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Revista TriploV
de
Artes, Religiões e Ciências
Nova Série |
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JOÃO SILVA DE SOUSA |
Professor da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Académico Correspondente da Academia Portuguesa da História. |
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Uma capelinha branca nas
serras:
Aquilino fala de Santo António |
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“Humildade Gloriosa…
é uma capelinha branca das serras, caiada
como na Legenda mirabilis”.
(AquilinoRibeiro) |
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1. Para Aquilino não existiam Cristãos na Cristandade
nem Islamitas no Islão. Não havia, nem houve crentes nem infiéis,
digladiando-se pela vitória de uma religião sobre a outra. Para Santo
António também não. Ambos pensavam o mesmo. O que os movia para a
subtracção de terras por uns aos outros e a uma posição hegemónica de
uma sociedade sobre a outra era o comércio, a expansão de produtos
autóctones e a tomada dos demais, trocados à custa do estabelecimento de
empórios solidamente sustentados. Setecentos anos os separavam.
Quando começou a conquista muçulmana e se expandiu, em pouco mais de um
século da Arábia para a Hispânia, deu-se início à tomada de terras nunca
outrora tão produtivas e paradisíacas como os vales da Estrela e as
irrigadas planícies do Entre-Douro-E-Tejo. Quando os Cristãos deram
início à “Reconquista” afecta às nossas crenças, esta pouco mais seria
do que invectivas militares para recolocarem sob a sua alçada os campos
perdidos e as riquezas a que se acomodaram. E tanto é assim, que,
centúrias depois, em Quatrocentos, se iniciavam conquistas e retomas,
desta feita em terras da Moirama, com a intrusão implacável dos
Portugueses. Que queriam estes?
Das duas uma: a formação de um império que ficaria
sob a protecção de S. Pedro, ou o estabelecimento de talassocracias cada
vez mais amplas e vastas que estariam às mãos de mercadores ricos. Em ambos os lados, havia-se estabelecido que a quinta
parte dos espólios eram do Califa e do Rei de Portugal, dependendo do
predador.
Santo António não se cansou de afirmar e teimar que Deus é só um em todo
o Universo, e que Mouros ou Cristãos passados a fio de espada ou
escravizados e sofredores das piores e mais violentas e infames sevícias
à mão dos homens eram dignos de dó, de vergonha, de erradas e fatais
tomadas de atitude contra os humanos que desferiam golpes duros sobre
ambos.
Tudo isto se passava no Mundo. Na Hispânia da “Reconquista”, no Norte de
África onde se martirizavam homens, no Oriente, pela tomada de
Jerusalém, ponto fulcral para o restabelecimento do caminho para
movimentação de e para o Oriente e o Ocidente. Os reis que tomavam parte
nas ditas Cruzadas, protegidos estes e seus homens pelas cartas em forma
de indulgências expedidas em catadupas pelo Papa, atravessavam terras
descritas - quando em pormenor - como se da nossa Beira se tratasse.
Terras, Homens e Bichos. A lavoura, o quinhão de terra, o trabalho
esforçado de todos, a penúria convertida numa pequena côdea de pão, um
pouco de azeite, a batata cozida. Só nos grandes centros religiosos e
laicos se comia com abundância e de tudo.
Foi assim que Filipe se sentiu atraído pela vida monástica, trocando o
chicote marcado nas costas pela batina e pela oração. Cansado de passar
fome, nem mesmo o jejum regular imposto pela Igreja o fez desistir. Esta
a paisagem física e humana que deu créditos à disciplina da narrativa,
do romance e da história contados por Aquilino.
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(Páginas da Bíblia) |
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2. Lisboa era uma cidade recentemente retomada aos
Mouros, quando, na sua catedral, foi a baptizar Fernando Martins de
Bulhões – Santo António –, filho da fidalga D. Teresa Tavera,
descendente de Fruela, rei das Astúrias e de seu marido Martinho ou
Martins de Bulhões. Há dúvidas quanto ao apelido do pai, bem como se era
ou não descendente de cavaleiros celtas. Sabe-se sim que D. Teresa
nascera em Castelo de Paiva e o marido numa terra próxima. Viviam em
casa própria no bairro da Sé, quando Fernando nasceu, rapaz dotado para
o misticismo, a prece e a reflexão.
Santo António frequentou a escola da Sé e, até aos 15 anos, viveu com os
pais e com uma irmã de nome Maria, muito provavelmente a que, no romance
de Aquilino, corresponde a uma dita meia-irmã de nome Verónica, a
bendita tentação personificada.
Aos 20 anos, professou nos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho em
Lisboa, no Mosteiro de São Vicente de Fora. Nesta ordem monástica
prosseguirá os seus entusiásticos e intensivos estudos teológicos. Rumou a Coimbra, direitinho ao mosteiro de Santa Cruz, onde tinha à sua
disposição uma das melhores bibliotecas monacais do País, sempre a
adquirir novos pergaminhos de que Fernando se encarregava de fazer
conservar, nas palavras do nosso escritor. Nesse tempo, era a abadia de
Cluny, em França, que possuía uma das maiores livrarias da Europa, com
um total de 570 volumes manuscritos. Santa Cruz recebia, já nesse tempo,
as maiores preciosidades têxteis e outro bom comércio, alimentando por
isso o desprezo de Fernando. Em Coimbra, sendo já sacerdote, toma o hábito de franciscano, em 1220.
Segundo os seus biógrafos, Santo António terá lido muito, e não foi por
acaso que se haveria de tornar num pregador, dos mais célebres de
Portugal.
No mundo cristão, vivia-se intensamente a época das Cruzadas. A chamada
«guerra santa» desencadeada contra o Islão, em oposição à Jihad
islâmica, com intenções várias, começando pela conquista da cidade das
três religiões e de um só Deus - Jerusalém. Ambos acreditavam que a fé
os levaria à vitória pela religião… e pelo dinheiro. O rei e o emir – ou
os príncipes das Taïfas – aguardavam, desassossegadamente pelas partes
que lhes cabiam em géneros, animais, dinheiro e preciosidades
violentamente roubadas a uns pelos outros. De Oriente a Ocidente, os exércitos batalhavam ferozmente e, neste
turbilhão, surgiam novas formas de espiritualidade. Em 1209, Francisco
de Assis – ou S. Francisco – abandona o luxo da casa paterna, para, com
outros companheiros, se recolher a uma pequena comunidade, dando origem
a uma nova reflexão sobre a vivência do Evangelho. É a aproximação à
Natureza, à vida simples e à redescoberta da dignidade da pobreza
preconizada pelos primeiros cristãos. Em poucos anos, homens e mulheres,
alguns ainda bem jovens e filhos de famílias abastadas e poderosas,
sentem-se atraídos pela ideia do despojamento e sacrifício, com os olhos
postos no exemplo de Cristo.
A Portugal também chegaram ecos deste novo misticismo. Em Janeiro de 1220, são degolados em Marrocos, pelos Muçulmanos, cinco
frades franciscanos, e todo o já alargado espaço cristão sofre um enorme
abalo. A própria Clara de Assis – Santa Clara –, praticamente da mesma
idade que Santo António, nascida em 1193 ou 1194, vai querer partir para
o Norte de África, a fim de contribuir para a conversão de muçulmanos,
mas Francisco de Assis, seu amigo de infância e orientador espiritual,
não lho consente, fazendo-lhe ver que o seu papel deverá decorrer na
Europa em paralelo com o que poderá ser feito noutras terras menos
permissivas, onde as gentes eram agressivamente opositoras.
Em Portugal, o nosso Fernando de Bulhões, já ordenado padre, resolve
mudar de Ordem religiosa, passando também a envergar o hábito dos
franciscanos. É, então, que muda o nome de baptismo de Fernando para
António e vai viver com outros frades no ermitério de Santo Antão (ou
António) dos Olivais, na altura um pouco afastado de Coimbra, nuns
terrenos doados por D. Urraca, mulher do rei D. Afonso II.
Em meados de 1220, chegam, com grande pompa religiosa, ao convento de
Santa Cruz de Coimbra, as relíquias dos mártires de Marrocos. Este
acontecimento vai ser decisivo no rumo da vida do futuro Santo António.
Parte para o Norte de África, sentindo-se também ele chamado a
participar na conversão dos ditos infiéis. Adoece, porém, gravemente e,
não podendo cumprir aquilo a que se propunha, teve de embarcar de
regresso a Lisboa. Só que o barco foi apanhado numa tempestade e o Santo
vê o seu itinerário alterado ao sabor de uma vontade superior. Acaba por
aportar à Sicília, num período de grandes conflitos armados entre o Papa
Gregório IX e o rei dessa região itálica, Frederico II. É de assinalar
aqui que várias províncias do que é hoje a Itália unificada eram
“reinos” independentes e este ambiente de guerras gerava uma grande
insegurança e múltiplos perigos.
Em Maio de 1221, os franciscanos vão reunir-se no chamado Capítulo Geral
da Ordem, onde Santo António está presente. No final, os frades
regressam às suas comunidades de Montepaolo, perto de Bolonha, onde, a
par da vida contemplativa e de oração, cabe também tratar das tarefas
domésticas do convento. Aqui, os outros frades reparam na grande
modéstia daquele estrangeiro (Santo António) e jamais suspeitariam dos
seus profundos conhecimentos teológicos. Findo aquele período de
reflexão, característico de um noviciado, os frades franciscanos são
chamados à cidade de Forlì para serem ordenados e Santo António é
escolhido para fazer a conferência espiritual. E começa a falar. Ninguém
até ali percebera até que ponto ele era conhecedor das Escrituras e como
o seu profundo estado de fé e os seus dotes oratórios eram invulgares.
Tanto quanto se conhece, quando começou a orar, cativou de imediato os
outros frades e a sua vida seria, a partir daquele dia, a de pregador da
palavra de Cristo. Percorrerá diversas regiões da actual Itália, entre
1223 e 1225. Por sugestão do próprio São Francisco de Assis, vai
tornar-se mestre de Teologia nas cidades de Bologne, Montpellier e
Toulouse, em França, olhando sempre para trás, em recordações do bom e
do mau que teve de abandonar, ou que o acaso o fez afastar-se de sua
Pátria.
Quando S. Francisco morre, em 1226, Santo António vai viver para Pádua.
É nesta vila que vai começar por fazer sermões dominicais, mas as suas
palestras, tão cheias de alegorias, eram de tal modo acessíveis ao povo
mais ou menos crente, que este passa palavra, sendo cada vez maior o
número de mulheres e homens nas igrejas para o ouvir. Destas passa para
os adros, para conter as multidões que não param de aumentar. Nos
espaços exteriores das igrejas de outros institutos religiosos, começa a
orar em campo aberto. É um caso raro de popularidade. A multidão segue-o
e inicia-se a fama de milagreiro. Os rapazes de Pádua têm mesmo de fazer
de guarda-costas do Santo português, tal a multidão à sua volta. As
mulheres tentam aproximar-se dele para cortarem uma pontinha do seu
hábito de frade como uma relíquia, porque eram muitos os que queriam ter
algo de seu e passar a colar-se ao simbolismo, que se simplificou a
olhos vistos.
O bispo de Óstia, então, uma aldeola portuária nos termos de Roma, mais
tarde papa com o nome de Alexandre IV, pede-lhe que escreva sermões para
os dias das principais festas religiosas que eram já muitas na época.
Mais tarde, seria este mesmo o papa que o canonizava. Santo António
assim faz. São hoje importantíssimos esses documentos escritos, embora
Santo António, mais pregador, tivesse escrito pouco. Apenas lhe são
atribuídos os maravilhosos Sermones per Annum Dominicales (1227-1228) e
os célebres In Festivitatibus Sanctorum Sermones (1230).
Sentindo-se doente, o Santo pediu que o levassem para Pádua onde queria
morrer, mas foi na trajectória, num pequeno convento de Clarissas, em
Arcela, que Santo António «emigrou felizmente para as mansões dos
espíritos celestes». Era o dia 13 de Junho de 1231 que ficaria célebre
em Portugal.
Como é sabido, foi canonizado, em 1232, ainda se não completara um ano
sobre a sua morte. Caso único na história da Igreja Católica, já que nem
São Francisco de Assis, nem nenhum outro que se saiba haviam tido tal
privilégio.
Os santos como António há muito que desceram dos altares para conviverem
connosco, simples mortais, que os tomamos como nossos protectores e
amigos. O seu sumptuoso sepulcro, de mármore verde, em Pádua, na igreja
de Santo António, é claro e especial tributo do povo que o amou e é
muito mais do que um lugar de peregrinação e de oração. Através dos
séculos, a sua fama espalhou-se por todos os continentes. |
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A Torah, a Lei
(Sinagoga de Colónia) |
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3. Alguém afirmou, com toda a justeza, que “o homem por si só não pode
reunir-se a Deus, se Deus, pela Sua graça, não lhe facilitar os meios
para o fazer”. As vias, por excelência, conducentes a esta realização,
são as “religiões”, providencialmente variadas, se bem que
testemunhando, num ou em outro grau, a unidade fundamental donde advêm
(1). Cristãos, Judeus e Muçulmanos esquecem-se que Deus é Deus para
todos eles: os próprios anunciam a unicidade de Deus, sendo Este um só
para todos aqueles e para o Universo. E a Religião em si, a completa
afirmação de Deus, é sempre um lato conjunto de dogmas e, literalmente,
monoteísta: “não existe nenhuma divindade senão Deus”.
“Não sabeis que Deus é o Senhor Único dos Céus e da Terra? E que
prescindindo de Deus, não tendes outro protector ou defensor?” (2).
Então, por que lutam eles entre si? E ainda entre eles mesmos, no seu
interior? Pela conquista de terras, pela constituição de impérios, pelo
reconhecimento de uma força maior e inabalável. Sobretudo por motivos
económicos.
Os Judeus querem paz, um local aprazível para assentarem e desenvolverem
o seu processus financeiro. Cristãos, Árabes e Muçulmanos
digladiavam-se, cada qual na sua cruzada e jihad, pilares das suas
oligarquias, apelando à Religião. Os Ortodoxos copiaram o modelo, gizado
tão ao jeito da natureza do homem.
Era a supremacia, sempre muito problemática, que, no fundo, se achava de
homens sobre outros homens que, na Hispânia duocentista, tinha
encontrado a sua expressão mais completa, traduzindo-se na mais violenta
opressão de Cristãos sobre Mouros e destes sobre os primeiros.
Numa perspectiva universal, Muçulmanos, Católicos e Judeus pretendem
restaurar a tradição primordial monoteísta, representada e incarnada na
e pela figura profética de Abraão. Segundo as exegeses destas religiões,
os fundamentos que legitimam as espiritualidades judaica, cristã e
islâmica estão expostos na Génese. Todos três povos crêem que “os
Profetas de outrora foram enviados cada um às suas gentes respectivas”.
Mas o Islão só o admite, acrescentando que “Maomé foi enviado a toda a
Humanidade”. Assim a Jihad islâmica, na Península Ibérica, tornou-se
numa guerra ofensiva enquanto as cruzadas hispânicas seriam uma guerra
sobretudo defensiva. |
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(Santo
António pregando aos peixes: Guimarães) |
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4. Foi em tempos da “Reconquista”, no espaço que
viria a tornar-se no rectângulo português quase tal qual o conhecemos
hoje, que nasceu e viveu em grade parte Fernando de Bulhões, o qual deve
ter conhecido os avanços e recuos da fronteira Sul do País, com Sancho
I, Afonso II e Sancho III. Correspondem a um marco temporal curto de
1185 a 1230, sensivelmente. Na verdade, o Santo não nasceu antes de
1191, provavelmente, 1195, e veio a falecer em 1231.
Conheceu uma sociedade abastada, de onde terá provindo, rodeado de
Judeus e Mouros, mas muito mais voltado para uma população muçulmana e
moçárabe, calma adentro das suas fronteiras e belicosa fora delas, na
avidez da retomada de espaços perdidos em favor dos Cristãos. Olhando
para uns e para os outros, esqueceu os tão evidentes motivos
político-económicos e passou a dar sobretudo atenção ao amor, sofrimento
e à misericórdia… como mandavam suportar ambas as religiões de um só
Deus. Por que não as três de um Deus só?! Vivia no rebuliço, no choque
de paixões de uma luta por um deus contra Deus… Tê-lo-á sentido cedo.
Num Sermão, António Vieira manifestou-o.
Nesta sociedade cuja secular existência conhecia e assim continuaria até
ao séc. XIX, os conquistadores muçulmanos viam os cristãos como feras
que gostavam de atazanar os cativos, fazê-los estoirar com trabalho;
eram ladrões e somítegos com as côdeas de pão que lhes davam;
supliciadores, causavam tormentos, à custa de fortes e inúmeras
vergastadas, até ulcerarem ou morrerem. Os “reconquistadores” cristãos,
por seu turno, acusavam-nos de não valerem o que comiam; eram relaços de
marca. Mandavam-nos para as hortas, não sabiam cavar, se pretendiam que
tirassem água à cegonha, não o faziam. Deviam seguir para as atafonas e
amarrarem-nos aos cepos. Eram piores do que as sete pragas juntas…
Uma das personagens iniciáticas é Zaida, serva do velho garanhão D. Echa
Rolim – grande proprietário, com searas a perder de vista – que o
“trouxe pelo beiço mais de seis anos” (4), neto do grande Rolim, capitão
daqueles cruzados que sitiaram e tomaram Lisboa (5). Ela ainda não
renegara a Lei de Mafoma, mas o filho que queria ir ver a Lisboa,
Filipe, já nascera cristão e fora baptizado, o qual tomara este nome, ao
invés de Benismail, que ela lhe queria dar, porque era o do avô.
À hora, cantavam os Poetas muslims poemas de encantar: mulheres, quais
alcachofras se sentiam, então, protegidas:
“Filha da água e da terra, Para aquele que a deseja, a sua generosidade Fecha-se numa veste que simboliza a recusa. Na sua beleza e na recusa da entrega no cume dos ramos Dir-se-ia uma jovem cristã Vestida com uma couraça de espinhos” (6).
Zaida não era assim, fosse qual fosse o lado. Trouxe D. Echa Rolim pelo
beiço mais de seis anos, e dera-lhe um filho. Fora depois posta de parte
e remetida para a situação de escrava, ainda uma “Fêmea de truz… trinta,
trinta e cinco anos, se tanto” (7). Era mãe de um jovem, já forte e bem
constituído nos seus catorze anos que, como ajudante de pedreiro,
trabalhava nas obras da igreja maior, em Lisboa. Era a Sé, cuja
construção caminhava ”a ritmo improporcional, uma temporada possuída de
frenesim, outra de relaxação a ponto de a penetrar o sonolento marasmo
dos cemitérios… Fora Zaida quem fez de ama a Fernandinho, filho de D.
Martinho, do clã dos Bulhões e Taveira de Azevedo e de D. Teresa
Taveira. D. Echa tinha como mulher legítima D. Ermentrude, mas a “tinha
fechada numa torre, onde não via sol nem lua” (8). O seu papel havia
sido cumprido: dera-lhe filhos.
Mal raiava o dia, Zaida fugia para Lisboa a ver Filipe. Era a quarta vez
que tentava. Estava no meio dos moiros escravos, “perros” prisioneiros,
que arrastavam ao pé uma bola de ferro de cinco arráteis, quando não
andavam amarrados quatro a quatro, “por cambalheiras saintes duma argola
comum, chumbada na laja” (9). O seu pai, parentes, amigos, vira-os
trucidados a fio de espada ou enforcados, na corda. Ouvia-os gemer, dia
após dia.
Não era esta, de facto, a situação de todos os Muçulmanos cativos, nas
cavalgadas que lhes moviam os Cristãos durante a retoma das terras. Até
mesmo, sendo assim, porque eram deitados à escravatura, rápido lhes iam
sendo dadas alforrias, passando a viver por fora das muralhas dos
centros urbanos e vindo trabalhar ao seu interior, “de sol nado a
sol-pôr”. Parecia que se digladiavam dois deuses… Vá a Religião explicar
o caso, em Navas de Tolosa e em quantas mais sem conto, em que Deus tem
de determinar a facção ganhadora. Travada em 16 de Julho de 1212, de um
lado contou com o rei Afonso VIII de Castela, chefiando uma coligação
com Sancho VII de Navarra, Pedro II de Aragão, um exército de Afonso II
de Portugal (rei que não esteve presente, por se achar muito doente),
juntamente com cavaleiros do reino de Leão e das ordens militares de
Santiago, Calatrava, do Templo e do Hospital, derrotando os mouros
almóadas. A batalha restituíra a Cristo, subido ao Céu no terceiro dia,
o império da Hispânia (10).
Ninguém sabia ao certo, mas as vozes que se levantavam referiam a
existência de 300 000 infantes e 100 000 ginetes. Tanta gente, só saída
do Inferno… “onde, consoante as Escrituras, são mais bastos que a sarna
os negadores do nome de Cristo” (11). O exército cristão contra aqueles
“perros infieles” era também tão numeroso que toda a Serra Morena, “com
suas faldas e tesos lhe era curral apertado […] Levantara-se a família
visigoda a toda a rosa-dos-ventos” (12). Parecia que a Deus “aprazia
mais o fumo do sangue derramado que o fumo dos incensos ardendo na santa
modorra das naves monásticas” (13).
O nascimento da manhã, como o desaparecimento do Sol,
a sua substituição pela Lua e os tapetes de estrelas que pintalgam o
azul do Céu são verdadeiras maravilhas que saem das mãos de Deus.
Primeiro, vemos uma camada fina de luz ao amanhecer do dia, pois a
escuridão ou as trevas são a origem no Universo, e dessa escuridão é
dissecada a luz do dia, que se assemelha ao couro, quando este é
dissecado de um animal. Disse Deus no Alcorão: "E também é sinal, para
eles, a noite, de onde dissecamos o dia, e ei-los mergulhados em
trevas!" (14). Deus acrescentou no Livro: "E se abríssemos uma porta do
Céu pela qual ascendessem, diriam que os nossos olhos foram ofuscados ou
nós fomos mistificados" (15).
De quando em vez, Aquilino procedia a um “varejo das gavetas”, onde
guardava os seus papéis, expurgando-os, com certa frequência, mais
inexoravelmente do que “a Congregação do Índex”. Deles saía um livro.
Contadas as páginas e depois fechadas, comprimidas umas contra as
outras, a pouco se reduzia o volume… assim as criações do espírito no
passar dos dias, “simultaneamente destrutivo e renovador [e …] quanto
mais longe no espaço, mais o tempo se adelgaça e contracta, as nossas
manifestações de arte e de um modo geral o fruto da nossa actividade
estratificando na fasciculação dos anos” (16).
Aquilino dá-nos imagens únicas, de porte vertical e duro de encarar, da
construção da Sé de Lisboa, sobre as ruínas causadas propositadamente
pelos Cristãos, ao transformarem sob as ordens dos engenheiros a antiga
mesquita em Sé católica. Só o mihrab, “depois de exorcizado e varrido a
jorros de água lustral, mereceu ser consagrado ao culto do Deus
triunfante” (17). O nosso autor, na verdade, regista a ideia corrente da
época. Deus é um só, seja ele o dos Cristãos, Javé como lhe chamam os
Judeus ou Allah, como o invocam os Muçulmanos. Um só Deus para toda a
Humanidade: constituímos todos um Universo completo! Mas o Povo
acreditava, de um lado e do outro, que o deus triunfante era o nosso –
como diziam os Cristãos –, e o deus derrotado, Allah! Quantas vezes não
fora vero o seu contrário… Para ambos, a Al-Fatiha era o Prólogo da
Bíblia e do Corão. É a “Abertura” e é repetida dezassete vezes por dia,
no quadro das cinco orações obrigatórias, precedidas das abluções
(2+4+4+3+4 vezes).
Na esfera das comparações, há passagens únicas que
não se lêem na literatura nacional mais comum. Belas e confusas
hipérboles, imagens e personificações que não nos deixam dúvidas acerca
dos períodos do dia e da noite, do acordar e levantar, do deitar e
adormecer… (18) da vida do dia-a-dia e dos espaços em que decorre a
acção. Nunca esta nos é apresentada entrincheirada e imóvel, mas com um
fluir misto do belo poético com a castigadora realidade. Recordo a
alvorada ainda pálida, mistura da boreal com a noite a clarear, em
versos prosaicos, mas líricos, da bela realidade. “Do pino do céu as
estrelas acenavam para a terra com pálpebras ensonadas, como se
estivessem a afogar-se no fundo dum pego. Mas ainda alumiavam” (19).
Estes como tantos outros dão-nos o clima espiritual
de quem é retratado como asceta, religioso, bondoso, sofredor,
penitente… um santo! Outros “versos”, mais épicos, são impiedosamente
castigadores e rudes, fazendo-nos sofrer pelas agruras das guerras
primaveris do levantamento dos povos em fossados e presúrias. Das
planícies aos cumes serranos, onde nem cristãos nem muçulmanos deixavam
uma só erva viva. Tão directo e realista, Aquilino faz-nos esquecer as
violências da nossa sociedade e da política que a rege, tal é a plástica
do sofrimento de antanho.
Não se designando assim para os seguidores da
primeira, os princípios, sete – os mais recitados pelos Muçulmanos, dado
que entram em todas as orações – eram admitidos, pelo Islamismo, cujo
significado é o da resignação à vontade de Deus: 1. “Em nome de Deus. O
Clemente, o Misericordioso”; 2. “Louvado seja Deus, Senhor dos Mundos”.
3. “Beneficente e Misericordioso”. 4. “Senhor do Dia do Julgamento!” 5.
“A Ti, somente, adoramos; de Ti, somente, esperamos socorro!” 6.
“Mostra-nos o bom caminho”. 7. “O caminho desses que tens favorecido;
não o caminho desses que incorrem na Tua cólera nem o dos que se perdem!
Ámen” (20).
Fugir?!... “Era tornar-se nuvem, folha no remoinho,
pássaro a voar, ou meter-se pelo chão dentro!”, tudo para que a pobre
escrava pudesse ir ver o filho, deixando as outras servas ainda a
dormir, como percebera, “pelo anélito regular dumas e pelo ressonar de
fole ferreiro doutras” (21).
Lembrando o Livro, tem presente que “é Ele Quem envia,
proporcionalmente, água dos céus, e com ela faz reviver uma comarca
árida”. Assim ela e filho seriam ressuscitados, pois também “é Ele Quem
envia os ventos … e levanta as nuvens” (22). Era esta a única salvação
de ambos.
Santos não existem para os Muçulmanos. A adoração, os pedidos e as
desculpas são apenas dirigidos a Deus. Maomé é tão-só o seu Profeta,
como Abraão, Moisés… e Cristo profetas foram. O nome Islão deriva da
mesma raiz árabe de “submeter-se” e pressupõe a ideia de rejeição de
qualquer outro objecto de culto que não Deus. Apontam-se os deveres do
homem para com Ele e ante a Sociedade, proporcionando soluções para os
inúmeros problemas que afligem o homem, como, a título de exemplo: a
distribuição da riqueza, os preconceitos raciais, a emancipação do
homem, a busca do saber…
Zaida fugiu, foi ajudada a fugir, mas, por fim, viu Filipe, o filho.
Quase tresloucada, olhou-o, e viu e reviu o estado em que se achava:
“ante o jardim das chagas que eram as costas do rapaz, deu um salto de
unhas eriçadas” (23) para o mestre das obras. Era Picanço, o vedor, que
usava na mão a régua que lhe servia quer para acertar as esquadrias nos
trabalhos na Sé, como para meter na ordem relaços e ribaldos (24)
Esta atitude não era muito comum. A maior percentagem de sarracenos
atacados morria. Outros fugiam e alguns mantinham-se nas suas terras,
continuando a trabalhar na agricultura e nas artes, dado que aquilo que
o Poder Central desejava era ver o País progredir e bem defendido a
partir das linhas que se iam tomando e faziam de fronteira. Há que
relembrar a política desenvolvida por D. Afonso Henriques na outorga de
Cartas de Amizade e Segurança aos mouros forros do Reino,
permitindo-lhes serem governados por homens do seu Credo. Um rapaz de
quinze anos ou ainda menos não tomaria atitudes que levassem os vedores
das obras ou outros oficiais a malhar neles para os fazer trabalhar. O
retrato, um tanto exagerado, tem como objectivo mostrar a parte
contrária quando reage às algaras inimigas.
A mesma função impressionista e aterrorizadora tinham os enforcados em
fileiras nos pontos altos, dependurados dos galhos das árvores, pelos
caminhos do Reino. Cenários arrepiantes de que não duvidamos nestes
tempos de usurpação dos seguidores de Mafoma que seriam castigados, como
exemplos retratados pelo meio das árvores das florestas e dos trilhos
desenhados pelas solas dos pés endurecidas, como o coração.
Uma cegonha que lhe surgiu do Céu era o fim do seu desassossego. Para
mais, personificada por Deus (não se sabe de que lado, pois Ele é só
um), a ave prazenteira aligeirou-lhe o sentimento amargo, falando-lhe,
por certo, na língua que ela melhor compreendia: “Moira, não tenhas
medo. Venho de propósito para te sossegar. Tu, eu, o rio, o teu filho
somos uma das faces do mundo; o justiçado, os corvos, D. Echa outra.
Vê-te nesse espelho” (25). Por dez vezes, o Alcorão fala da água, como
da chuva, dos ribeiros correntes e/ou calmos, dos rios…, lugar dos
crentes que “ estarão entre jardins e cursos de água” (26), cheios pelas
chuvas que fazem crescer os cereais, a oliveira, a palmeira, a vinha e
todas as espécies de frutos (27).
Fora caçada por Aires Lascarinho e pelo Tem-te-Malho, homens de D. Echa
Rolim, “os nazatrenos mais pirangas que havia nas terras do senhor de
Vila Franca (28), e da Azambuja e de Pancas. A aproximação casual de uns
cavaleiros salvaram-na do pior, pois rota e estendida no chão já estava.
Um deles era D. Martinho de Bulhões que a reconheceu de imediato como
ama de leite de seu filho Fernando que tomaria o nome, mais tarde, de
António, o nosso Santo, ao mesmo tempo que aleitara o próprio filho
dela, o seu Filipinho nem mouro era e fora baptizado, os demais, D. Gil
Pais Viegas (que estivera em Castela a batalhar com o Miramolim), que D.
Echa bem conhecia da escalada de Alcácer e D. Mem Guterres, o mais nobre
cavaleiro de Aragão, que Afonso VIII de Castela enviara a D. Afonso II
de Portugal, seu genro, com a mensagem da vitória.
Por perto, Fernando de Bulhões, que passava despercebido, opinou que
nunca levantaria a espada: “no sangue do irmão sarraceno não se tingirá
ele” (29). A mãe tentava salvar a situação, mas, conhecendo como ninguém
o Fernandinho, sabendo como ele fora sempre, apercebia-se de que era
perigoso apelar ao seu lado de asceta em detrimento do heróico que tanto
convinha ser exaltado, mesmo que não fosse, de facto, o que se pensava.
Fernando precisava de lutar “contra a porfia heráldica do pai”, que não
aceitava vê-lo doutro modo que não fosse a terçar armas de cavaleiro,
combatendo ferozmente o inimigo. Além do mais, querendo partir, teria de
afastar-se da mãe e de Violante, sua meia-irmã.
Era necessária uma Violante, mulher luxuriosa, terna
e cordial, com todos os requisitos e temperos para que qualquer mortal,
mesmo um padre sonhasse com ela, que a visse por todo o lado. Era
preciso ir mais longe, ao cabo do mundo, onde não soprassem as auras
maléficas da tentação. Em tudo o que é abstracto e concorre para o
místico há sempre uma Eva. Sem esta, “está excluída a ideia de vida
espiritual e de santidade. Em arte é o oxigénio vivificador” (30).
Violante tem um papel bem importante que fará Fernando de Bulhões
hesitar, quantas vezes, em ser a asa protectora dessa mulher ou deixá-la
entregue à sua sorte, como veremos. Fará corresponder ao desiderato
paterno de o ver como “um guerreiro de marca, almocadém truculento” e
assim satisfará todos o que o almejavam como tal, combatendo os fortes e
dissolutos em favor dos mais fracos, das mulher, dos velhos e dos
órfãos, qual ideal da cavalaria, que vinha de França para correr mundo.
Entregara-se à Igreja, e, nesta, à oração, leitura e meditação.
Deste Modo, o beato António “transita da imobilidade ascética,
impregnada de misticismo e brandura, para a acção mais agressiva e
fervescente”, assim visto e honrado por Mestre Aquilino (31). Santo
António – assim o entendemos todos desde há gerações e gerações antigas
– era e sempre se apresentou aos olhos do mundo Católico como um
bom-serás. |
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(Al Fatiha, do Corão)
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5. Era, na verdade, necessário caminhar até muito mais
longe, para ir viver e morrer na paixão e morte do Redentor.
Ouvira dizer que Santa Cruz de Coimbra oferecia a
quem quisesse um refúgio saudável. Aí, os internos estudavam, oravam …
enfim, cumpriam com Deus a função de viver – Coimbra, “arce visigótica
da Reconquista e oásis de serenidade” (32).
Fernando e um aparente companheiro de agruras, de nome Eleázaro, tomaram
o caminho de Vila Franca, depois de saírem de S. Vicente de Fora.
Tocaram na estalagem de Sacavém e chegaram à Póvoa. Finalmente,
aportaram a Vila Franca e não se demoraram na entrada de Castanheira. E
foram abrigar-se dos calores do meio-dia no Moinho Novo, seguindo para
Tagarro. Um dia depois, pela parte da tarde, encontraram-se a trilhar um
caminho de cabras na ala oriental da Serra dos Candeeiros, pernoitando
em Moliano. Apearam-se na Venda do Carvalho e seguiram até Leiria, onde
chegaram pela noite e onde Fernando fez questão em dar um exemplo de
humildade em Cristo a quantos estavam com ele.
Foi aqui que Eleázero se escapuliu de noite, levando todo o dinheiro que
Fernando havia recebido da mãe. Encontrou logo um novo amigo. Parecia
mais compreensível que o pai de Fernando. Tinha combatido com ele em
Alcácer e na investida a Silves. Tomara ordens e, como mais velho,
passou a protector de Fernando e seu informador de quanto se passava por
ali: o ambiente, as orações, o lazer ou os afazeres, o refeitório e o
que vinha de Tarouca, o vinho das encostas do Barosa… o jejum também, a
biblioteca e os livros de que ninguém cuidava. Foram estes que mais lhe
aguçaram “o apetite”… Nesse dia, recebeu a notícia da vinda do filho de
Zaida, Filipe, que lhe trazia bens que herdara de sua tia Berenguela.
“Tudo o mais na missiva era um marulhar de saudades e lágrimas
enternecidas” (33).
5. Aquilino descreve o ambiente que se vivia, então, no Reino, como se
se detivesse horas a fio a olhar para uma tela de Goya. Um rei gafo,
cheirando a podre, com pústulas abertas por todo o corpo gordo e
macilento; um ambiente fechado, onde se conservavam os manuscritos que
ninguém conseguia ler nem decifrar; a peste que grassava por tudo quanto
era lado… uma Idade Média com todos os condimentos necessários, encaixes
de uma cena de terror, de Sol escondido, de noite perene… de guerra, de
farrapos, de feridas, de corpos jacentes e amontoados. Os físicos fugiam
e não havia que, a preço qual fosse, se encarregasse de abrir covas e
nelas colocar os milhares de corpos que iam caindo sem vida, com
furúnculos, feridas e gânglios… esquartejados pelo ferro e apodrecidos
pela doença. A pestilência grassava nas terras do Sul, retomadas ao
Islão, “com sanha nunca vista. Releia-se o texto:
“[A Peste] acendera-se talvez no mortulho dos combates, com os
cadáveres
abandonados à putrefacção a céu aberto, e era como milhares de seitoiras
que viessem foiçando a seara madura. Vilas populosas ficavam desertas em
poucos dias. Quem podia, migrava para as terras não inquinadas do Norte…
gente da ralé e das cidades tanto fugia esta como a de prole.
Ricos-homens e
infanções, burgueses e mecânicos dos vários ofícios enxameavam ruas e
vielas à caça de estalagens ou tugúrio em que alijar os ossos. E as dobras
de oiro saltavam das escarcelas. Quando chegou a Corte, desabou sobre Santa
Cruz
toda a mó de áulicos e cortesãos”. (34).
Fernando ou António ficou como bibliotecário e o único capaz de
preservar, ler e entender os livros, os que já encontrara em Santa Cruz
e outros que para aí eram enviados. Vinham chegando ao Mosteiro
documentos e escrituras únicos e fundamentais para a história da Igreja,
desde os mais remotos princípios. Na sua grande maioria eram grossos
volumes, cerzidos entre tábuas de cedro, recobertas de couro, com
extensa pregaria amarela e fechos de bronze: códices, instrumentos
tabelionares, maços de papel e rolos… Um a um eram identificados por
Fernando de Bulhões, tal como os seus autores: o Imperador Juliano,
Clemente de Alexandria, Tertuliano, Filostrato, Atanásio… (35): “para o
espírito de Fernando, sequioso de saber, foi um deslumbramento” (36):
“Em toda a seara há trigo e joio; em toda a palavra, razão e sem-razão;
Em todas as religiões, o vero e o falso. Colha-se o bom, o positivo, o
genuíno. E aí está a nata da ciência. Mas para que a receita produza o
efeito desejado, há primeiro que despojar o paganismo das fábulas dos
sacerdotes e o cristianismo dos comentários dos seus autores”.
(Amónios Sacas) (37)
Salvando-se o trabalho que se avizinhava, outro factor a adicionar
residia no facto de Filipe se juntar a ele, como um bom cristão que se
sentia, mas por razões pragmáticas também. Ele mesmo lho diria que “Aqui
está uma religião que me servia”, disse-o aproximando-se de Fernando. E
explicou a sua preferência: “Rezar, cantar, dormir…” Custar-lhe-ia
passar fome. E perguntou se a comunidade observava um jejum muito
rigoroso. Era a situação mais delicada para ele e que o faria pensar.
Não tinha outro remédio, quando Fernando lhe chamava a atenção de que
não deveria fazer passar-se por ignorante, pois todas as Ordens, criadas
no tronco da Santa Madre Igreja, mandam observar o mais estrito jejum em
certos dias. Ora vejamos: 52 sextas-feiras; a Quaresma e a Páscoa; o dia
do Santo patrono da Igreja e da cidade… ao todo, sem errar contas,
digamos que far-se-ia jejum, na Idade Média, cerca de 120 dias por ano.
E pergunta a Fernando: “ – Mesmo assim. Aceitar-me-ão eles?”. E por lá
ficou.
Chegadas a Santa Cruz as ossadas dos Mártires de Marrocos, Fernando não
deixou, desde então, de pensar em ir para o Norte de África e não parou
enquanto não o autorizaram a deixar o Mosteiro. Ficou já dito acima.
Tomou o nome de António, nome de escravo e de moçárabe, e, com o
propósito de riscar-se do mundo, desligou-se de tudo e partiram ambos
para Marrocos, a terra requeimada do Miramolim. Partiram de Lisboa um
frade e um irmão leigo para combaterem numa cruzada diferente.
Abandonavam a espada e faziam uso da palavra. E ei-los chegados a Fez.
6. Adoeceu aqui de repente. A febre em que ardia, ora ia ora vinha. Nas
fases piores, sonhou alto, assoalhando-se-lhe a alma – uma espécie de
transpiração espiritual que, aliviando-o da febre, o livrou da morte
(38).
Melhor, iniciava-se nos monólogos que projectava contra a figura de
Filipe. Brejeiro, voltou a Violante, a mais uma ou outra rapariga que,
porque a achara linda de olhos, boca e cabelos, doce e frágil, e ágil e
maneirinha… Frei António chamava a isto, tudo isto, virtudes teologais,
“tanto eles modelam o bronze da criatura” (39). Ora estas foram as
primeiras impressões já na Sicília. Haviam resolvido regressar a
Portugal, mas o mar traiçoeiro, arrastou-os para a Itália, dissemos.
Colados de novo à terra, começaram a dar-se com a população, a trabalhar
os campos… relacionavam-se com o novo espaço.
António foi aí morrer. E ficou de Bulhões, como figura que, depois de
canonizada, fora tida como aí nascida. Os Latinos nunca se contentavam
com uma só coisa. Se aí morrera, aí havia nascido. Os Portugueses
fizeram dele patrono de Lisboa. Esqueceram S. Vicente. O radicalismo
imperou sempre na Hispânia e nas províncias várias da Itálica Península.
Aquilino, deixou-o, ao longo do seu livro, sempre bem marcado. E
noutros, o cheiro, a cor, o barulho, a azáfama… distintos que eram do
resto da Europa que conhecera e de que ouvira falar. |
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Notas |
(1) Cf. Gérard Chauvin, Islão, (trad.), s.
l., Hugin Editores, Lda, 2002, p. 5
(2) Alcorão, Sûra 2, vers. 107.
(3) Cf. Gérard Chauvin, ob. cit., p. 7
(4) Cf. Aquilino Ribeiro, Humildade Gloriosa, Lisboa, livraria Bertrand,
1966, p. 33
(5) Id., ibid., p. 31.
(6) Cf. poeta algarvio do século XI, Abu Bakr Muhammad ibn Amar Husayn
ibn Amar, in António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, IV,
Lisboa, s. d., pp. 373-374.
(7) Cf. Aquilino Ribeiro, ob. cit., pp. 27 e 33.
(8) Aquilino Ribeiro, Humildade Gloriosa, ed. cit., p. 30
(9) Id., ibidem, p. 36.
(10) Aquilino Ribeiro, ob. cit., 46.
(11) Passim.
(12) Id., ib., p. 47.
(13) Id., ib., p. 99.
(14) Ver Sûras 36 e 37
(15) Ver Sûra 15
(16) Aquilino Ribeiro, ob. cit., p. 10.
(17) Id., ibidem, pp. 36 e ss.
(18) Todo o Livro está pejado delas, o que deu origem a várias Escolas
doutrinais.
(19) Aquilino Ribeiro, ibid., p. 12.
(20) Cf. Alcorão, trad. a partir do Complexo do Rei Fahd para a
Impressão do Texto do Alcorão, Mem-Martins, SPORPRESS - Sociedade
Editorial e distribuidora, Lda., Abril de 2002, Sûra I, vers. 1-7. Ver
João Silva de Sousa, Religião e Direito do Alcorão, Lisboa, Ed. Estampa,
1986, p. 161.
(21) Aquilino Ribeiro, ob. cit., p. 19.
(22) Vide Sûra 43, versículos 11 e ss.
(23) Aquilino Ribeiro, ob. cit., p. 44.
(24) Id., ibidem, p. 37.
(25) Id, ibid., p. 26.
(26) Vide Le Coran, ed. cit., Sûra XV, vers. 45.
(27) Ibid., Sûra XVI, vers. 11.
(28) Cf. Aquilino Ribeiro, ob. cit., p. 28.
(29) Aquilino Ribeiro, ob. cit., p. 53.
(30) Id., ibid., p. 14
(31) Id., ibid., p. 12.
(32) Id., ibid., p. 64.
(33) Id., ibid., p. 90.
(34) Id., ibid., p. 97.
(35) Id., ibid., pp. 103-105.
(36) Id., ibid., pp. 103-105.
(37) Id., ibid., p. 107
(38) Id., ibid., p. 177.
(39) Id., ibid., p. 182-183. |
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