautelar o futuro, evitando erros. Neste campo,
transmite um aviso ao governante: se os erros lhe são indiferentes, os
súbditos acautelar-se-ão.
No entanto, a sua primeira obra
– ao que consta – foi a Chronica do Emperador Crarimundo – uma
extensa novela de cavalaria com um enredo complicadíssimo de personagens
e aventuras que, em 1520, o autor ofereceu e dedicou ao rei D. Manuel I,
publicada antes de embarcar para a feitoria de S. Jorge da Mina. Disse
ter sido escrita “nos seus vagares de roupeiro” (Fig. 2) |
|
Rosto
do livro de João de Barros, Primeira Parte da Crónica do
Emperador Crarimundo..
Edição
de Lisboa, António Alvarez, 1601 – Biblioteca Nacional de Lisboa |
|
Tinha, então, 26 anos, quando
foi dada à estampa, em Coimbra, em 1522. Como ele mesmo o dizia, o texto
era um debuxo da estrutura em que acreditava poder vir a
alicerçar um estudo de maior envergadura – o relato dos Portugueses na
Índia, entre as demais paragens do Mundo, como veio a legar-nos com a
publicação das já referidas Décadas da Ásia. Conta-nos a vida e
feitos do cavaleiro Clarimundo, que chega a ser Imperador de
Constantinopla e do qual, segundo o livro, descendem os reis de
Portugal. O autor termina, prometendo uma segunda parte, que não se
chegou a imprimir. Talvez não surpreenda que, perante uma decidida
intervenção política através da escrita historiográfica, também a sua
estreia ficcional, o livro de cavalaria, a Crónica do Imperador
Clarimundo, costuma ser focado desde uma óptica pelo menos
particular a que tencionamos submeter estas páginas, a uma
reconsideração crítica. Iniciou-se, pois, na actividade literária, com
uma novela de cavalaria, um género literário muito apreciado na época –
quanto o Romance histórico o foi no século XIX e o volta a ser hoje -,
como o documentaram outras novelas suas contemporâneas e os autos
cavaleirescos que Gil Vicente ia escrevendo para o Teatro. Trata-se de
uma genealogia imaginária do Conde da Terra Portugalense, D. Henrique,
com o propósito de sublinhar a dois riscos os feitos dos nossos
monarcas. Em algumas passagens, preanuncia-se já a visão épica que Luís
de Camões vai concretizar nos seus Os Lusíadas (Fig. 3)
A origem dos reis de Portugal –
realça-o – estava tão distante que “nos cansaria a memória”, se nos
metêssemos a olhar para trás na sua procura, “não achando termo onde
descansasse […] Para chegarmos a essa fonte, havemos de resolver a
antiguidade da nobreza dos reis” de outras paragens.
Desta feita, os reis de Portugal
descendiam de um imaginário soberano da Hungria e de Constantinopla, pai
de D. Sancho, um dos antecessores do Conde D. Henrique e de D. Afonso
Henriques, de nome Clarimundo, de tal sorte que Barros faz entroncar a
origem de O Venturoso, filho que era de D. Fernando e neto de D. Duarte,
na “antiga nobreza dos reis da Hungria, Castela e Aragão, Leão e
Navarra, e os triunfos na guerreira gente dos Godos, juntamente com os
reinos de Inglaterra, Boémia, França e do Sacro Império Romano-Germânico”.
Uma outra obra, esta escrita no
sossego da sua quinta, foi a Rhopica Pneuma ou Mercadoria
Espiritual – significado do seu título em Grego –, publicada em
Lisboa, em 1532. É, enfim, o que se retira de uma carta, escrita na
Ribeira, em 25 de Maio de 1531, a Duarte de Resende, seu amigo e
parente, o qual regressava da Índia. Pedia-lhe, então, Cícero para uma
tradução para o Português: a Amizade e os Paradoxos.
Barros enviou-lhe a Rhopica Pneuma, para que ele a mandasse
imprimir na casa de Germão Galhardo (Fig 4). |
|
Rosto
do livro de João de Barros Ropicapnefma, Lisboa, Romão
Galhardo, 1532. Biblioteca Nacional de Lisboa |
|
Livro de carácter moral, sátira cáustica e primitiva, elaborado em forma
de alegoria, respeitava a matéria política e administrativa e viria a
ser incluído no Índex, não tanto por expor doutrinas heréticas ou
mesmo perigosas, por cuja leitura e divulgação serem desaconselhadas,
mas por não deixar bem esclarecidos certos assuntos mais delicados, tais
como o anti-sionismo da época e algumas críticas de carácter erasmista
às classes dirigentes. Durou até 1581 (17). O sentido de reforma e de
mudança expresso na Rhopica condensa-se em dois items
principais: a Pátria e a Religião que dão aos homens uma mente sã,
tornando-os bons. É uma obra apologética, com vista a “provocar os
culpados à penitência ou, ao menos, à vergonha que é parte dela” (18). É
uma conversa, cujos interlocutores ou participantes, ao jeito do
simbolismo medievo, são quatro entidades alegóricas: o Tempo, a Vontade,
e o Entendimento que pretendem passar no limiar para a vida eterna as
mercadorias mundanas; a Razão – não a razão natural, mas a fé católica –
que vigia a “ponte” da Morte e examina, atenta e severamente, as
mercadorias. Como ele mesmo acentua, na Introdução, “a mayor parte desta
obra vay em metáfora e que as cousas e auctoridades são as que a
Vontade, Entendimento e Tempo argúem contra a Razão, são as que qualquer
infiel e pecador pode arguir” (19).
Assim, João de Barros propõe-se
combater heresias que neguem a “imortalidade da alma”, a “existência de
prémios e sanções na vida extraterrena” e a “superioridade da religião
cristã sobre as demais fés”.
É por intermédio de censuras que
o texto nos dá boa conta da forma como o homem vive no mundo de
Quinhentos:
“Uns perguntam pela
medrança de el-Rei; o Rei pelo seu Estado; Prelado, se morrerá o outro a
que paga pensão e terá mitra; o legista, se entrará cedo no Parlamento
ou palramento; o mercador, se poderá segurar a nau a seu
salvamento; o marinheiro, pela viagem que espera fazer; o rendeiro, em
que ramo ganhará mais aquele ano; o marido pergunta pela vida da mulher
e ela, pela morte dele; a solteira, se casará com um que lhe quer bem, e
ele, por outra, que tem melhor casamento. Enfim, senhores e servos,
letrados e ignorantes, velhos e moços, leigos e sacerdotes, os mais
deles por esta via, queriam saber o efeito dos seus desejos”..
E, mais directo diz:
“As minhas palavras,
porque somente levam fé de verdade, e não de elegância mundana,
parecem-te desordenadas: e esta desordem que eu sigo é a ordem do cavalo
de xadrez, saltando por cima das peças, uma e a outra parte, por acudir
ao principal da minha tenção, que é trazer-vos ao mate da vossa”.
A propósito, referindo-se à Natureza:
“Deixa-as [– as palavras
-] seguir sua desordenada ordem, que estes enganos que os homens recebem
em, suas próprias cousas, os faz viver contentes, com que o mundo se
conserva” (20)
O texto foi muito apreciado por
humanistas do seu tempo e, vivamente, elogiado pelo espanhol Luís Vives,
dado que o crédito de João de Barros – o homem e o escritor, a sua obra
e o seu pensamento – corria a Europa.
A par deste texto ou pouco
depois, sai a Cartinha com os preceitos e mandamentos da Santa Madre
Igreja, (Lisboa, 1536), cuja missão principal é evidenciar o
princípio de que a base do Ensino é a língua portuguesa e não mais, nem
tão-só o Latim.
É um livro original, a primeira
obra ‘infantil’ escrita em Português (21), que o Santo Ofício deixava
passar em 1539, editada em Lisboa, por Luís Rodrigues (Fig. 5). |
|
Enfim, a Cartinha com os Preceitos e
Mandamentos da Santa Madre Igreja constitui um instrumento
pedagógico inovador, uma vez que, de forma pioneira, apresentou as
letras do alfabeto associadas a desenhos. A Cartinha de João de Barros,
para seus contemporâneos, tinha uma dupla tarefa: educar e evangelizar,
pois, além de ensinar as primeiras letras, esta cartilha servia como
instrumento de evangelização ao levar, em língua portuguesa e em Latim,
a doutrina católica aos povos recém-contactados pela expansão marítima.
No mundo português do século XVI, a expansão do império lusitano
acarretou também a expansão da língua portuguesa. Por sua vez, esta,
irradiando-se de Lisboa, não se limitou ao ultramar e teve, como
instrumentos pedagógicos, por um lado, as cartilhas para aprender a ler
e, por outro, as gramáticas e ortografias, entre elas, as de Fernão de
Oliveira de 1536, a de João de Barros, muito pouco posterior a esta,
datando de 1540, a de D. Fr. João Soares, bispo de Coimbra, publicada em
1554, a de Gândavo, de 1574, e, finalmente (sem que assim seja, na
realidade), a de Duarte Nunes do Leão, um reputado cronista do Reino e
reformador dos oficios, saída em 1576.
Publica-se também
a Grammatica da Língua Portugueza, com os mandamentos da Santa
Madre Igreja, dada à estampa pelo mesmo, em Lisboa, 1540 (22) – pouco
depois da de Fernão de Oliveira que era de 1536 (23). Condenado o erro
pedagógico dos mestre de Latim que desprezavam o ensino da gramática e
da língua portuguesa, o Diálogo era o complemento, por um lado,
especulativo, por outro, prático da Gramática – a origem das
línguas e a sua diferenciação e evolução.
A intenção
fundamental deste texto era louvar “a nossa linguagem que temos posta em
arte, com que leve mais ornato que as regras grammaticáes” (24). Em a
Cartinha – dizia o autor – “démos arte para os mininos fàçilmente
aprenderem a ler […]. Fica agora darmos os preceitos da nossa Grammática,
de cujo titolo intitulamos a Cartinha, como fundamento e primeiros
elementos da gramática” (25). (Figs . 6 a 9). |
|
|
Gravura do livro de João de Barros
Grammatica da Língua Portuguesa, Lisboa, Luís Rodrigues,
1540 – Biblioteca Nacional de Lisboa |
Árvore da Gramática, in
Grammatices Rudimenta –c. 1540- de João de Barros |
|
|
Sinais
Gramaticais em João de Barros: parte do abecedário – B.N.L. |
|
|
Abecedário
ilustrado da obra de João de Barros, Grammatica da Lingua Portuguesa…,
Lisboa, Luís Rodrigues, 1540 – Biblioteca Nacional de Lisboa) |
Com o Diálogo, João de Barros põe em evidência a importância, o
ornato, a fluência, a sonoridade, a variedade vocabular…da língua
portuguesa, como ela era moldável e actualizável.
E escreve:
“Nem todolos
que ensinam ler e escrever
sam pêra o oficio que tem
[…] Ua das cousas
menos oulháda que há
nestes reinos é consin –
tir, em todalas nobres
vilas e cidades, qualquer
idióta e nam aprovado em
costumes de bom vi-
ver, por escola de
insinár mininos” (26).
É que a História era “um
espertador do entendimento, a Instrução, a seu ver, um meio
imprescindível à promoção dos homens e a ausência do gosto de saber uma
degenerescência da sua natureza.
Entretanto, saíam os
Panegíricos de D. João III, pronunciados em Évora, em 1533,
publicados em Lisboa, em 1665, a exaltar as virtudes do soberano e a sua
zelosa política pelo bem da Pátria; e o da Infanta D. Maria, em
1555, quando o rei a tornou duquesa de Viseu, não de todo
desinteressadamente, pois João de Barros contava que o soberano lhe
confiasse a missão de escrever sobre a nossa História do Ultramar e
Continental.
Nos Panegíricos,
salientava que o monarca tinha de ser o Príncipe Perfeito; o justo
equilíbrio na governação; aquele a quem competia o estabelecimento da
Paz e a declaração da Guerra que deviam entroncar na Justiça. Para isso,
proponha que se tirassem ilações do Passado e se reflectisse e aceitasse
a Origem Divina do Poder.
Sintetizando, a História, sempre
ordenada e em bom estilo, tem o dever de permitir a visualização das
justas medida e harmonia das partes. Por isso, ela irá falar,
proporcionalmente, de tudo, afastando-se do anedótico e do particular,
demasiadamente circunstanciados e discriminativos, num estilo elegante
quanto possível, na medida em que “tem tanto poder a força da
eloquência, que mais doce e aceita é na orelha e no ânimo uã fábula
composta com o decoro que lhe convém, que uã verdade sem ordem e sem
ornato, que é a forma natural dela” (27):
“A
História é um agro e campo onde está semeada
toda a doutrina divinal, moral, racional e
instrumental,
quem pastar o seu fruito, convertê-lo-á em
forças de in
tendimento e memórias pêra uso de justa e
perfeita vi –
da, com que praz a Deus e aos homens” (28).
Em suma: Barros foi um homem que
muito pouco teve de agradecer à sua sorte. Agarrou-se, sobretudo ao
trabalho intelectual multifacetado, nos âmbitos da Filosofia, História
(Ciência e Crónica, apologética e realista, metafórica e espontânea,
monumental e parcelar…), Geografia, Gramática, Etnologia, Filologia…,
não tendo contado com grandes favores – pelo menos tão prolongados
quanto seria de esperar para um Historiador Cortesão –, e, entre os
poucos, de resultados diminutos e até mesmo magros e insignificantes.
Aliás, não fugiu à regra, e tanto é assim que, ao falecer, poucos anos
depois, nem do seu corpo se soube mais.
João de Barros morreu em 1570.
Mais um dos que a Cultura abarca e permite que continuem a viver, na
História, a Ciência que mais Cultura nos dá. |
|
Obras do Autor |
Chronica do Emperador Crarimundo,
1522
Ásia de joam de Barros dos fectos que os Portugueses
fizeram no descobrimento e conquistas dos mares e terras do Oriente,
1.ª ed., Lisboa, Germano Galhardo, 1552;
Segunda Década da Ásia, 1.ª ed.,
Lisboa, Germano Galhardo, 1553;
Terceira Década da Ásia,
Lisboa, João da Barreira, 1563;
Quarta Década da Ásia, edit. e
anotada por João Baptista Lavanha, refundida, Madrid, Stamperia Reale,
1615. As quatro são compostas por 40 livros.
Rópica Pnefma, ou Mercadoria
Espiritual, 1532;
Cartinha para aprender a ler,
1539;
Grammatica da Lingua Portuguesa,
1540;
Diálogo em Louvor da nossa Lingoagem (com os preceitos e
mandamentos da Santa Madre Igreja), 1540;
Diálogo da Viciosa Vergonha,
1540;
Diálogo Evangélico sobre os artigos da fé,
1543;
Panegíricos (de D. João III, em
1533 e da Infanta D. Maria, em 1555);
Diálogo de Joam de Barros com dous filhos seus sôbre
preceptos moraes com prática deles em modo de jogo,
1540. |
|
Algumas obras não publicadas |
-GeographiaUniversalis
-Tratado de Causas ou Problemas moraes História Natural do Oriente...
- História dos Reis da Pérsia, Grão Tamerlão e Preste João
Muitas outras obras de João de Barros ficaram por mencionar, e algumas,
inclusivamente, por publicar. Na verdade, os seus textos nunca foram
reconhecidos ao nível da família que o acusava de perder tempo com os
escritos. Pode mesmo dizer-se que, na generalidade, a sua obra não teve
o reconhecimento devido na época, exceptuando os apoios de alguns homens
de cultura e humanistas (alguns deles estrangeiros). Conclui-se, porém,
que Barros tinha noção do poder dos seus trabalhos e dos sacrifícios que
fez por eles, como menciona no Prólogo da Quarta Década da Ásia.
|
|
Notas |
1Ver Alexandre
de Lucena e Vale, No 4.º Centenário de João de Barros, Viseu,
1970, pp. 4 e ss., que diz ser ponto assente Viseu como cidade natal de
Barros. A ed. mais recente de que nos servimos do Panegírico de mui
alta e esclarecida princesa Infanta Dona Maria nossa senhora foi
publ. por Manuel Rodrigues Lapa, João de Barros. Panegíricos, 2.ª
ed., Lisboa, Liv. Sá da Costa Editora, 1943. Vejam-se pp. 161 e
seguintes. Ver João Silva de Sousa, “João de Barros um Polígrafo do
Humanismo Português”, in A Escola e os Descobrimentos. João de Barros
& Abraão Zacuto, Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação
para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998, pp. 7-30.
2Lisboa, IAN/TT., Chanc. de D. Manuel
I, , l.º 14, fl. 19.
3Carta de
nomeação de 15 de Janeiro de 1499. Cf. Lisboa, IAN/TT., Chanc. de D.
Manuel I, l.º 14, fl. 19 ; Corpo Cronológico, parte II, m.
97, n.º 57 que refere a atribuição de uma tença de 10 000 rs brancos por
ano, a 23 de Julho de 1521. Cf. pelo Venturoso, no dia 24 seguinte.
Lisboa, IAN/TT., Chanc. de D. Manuel I, L.º 18, fl. 92 e Chanc.
de D. João III, l.º 48, fl. 86v.. Vide António Baião,
introdução à Ásia de João de Barros. Dos feitos que os Portugueses
fizeram no Descobrimento e Conquista dos mares e terras do Oriente.
Primeira Década. Vol. I, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932, pp. V
e ss..
Cf. António Banha de
Andrade, João de Barros. Historiador do Pensamento Humanista
Português de Quinhentos, Lisboa, Academia Portuguesa de História,
1980. Ver o biógrafo de Barros, Manuel Severim de Faria, Vida de João
de Barros, in Discursos vários políticos, Évora, Manuel de
Carvalho, 1624. Veja-se ainda J. S. Révah, João de Barros, Rio de
Janeiro, 9 de Março de 1958, pp. 61-71.
5Cf. António
Baião, Documentos inéditos sôbre João de Barros, sôbre o escrito seu
homónimo contemporâneo, sôbre a família do historiador e sobre os
continuadores das suas “Décadas”, sep. Do Boletim, de Segunda
Classe, Vol. XI, Coimbra, Academia das Sciências de Lisboa, Imprensa
da Universidade, 1917, p. 14. Introdução à ed. cit da Ásia. Primeira
Década, Vol. I, p. XLII. No Livro das Moradias da Casa de D. João
III, apareceu um filho de João de Barros, de nome Lopo Ferreira,
entre os escudeiros-fidalgos. Cf. D. António Caetano de Sousa,
História Genealógica da Casa Real Portuguesa, Vol. II, 2.ª ed.,
Coimbra, 1946, p. 506. Vide Registo da Casa da Índia, publ. por
Luciano Ribeiro, Vol. I, Lisboa, 1954, p. 46. Cf. António Baião,
Documentos inéditos…, ed. cit., pp. 40-41.
Cf.
António Baião, obr. cit., ed. cit., pp. 40-41.
A
expressão é do próprio João de Barros. Veja-se Susana Girão, “Breve
perfil de Barros”, in João de Barros (1496-1570), coord. de Júlio
Cruz, Viseu, Avis – Associação para o Debate de Ideias e Concretizações
Culturais de Viseu, 1996, p. 7.
D.
António da Costa, História da Instrução Popular em Portugal,
Lisboa, 1871, p. 5, cit. por António Banha de Andrade, ob. cit.,
p. 34.
Mesmo o próprio herdeiro da
Coroa não se afastou nunca das novidades dos tempos modernos. Ver João
de Barros, Diálogo em Louvor da nossa Linguagem, leitura crítica
dell’ Edizione de 1540 com una introduzione su ‘La Questione della
Língua in Portogallo’, por Luciana Stafagno Pichio, Modena, Instituto de
Filologia Romanza dell’Università di Roma, 1959. Ver Maria Leonor de
Carvalhão Buescu, Textos Pedagógicos e Gramaticais de João de Barros,
Lisboa, Ed. Verbo, s.d., pp. 77-89.
10Ver Manuel Rodrigues Lapa, Prefácio à
edição dos Panegíricos, cit., p. x.
11Cf. Década
IV, Apologia de João de Barros em lugar de Prólogo, ed. cit.,
p. 2. Veja-se Ásia, Primeira Década, cit., p. XLVI.
12Cf. Diogo
Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana histórica, critica e
chronologica…, Vol. II, Lisboa, 1747, p. 603. Vide João Silva
de Sousa, “João de Barros e a Literatura de Viagens em Portugal”, in
João de Barros (1496-1570), cit., p. 15.
No título Vida de João de Barros, in Discursos vários
políticos, Évora, Manuel de Carvalho, 1624. Veja-se ainda J. S.
Révah, João de Barros, Rio de Janeiro, 9 de Março de 1958, pp.
61-71.
14Vide M. Faria e Sousa, Vida de
João de Barros, Vol. I, p. 25.
15 Editada e anotada por João Baptista
Lavanha, refundida, Madrid, Stamperia Reale, 1615.
16Ver Prólogo da Década III.
17Ver Manuel Severim de Faria, Obr.
Cit., fl. 28v.
18Ver I. S.
Révah, Études Portugaises, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian,
Centro Cultural Português, 1975, pp. 107-110 e 114-115.
19 Id., ibid.
20 João de Barros, Rhopica Pneuma,
pp. 8 e ss.
21 1.ª ed.,
Lisboa, Luís Rodrigues, 1539; 2.ª ed., na Compilação do Insigne
português João de Barros, I parte, Lisboa, 1785. Cf. Maria Leonor
Carvalhão Buescu, ob. cit., pp. 13-31.
22 Seguida de
Diálogo em louvor da nossa linguagem, 1.ª ed., Lisboa, Luís
Rodrigues, 1540; 2.ª ed., in Compilação de várias obras…, cit., I
parte, Lisboa, 1785; só a Gramática: 3.ª ed., de José Pedro
Machado, Lisboa, 1957; só o Diálogo: 3.ª ed. de Luciano Pereira
da Silva, Coimbra, 1917; 4.ª ed., de Luciana Stegagno Picchio, ed. cit.,
cf. Maria Leonor Carvalhão Buescu, ob. cit., p. 31.
23
Grammatica da lingoagem portuguesa, Lisboa, 1536.
Vejam-se informes de Luciana Stegagno Picchio, obr. cit., pp. 16
e ss..
24 In Diálogo, ed.
de Luciana Stegagno Picchio, 1959, p. 70v..
25 In Diálogo,
cit., p. 70v..
26 In Diálogo, ed.
de Luciana Stegagno Picchio, 1979, p. 70v..
27 Cf. Ásia. Década Segunda, l.º
III, p. 8.
28
Ibidem,, l.º III, pp. 3-4. |
|
|
|
|