JOÃO SILVA DE SOUSA

Inéditos de A. de Almeida Fernandes (1)

Reservámos este espaço para nos ocuparmos de obras de Armando de Almeida Fernandes que se encontram ainda inéditas e de outras dos inícios da sua actividade como investigador / historiador, pouco conhecidas algumas, que, ultimamente, temos vindo a localizar com certa dificuldade, contando mesmo com o auxílio de pessoas que foram íntimas do autor. Na altura das Comemorações dos 900 Anos do Nascimento de D. Afonso Henriques em Viseu, também não podíamos deixar de avançar com algumas considerações que aqui só hoje expomos.

E é mesmo por este último item que vamos começar. Assim sendo, relembramos ainda as principais linhas expostas há dezanove anos, no seu livro Viseu, Agosto de 1109. Nasce D. Afonso Henriques (2), partindo de uma verdade de Monsieur de La Palisse, tão simples como esta : Afonso Henriques nasceu no local onde se encontrava sua mãe. Então, há que questionar : que lugar era esse ?!

Almeida Fernandes, numa defesa de teses, afirma e prova: 

          1.º D. Afonso Henriques nasceu em Viseu, em Agosto de 1109, cidade em cujo Paço se achavam seus pais: Teresa e Henrique; 

          2.º Deste modo, Guimarães não poderia ter sido a cidade onde Afonso Henriques nascera, Coimbra também não e para Lamego, nem a Tradição aponta; 

          3.º Ao prosseguir a ‘Reconquista’ com Henrique e Teresa (séculos X-XI), rumaram os dois estrategas militares com as suas hostes até certos pontos de uma linha mais próxima do Tejo, sendo, pois, Viseu, o local de residência mais apropriado à prossecução das políticas militar e paramilitares de ambos; 

          4.º A ausência da Infanta D. Teresa em Toledo, junto ao leito de morte de seu pai, Afonso VI de Leão e Castela, ainda nos funerais do imperador, e aquando da mais importante doação que alguma vez fora feita à Sé de Coimbra: a do mosteiro de Lorvão, a 29 de Julho de 1109 (3), enriquecido que estava por diferentes outorgas particulares, datadas de Viseu, uma de 21 de Dezembro de 1108 (3) e outra a 1 de Janeiro de 1109 (4). Esta tão magna traditio fora alvo de duas bulas posteriores. Grato, o papa Pascoal II envia a Sciatis omnes ao prior D. Martinho, pedindo ao cabido que agradeça a doação ao Conde D. Henrique (5), repetida pela Fraternitatem tuam, ambas de 1 de Janeiro de 1110 (6). A Catedral de Coimbra – estávamos a referir-nos – havia sido agraciada, aliás, com diferentes doações anteriores, alegadamente não tão importantes, como – citando apenas mais esta – a outorga, testamentária, do mosteiro de S. Julião, em Mangualde (7). A ausência de D. Teresa no acto oficial da doação justifica-se porque estaria, fisiologicamente, impossibilitada, aguardando o nascimento de uma criança – neste caso, de Afonso Henriques –, nos Paços em Viseu (8), que já o haviam sido de Ordonho II e de Ramiro II (9), pelo que o documento é firmado no altar de Santa Maria na Sé visiense, antes de partir a comitiva para Coimbra.

O foral de Zurara, outorgado em 1109, foi assinado no local sem a presença de D. Teresa, não cremos que pelo facto de se não poder deslocar, por ir ter o filho, como deduz Almeida Fernandes, mas, mais provavelmente, logo após este ter nascido, e D. Teresa se achar ainda no período de recobro, dado que Afonso é já referido nesta carta de foro e Afonso VII não poderia ser, dado que só é rei e senhor da Galiza, a partir de 1110-1111 (10). O certo é que, no escatocolo do diploma, depois do rol das testemunhas, surge-nos um “Domnus infans Alfonsus”, como que desgarrado do preâmbulo do documento, onde apenas se citam “henrico et uxor mea Tarasia Regina”.

Pelos números de 22 de Fevereiro e 1 e 2 de Março do Jornal O Comércio de Guimarães, teve origem este referido trabalho, acerca de Guimarães e não Coimbra como o mais provável local do nascimento daquele que viria a ser o primeiro rei de Portugal. Pois nem um nem outro… mas Viseu! Pareceria alucinação, a acreditar nas suas próprias palavras, que as fontes se desmultiplicassem e viessem a contraditar tudo em quanto, até 1990, se acreditava, razão por que o seu texto não fora publicado, pela entidade que lho havia encomendado, como o próprio nos informa. Guimarães, pela batalha de S. Mamede, poderá ser tida como berço da Independência, mas Viseu, vistos os argumentos baseados em fontes primárias, será o berço de Afonso I de Portugal, enquanto outros diplomas que venham a encontrar-se não abatam a tese magistralmente defendida pelo nosso historiador.

Curiosamente, Almeida Fernandes nunca escondeu e disse-nos, no próprio livro: “os documentos estavam todos publicados. A descoberta correspondente residiu toda na sua reunião – e foi esta que permitiu ir-se-me definindo uma doutrina até se impor, progressivamente, à minha própria quase incredulidade” (12).

Há aqui apenas uma observação a fazer e que se relaciona com a ideia de que não teria – como se ouve dizer por aí – importância nenhuma o lugar onde Afonso Henriques nasceu. Porquê Viseu agora, se há 400 anos a tradição a atribui a Guimarães? Que importância tem, pois, a cidade onde nasceu o Rei?

De facto, tem muita. Nem tanto para engrandecer o local, pois Viseu tem uma História riquíssima desde tempos anteriores a Afonso Henriques, com Viriato – muito provavelmente não mais do que uma lenda viseense, como o nascimento de Afonso Henriques o é em relação a Guimarães –, lutando toda a sua curta vida contra a dependência dos Romanos, um símbolo de 150 anos de combates, embora intermitentes, e que findaram com a vitória romana e a sua implantação local pela Deditio; Rodrigo, último rei dos Visigodos, dito por uns caído com a pesada armadura no rio Guadelete e assim, aí, facilmente abatido; mas versejam outros, em líricos sonhos, “vendo-o”, caminhando, andrajosamente, pelas terras visienses e por aqui sepultado.

Se estas são meras tradições, mitos ou lendas, sem qualquer fundamento diplomático, já verdadeiramente histórica é a presença em Viseu de Ramiro II e Ordonho II que da cidade fizeram, temporariamente, sede do Reino; D. Duarte, nascido em Viseu, sem que se levantassem até hoje, quaisquer dúvidas e problemas (13); o Infante D. Henrique que foi o primeiro duque de Viseu e deteve a alcaidaria-mor da cidade e o relego da mesma, dando-lhe prestígios acrescidos por ter vindo a ser nomeado o 1.º Administrador-mor laico da Ordem de Cristo (14) e Protector do Estudo-Geral, então, em Lisboa; e quantos mais, pelos tempos fora. Como poderemos verificar, de um lado, com muita pena nossa, teremos de colocar Viriato e Rodrigo; do outro, então, cuja verdade histórica no-los aponta para a cidade e seu almoxarifado, um tremendo número de nomes que permaneceram na História da cidade e do País, até ao nosso muito querido Virgílio Ferreira, um beirão granítico.

Interessa e muito, dizíamos, quanto ao local do nascimento seja de quem for. No caso de D. Afonso Henriques, a conjuntura da época, que explica a expansão militar para Sul contra os Muçulmanos não poderia ser levada a termo, com a mesma facilidade, se fosse do Minho para a zona meridional do País, contando com a conquista de Leiria, Santarém, Sintra, Lisboa e outras vilas e aldeias adjacentes, como sucedeu, pelo facto de a família soberana de Portugal se encontrar, por maiores lapsos de tempo, a Sul do Mondego, tentando preservar o território até ao Tejo e tomar outros locais ao Sul, como veio a verificar-se, desde 1096, como acima dissemos. Basta rever a soma de documentos emitidos pelo Cônsul Henrique e pela Infanta D. Teresa, expedidos de Viseu, entre os anos de 1108 e 1112. Será também suficiente ter em conta o apego desta cidade a D. Teresa, cujos milites tomam o partida da rainha, em S. Mamede, contra Afonso Henriques. Recordemos, como mero exemplo, os bens dos exilados de Viseu que, em 16 de Maio de 1131, são repartidos por apoiantes seus (15). Para o efeito, Maria Helena da Cruz Coelho vai buscar este caso com a mesma finalidade probatória, dos bens doados a João Viegas Ranha que haviam sido confiscados a Aires Mendes e Pedro Pais Carofe (16), bem possível que tal tivesse acontecido numa ocasião em que Afonso Henriques pretendia tomar castelos na Galiza.

A política levada a cabo por Teresa e Henrique e depois por D. Afonso Henriques na alargada área visiense e nos seus ainda mais amplos termos foi, de facto, idêntica à anteriormente usada para com as terras do Norte. Aqui não houve diferenças, mas os anos de 1108 a 1112 revelam doações, outorga de privilégios e outras concessões, a S. Pedro do Sul, Castro Daire, Lafões, Lourosa, Paço, Serrazes, Silvares, Tondela, Amaral, Covas, Lageosa, Sá, Avó, Gafanhão, entre dezenas de outras… e à própria Viseu.

O baptizado do recém-nascido Afonso – hipótese aduzida por José Mattoso –, aproveitando a presença aí do bispo de Toledo, leva D. Teresa a conceder, como forma de recompensa, à Sé da cidade, à Igreja de Santa Maria, os direitos reais, para a fábrica da Igreja, Sé episcopal visiense, e para o sustento do seu prior e mais ministros do seu altar. Foi em 1109, e eles seriam, por certo – por comparação com casos similares –, as coimas, o relego e isenção da colheita régia. E, a 21 de Julho de 1110, o conde D. Henrique, ainda fixado em Viseu, confirma à Sé Visiense, o Couto que Fernando Magno, avô de D. Teresa, lhe havia concedido dentro da cerca velha da referida cidade, doação renovada em carta testamentária, escrita pelo Prior Dom Teotónio (17).  O cônsul, apelando ao que ordenara o bisavô de D. Afonso Henriques, é demasiado exigente nas condições que obrigam a um trabalho intenso da terra e depreende-se conjuntamente com o necessário povoamento e a sua defesa, por virtude de hipotéticas reacções inimigas, porque a reconquista da reconquista e o conquistar de novo, para vir a perder depois… era situação generalizada. Na senda do cumprimento destes deveres, achámos, de 9 de Maio de 1111, a carta de foral a Sátão (18) e aos povoadores de Tavares, em Mangualde, de 27 de Fevereiro do ano seguinte (19). Ainda a 31 de Julho de 1114, D. Teresa doa à Sé a ermida de S. Silvestre, na terra de Besteiros e ainda o respectivo termo, no actual concelho de Tondela, como resultado do testamento do Conde D. Henrique, onde refere: “fecimus ecclesie Sancte Marie episcopalis sedis Visensis” (20). E as doações da infanta D. Teresa à Sé de Viseu são ainda patentes em 1121, ano em que, por exemplo, cede a D. Odório, prior da catedral, a sua vila de Vulvária (actual concelho de Oliveira do Hospital), a fim de ser povoada e cultivada (21).

Após o doc. que citámos acima e que se referia à outorga de foral a Zurara, a 25 de Dezembro de 1110, surge a ratificação de um testamento, beneficiando, em particular, a Sé de Coimbra, à qual couberam todos os bens imóveis, localizados nas regiões de Coimbra, Feira, Lafões e Sever do Vouga, caindo pela base o ano de 1111 como o do seu nascimento (22). A 1 de Março de 1121, é confirmada uma carta de privilégios a S. Martinho de Mouros, concelho de Resende, cujo documento primitivo data de antes da morte do Conde, verificada em 1112, em que se referem como concedentes D. Teresa e o conde D. Henrique (23). Num outro de 1113, diz-se “Ego Tharasia filia Imperatoris domnis Alfonsi et ego infans Alfonsus…”, como outorgantes dos castelos de Góis e Bordeiro a Anaia Vestrares (24). D. Henrique não consta, pois falecera em 1112, em Astorga.

Os diplomas aduzidos por Almeida Fernandes, com o objectivo de provar o nascimento do nosso primeiro Rei em Viseu seriam suficientes. No entanto, alguns dos que achámos e referimos servirão apenas como complemento das linhas de força sustentadas pelo autor, e para que não restem, por agora, dúvidas acerca do nascimento de Afonso em Viseu, em 1109 e, inclusive, do seu baptismo, logo a seguir, na mesma Sé, como, aliás, seria usual.

Com efeito, a omissão de elementos essenciais, nas notas de rodapé nos seus livros, que deveriam conter detalhes imprescindíveis que nos conduzissem, com alguma facilidade, à visualização dos textos remissivos, contribuiu para que não pudéssemos ainda trabalhá-los e, nas edições que se preparam para a divulgação dos seus estudos e ensaios, quando pretendemos aceder aos mesmos, temos tido longos caminhos pela frente. Todavia, tudo faz parte do nosso ofício de investigador.

O interesse que julgamos poder inferir dos trabalhos do comendador Dr. Almeida Fernandes é, por certo, de grande importância, dado que os mesmos nos podem aparecer referenciados em obras que se lhes seguem, embora não tenhamos tido ainda a oportunidade de lançarmos os traços de continuidade, estudo a estudo. Se nos fosse viável fazê-lo, lendo atentamente mais de 70 volumes, e 1 000 entradas na Enciclopédia Portuguesa e Brasileira… pouco mais fazendo na vida… ainda a história da alta Idade Média dos Godos e Suevos até à acessão de D. Afonso II, contaríamos com dada linha de rumo, através da qual, embora com alguma paciência e dobrada atenção, ficássemos sabedores do encaixe de Portugal neste pequeno mundo que se refazia, saído das Astúrias, provavelmente no Verão de 722.

Almeida Fernandes, por exemplo, num denso mas muito claro texto intitulado Notas Às Origens Portugalenses (sécs. V-XII) (25), incluído no Portugal Primitivo Medievo, inserido no sub-título “Restauração de Portugal Condal (1094)" (26), dá nota de uma conclusão diversa a que chegara. Num outro caso, em Viseu, Agosto de 1109. Nasce D. Afonso Henriques, na 4.ª ed. que preparámos, em e para 2009, - mas que apesar do interesse e das sucessivas promessas acabou por não sair -, incluímos em adenda, uma conferência apresentada em Mangualde, acerca do seu Foral, texto que melhor explica ao leitor, por que este diploma e a sua entrega à população pode constituir uma das razões que levaram o Historiador a concluir ter-se dado o nascimento do nosso primeiro Rei em Viseu. Ainda, acerca de Britiande (27), o seu inédito Os Dois Maiores Egas Moniz – Diferentes, o da Lealdade e o Aio? Não sendo um texto-chapa do anterior a que fizemos referência, aquele primeiro (Notas Às Origens Portucalenses), traz dados adicionais, na interpretação do conceito de Condado, na configuração da Galiza e no que veio a tornar-se, mais tarde, o Condado Portucalense, incluindo já o de Coimbra e a “terra de Santarém” e cujos limites a Sul atingiam, a Oriente, a linha do Tejo, desde 1096. Não fosse a morte de D. Raimundo, em 1107, e, em 1109, a de Afonso VI de Leão, tudo teria sido, muito possivelmente, diferente para a independência de Portugal e a formação de um futuro Reino, o que só foi possível já quase nos finais da vida de D. Afonso Henriques. Trata-se das velhas questões levantadas por Almeida Fernandes e que vieram a encontrar o apoio de Paulo Merêa, de tenência, por um lado, feudo por outro, a velha dependência em relação a D. Raimundo de cuja Galiza saiu Portucale – lato sensu –, com nítida subordinação de Henrique a Raimundo, atestada num número diversificado de diplomas, de que destacamos um de 1087 e outro de 1088, o que prova que a Terra Portugalense estaria nas mãos de Raimundo e Urraca, mesmo depois de se acordar a união de Henrique com Teresa, consumada de 1093, agora sim, o casamento de ambos associado à hereditas de Portugal, mas – insistimos – ainda na dependência daqueles. Os tão citados documentos de 1105 e 1106, da escrivaninha de Afonso VI em que ambos – Henrique e Raimundo – são tratados com o mesmo título de dux, Henrique como Portucalensem tenente e Raimundo como Galiciam mandante. Perguntamos: embora um governante de Portugale e o outro da Galiza, o primeiro achar-se-ia subordinado a Raimundo? Ainda do tão falado Pacto Sucessório em que a subordinação a Raimundo não traria muitos nem bons dividendos a Henrique, caso o concertado entre ambos tivesse encontrado a oportunidade esperada. Toda esta problemática que contava, de um lado com Gomes da Silva e Rui de Azevedo e, por outro com Damião Peres e Paulo Merêa, umas vezes de acordo com Almeida Fernandes noutras nem tanto, só porque era difícil reescrever o que já se tinha argumentado… calaria todos os que disputavam a verdade fosse ela qual fosse, se tivessem seguido muito simplesmente a linha de rumo que levou, em termos e situação idênticos, à legal subordinação feudo-vassálica de Afonso Henriques a seu primo Afonso VII de Leão e às atitudes de perfeita rebeldia de Teresa e Afonso em relação a Urraca e ao novo Imperador, já para não falar de atitudes tomadas pelo Conde D. Henrique, em relação a Raimundo e Afonso VI.

Datam os inéditos ou os textos menos conhecidos da autoria de Almeida Fernandes, dos seus 22 a 25 anos. Almeida Fernandes mostrou nos seus estudos, desde muito cedo, uma inclinação verdadeiramente nata e pessoal, para uma História feita, já então, baseada nos seguintes princípios:

1. Os dados em presença, sempre assentes em fontes primárias, teriam de ser interpretados à luz da época, voltando costas, por completo, ao imaginário, à tradição, à mera suposição, à lenda, ao que seria mais conveniente manter para não susceptibilizar autores anteriores, de nomeada ou não, cujas teses assentam em falsos pressupostos, levando a conclusões, porventura oportunas – pois seria essa a sua finalidade: a inversão voluntária e compulsiva dos factos –, por latentes falhas científicas. E tudo isto é sempre bem explanado, não esquecendo nunca o autor os motivos por que o exagero, a precipitação e, quantas vezes, a invenção, de que acusa, repetidas vezes, Frei Bernardo de Brito, não concorrem em nada para a clara certidão da verdade. Afirma ainda que outros resultados seriam difíceis de obter, porque “não abundam os documentos na referida época" (28).

2. A narração que acompanha a exposição factual em si, conducente à explicação do resultado da tese, parte sempre da conjugação de ciências laterais com a Ciência Histórica, com um persistente e continuado recurso à Geografia, Toponímia e Antroponímia (seus campos preferenciais), Semântica e Prosopografia, Economia, Sociologia e Antropologia…, onde o autor faz inserir as políticas, as tendências comportamentais, as Genealogias (uma constante nas suas obras de Geografia Humana e Documental), entre outras.

 3. A utilização do método usado na Matemática, da redução ao absurdo, assaz integrado pelo seu conhecido pendor para esta ciência. Confessamos que, nos seus ensaios, nos achamos quase sempre no meio de um jogo. Almeida Fernandes, começa por fazer afirmações consentâneas com o que nós, leitores, já nos parece que conhecíamos e que, mais regularmente, se sabe acerca de um determinado episódio ou personagem…, vai-nos conduzindo sempre dentro do conhecimento que tanto nós como a grande maioria das pessoas dele julgam saber e continuam a pensar; fazendo uso de argumentos baseados em autores clássicos. Corrobora, parece-nos, as conclusões destes e, por fim, espanto dos espantos: desmonta tudo, apresenta os documentos em que se baseia, destrói as frágeis linhas que sustentam esses fogos-fátuos, e expõe-nos, pela primeira vez, quanto e como a explicação tradicional lhe parece errada. Supostamente dentro das convicções de cada qual, a tese surge, modificada e bem aparelhada, sem hipótese de voltarmos a justificar o seu contrário. Recordemos os casos dos Dois Maiores Egas Moniz Diferentes: O Aio e o da Lealdade? e O Último Vali de Lamego (29), apelidado pelo vulgo local como o último rei muçulmano desta cidade, publicado em números vários do Jornal A Voz de Lamego e que, ora, ninguém de tal se recorda.

Anteriores são ainda a Cronologia da Fundação do Mosteiro de Salzedas, de 1942; O Crasto Rey de Tarouca, de 1942-1945; um trabalho sobre Beetrias que datamos de entre 1942 e 1945. A par destes, por certo, cronologicamente, não muito afastados destes, acham-se ainda: uma Dissertação sobre a viagem do Conde D. Henrique à Terra Santa, publicada no Comércio do Porto, por 1946; de seguida, a Memória sobre o Mosteiro de Recião e o romance histórico Rainha das Mãos Formosas – Romance do Conde D. Pedro.

Aditamentos e eventuais correcções fê-las sempre que achou necessário, não escondendo que errou, se precipitou nas “aleivosias” como lhes chama, – às dele e às dos outros –, emendando o que houver a fazer, dando nota das suas mais recentes opiniões. Esteve sempre consciente de que, em História, e para quem a faz com recurso a fontes primárias ou não, poderá, em qualquer altura, modificar e corrigir o que lhe parecer ter antes afirmado, e necessitar, então, de ser alterado.

Para terminarmos, gostaríamos de fazer referência a uma densíssima obra, esta ainda inédita e em que estamos a trabalhar, intitulada pelo seu autor de Geografia Documental e cujo manuscrito data do ano 2000, ou seja, de dois anos antes do falecimento do historiador. São centenas de excertos de documentos, devidamente datados, precedidos de uma introdução, com indicação simplificada de fontes para cada um dos diplomas e que, entre outras particularidades, deixam antever o resultado de um trabalho de mais de sessenta anos. São impressionantes referências documentais tratadas, naturalmente, com novidade, pois, se assim não fosse, o trabalho não teria interesse em ser levado a termo por parte do mesmo. Neste caso vertente, estamos ante uma colectânea de diplomas, arrolados, estudados e cruzados de uma forma coerente e crítica que vão enraizar na alta Idade Média, nos anos 700 a 1100, sensivelmente.

A concepção dialética do espaço geográfico entende que a natureza humanizada influencia e é influenciada pela sociedade que produz e reproduz o seu espaço.

Minúsculos alódios rústicos de incomuniados, em busca de alguma estabilidade, e fuga ao peso do dever para com senhores de coutos e honras, latifundiários que eram, que, em fossados, presúrias e hostes, confiavam aos seus dependentes a manutenção e o desenvolvimento da sua estreita economia, que dava a uns e aos outros a base de sustentação e desenvolvimento, seu e dos pequenos feudos, que se estavam formando na Hispânia. 

Uma definição simples poderá também ser tida como o estudo da superfície do terreno e a distribuição espacial no mesmo, de fenómenos geográficos, resultado da relação recíproca entre o Homem e o Meio em que ele vive e trabalha. Assim, a Geografia de Armando de Almeida Fernandes estuda as relações entre a sociedade e o meio, entre a vida e o terreno, onde se desenrolaram os seus acontecimentos. A Geograficidade delineada neste volumoso e importante texto do nosso autor não apresenta fractura entre a “Geografia Humana” e a “Geografia Física”. Antes as interliga, porque o conhecimento é incomensurável e depende de vectores dos mais mediáticos até aos totalmente impensáveis, caindo por terra, as máximas redutoras de quadrantes limitativos da Ciência em causa e do papel dos Geógrafos e Historiadores. Ele próprio apela à nossa atenção para a Geografia “física” e para a “humana”: nomes e acidentes naturais interrelacionados e explicitados neste seu estudo original.

Um dos vectores que melhor traduzem a importância dos homens no meio – ou seja, na “Geografia Física” –, é a diversidade toponímica, com todas as suas múltiplas secções. A Toponímia consiste na divisão da Onomástica que estuda os topónimos ou os nomes próprios dos lugares, da sua origem e do resultado da sua evolução. É também uma parte da Linguística, contando, pois, com férreas ligações com a História, a Arqueologia e a Geografia, naturalmente.

O autor explicita por si mesmo o que o levou a escrever e o que quis que daí resultasse: “Não trato aqui […] de toponímia, mas de “geografia” (física e também, discretamente, humana, com figuras de relevo pessoal medievo” – Sentimental, como lhe chamaria Aquilino Ribeiro –, envolta em lembranças de um Passado recente. Recordações das horas a fio em que Armando de Almeida Fernandes se sentava, demoradamente, à Secretária, como sempre o havia feito.

Nos últimos momentos de vida, lembrava também o que escrevera, o que queria ainda sublinhar, por que não mudara de ideias, ou confessando que desconhecia o verdadeiro significado de alguns nomes, a relação de factos com as interpretações que nunca arriscara, porque não sabia!

Sabia muito. E quanto não nos transmitiu, pela primeira vez, desde que voltou costas a honrarias – era ainda jovem – até vir a falecer?! É a sua verdadeira Geografia Documental: humana e sentimental. Foi num último sopro de vida que lhe foi permitido, já, então, apenas com os filhos e o neto, desabafar, em revolta sentida, desconhecimentos que, em breve, deixaria de poder esforçar nas suas folhas sem linhas, relevando os seus sentidos, a fim de dar significado a factos e nomes que se atropelavam e explicando, como sempre teve o cuidado de fazer, ainda algo mais que não queria, por certo, deixar esquecido.

Almeida Fernandes pensou e trabalhou até ao fim. Foi este o verdadeiro sentido que quis dar à sua vida. O resultado está na herança de um nome que legara ao País, aos Amigos, à Família, aos Estudantes e Investigadores. Mesmo aos que se lhe opunham, quantas vezes através de comentários grosseiros, porque Almeida Fernandes ia ao âmago das questões, explicando até ao ínfimo pormenor e vencendo as tradições, quando meramente baseadas em sistemas convencionais, quando havia muitos que não queriam que fossem abatidas e substituídas. Eram questões de “folclore”, de colorido, de lendário fabuloso, fabricadas pelo costume que, na História, não valiam nem colhiam.

Dirige-se, sobretudo, às futuras gerações que lhe seguem as linhas de rumo, em teses inspiradas mas que partem das antigas imensas clareiras pedagógicas e científicas em que foi empilhando centenas de estudos. Trabalhou até ao fim. Morreu de pé. De pé, permanecem igualmente as suas obras. Algumas são autênticas teias intrincadas mas, nem por isso, inacessíveis, acerca dos capítulos mais difíceis de tratar a História do nosso País. Dos pré-romanos, dos Suevos e Godos…, e dos inícios das Astúrias…, até aos nossos dias, decorrem para cima de cinco mil anos. Diz-se que a História é curta. Parece que cristalizamos em diminutas áreas temporais. É tudo verdade. Mas Almeida Fernandes construiu o nosso saber, deitando mãos, sobretudo, aos primeiros tempos da nossa medievalidade, recuando às centúrias que antecederam as origens romanas e à grande ponte do saber que os Godos transpuseram da Latinidade para novas eras do tão falado cinzentismo e austeridade medievos.

Será o trajecto temporal que projecta neste livro que pretendemos que fique pronto até 2012. O “geográfico” tem sobretudo a dimensão da Galiza e das Astúrias, de Leão e Castela. E daqui a Portugal: do Minho à longa linha do Tejo.

Na presente obra, corremos do Tejo à Galiza.

Começámos por escalpelizar excertos documentais, nos mais variados items, e aproximámo-nos, por coincidência, da Geografia que foi o palco da sua vida.

Vimos, claramente, que o Historiador se socorreu de ciências várias e da orgânica de institutos religiosos, e religiosos e militares.

Foi à raiz das palavras, a sufixos, prefixos e radicais, aos étimos pré-romanos e latinos; galeses, celtas e germânicos, principalmente suévico-visogodos e árabes.

Curiosamente, sublinhou sempre que o nosso País teve a sua origem (como todos os demais Estados da Península) no desenvolvimento de técnicas agrícolas que pudessem facilitar a conquista de terrenos para a agricultura, além do inevitável sistema de defesa que ia sendo cada vez mais aparatoso, combinado com a força anímica e física de todos os que sustentavam um forte sentido de protecção e resguardo de suas pessoas, bens, casas e abrigos, e sementeiras.

Surgiram, então, o castro, a castelo a fortaleza, o monte, a serra, a água, a pedra, a rocha, plantas totémicas e anímicas e quantos mais elementos com estes directamente relacionados na origem dos nomes dos lugares, vilas e cidades nos condados do futuro Portugal. Afinal, a Geografia pode explicar a Toponímia, e esta, por certo, a História. As gentes que por aí residiam, que por lá se fixavam – agricultores e homens de ofícios –, originaram a Antroponímia. Todos, por junto, clarificaram a razão de ser, pelo significado deduzido dos sistemas em causa.

Eis a geografia documental: as variadas tipologias de acidentes naturais e a influência directa destes na origem dos nomes das terras… As múltiplas hipóteses que nos são dadas, pela ordem inversa: os variados acidentes na terra que são traduzidos pelos nomes por que lugares do País são conhecidos e alguns, para uma maior correcção, têm ainda de ser modificados no seu radical. Por quê Rio Varosa, ser o nome vem de barro: o Barosa e o Barosela? Por quê Baldigem se o topónimo advém de (terreno) “baldio”?

De entre as centenas de documentos que aqui encontrámos e extraídos de variadas fontes como se verá, 80% provêm dos séculos IX a XI, correspondendo os demais a tempos posteriores. Ainda, a percentagem dos mesmos aqui constantes é extraordinariamente mais elevada, no que se refere ao Ribadouro: 74%, ficando-se os demais espalhados pelo Sul do Mondego e pelo Norte da Comarca do Entre-Douro-e-Minho, o que demonstra uma nítida preferência e uma evidente vitalidade demográfica e cultural daquela primeira região nos séculos intermédios da 1.ª fase da “Reconquista”. Os interesses em causa, num e noutro lado, revelam aspectos materiais e espirituais na geografia documental de ambas as regiões e no espírito dos mandantes que nos surgem bem localizados: importantes famílias de outrora, os condes soberanos, os reis das Astúrias, de Castela e Leão e os Príncipes e cônsul da Terra Portucalense.

Sofrendo pelo que sabemos e por mais quanto nem suspeitamos, Armando de Almeida Fernandes continuou a apoiar-se no trabalho, como modo de passar o seu último sopro de vida, fazendo-o distrair-se de tudo aquilo em que não queria pensar… Deixou o seu Requiem musicado em notas melódicas e cantado nas suas folhas de papel, como forma de síntese de quanto pensou, traçou e assim deu o sentido que queria e de que se achava dono, por direito, à sua vida. Resenha do que fizera em toda ela: a toponímia, por onde começa, com mais ou menos irritação, com mais ou menos louvores a quantos se desviavam sem justificações precisas e aceitáveis do que ele primeiro havia interpretado e, mais adiante, corrigido. Deixou, aqui, os seus nomes como forma de os homenagear e de lhes agradecer pelos contributos que lhe haviam permitido reflectir e disparar contra máximas erradas, porque forçadamente construídas, e sem sentido. Queixava-se…, mas ia em frente, em nome das ciências e do saber correcto:

“Nas sombras das veredas, nas dos montes,

nas expansões de luz, no som das fontes,

são vozes aos milhares:

Quando uma me censura, outra me anima;

Se caio ali de rojo, além me ergo acima,

à luz de mil olhares”.

(A. de Almeida Fernandes) (30)

(1) Conferência apresentada na Academia Portuguesa da História, a 20 de Novembro de 2009, por ocasião do Colóquio “A. de Almeida Fernandes”.

(2) Ed. do Governo Civil do Distrito de Viseu, 1993, 2.ª ed.. Os doze capítulos do presente livro e o seu posfácio foram publicados na revista Beira Alta, Viseu, XLIX-1 e 2 (1990) a L-3 (1991), como uma 1.ª ed.

(3) IAN/TT., Tombo Velho da Sé de Viseu, fl. 53v e maço I (régios), doc. 4

(4) IAN/TT, C.R., Lorvão, m. II, doc. 14.

(5) IAN/TT., C.R., Lorvão, m. II. Doc. 15

(6) Livro Preto, 625.

(7) Livro Preto, 626. Veja-se acerca do presente facto, Maria João Branco, “Reis, Condes, Mosteiros e Poderes: O Mosteiro de Lorvão no Contexto Político do Reino de Leão (sécs. IX-XII), in Liber Terstamentorum Coenobii Laurbanensis, Colección “Fuentes y Estudíos de Historia Leonesa”, dir. por José M.ª Fernández Catón, n.º 12, León, 2008, pp. 27-77 e os dois artigos seguintes de Aires A. Nascimento, pp. 81-184.

(8) Vide Documentos Medievais Portugueses, dir, por Rui de Azevedo, Documentos Régios. Vol. I – Documentos dos condes portugalenses e de D. Afonso Henriques, A.D. 1095-1185, t. I, Lisboa, 1958, que designaremos, de futuro, como DR.

(9) Ver A. de Almeida Fernandes, Viseu, Agosto de 1109, Nasce D. Afonso Henriques, supracit..

(10) Cf. Maria Ângela Beirante, in Nova História de Portugal,. coord. por Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques,  Vol. II.

(11) Carta de foral concedida a Azurara da Beira, concelho de Mangualde, onde é referido que “ego comite Henricus et uxor mea domna Tarasia Ildefonsi regis filia cartulam facimus ad populationes de Zurara de foro inter rybulo Adon et Mondeci et inter Pennalua et ipsius Zurara et ribulo Ryal”. Documento que nos levaria a 1102, é corrigido pelo próprio Rui de Azevedo e aceite por Almeida Fernandes, explicada a data por argumentos bem explanados numa sua conferência que preparámos para reeditar em apêndice na 4.ª ed. de Viseu, Agosto de 1109. Nasce D. Afonso Henriques (no prelo, desde 2009).

(12) A. de Almeida Fernandes, ibidem. Vejam-se A. de Almeida Fernandes, “Viseu – Pátria de D. Afonso Henriques” e João Silva de Sousa, “D. Afonso Henriques (Infante, Príncipe, dux e Rei. 1109-1185)”, in Afonso Henriques (1109/1185) “O Pai da Pátria”, in Colecção Visienses de boa memória, Viseu, Avis, Jan. de 2009, pp. 9-32 e 33-70, respectivamente.

(13) Ver Luís Miguel Duarte, D. Duarte. Requiem por um Rei Triste, in Reis de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005.

(14) Cf. João Silva de Sousa, A Casa Senhorial do Infante D. Henrique, Lisboa, Livros Horizonte, 1991.

(15) DMP, DR., 117. IAN/TT., CR., Pendorada, maço 8, doc. 2.

(16) Ibidem, I, doc. 117 e Maria Helena da Cruz Coelho, Seia uma terra de fronteira nos séculos XII-XIII, Câmara Municipal de Seia, p. 18, onde diz que o monarca se refere nestes ternos: “exerdo illos pro que sunt meos rebelles et intrarunt in Sena in meo contrario cum meos inimicos sine mea culpa et sine malefeito qui ego fecisset eos”.

(17) IAN/TT., Tombo Velho da Sé de Viseu, fl. 53v e Documentos Régios, 19. E diz-se aí: “Hec est carta testamenti quam ego Henricus comes simul cum uxore mea Tarasia regis Ildefonsi filia”.

(18) IAN/TT., Forais Antigos, man. VIII, n.º 9. Documentos Régios, n.º 24.

(19) IAN/TT., Gavetas, gaveta 15, maço 13, n.o 9. Documentos Régios, n.º 27.

(20) IAN/TT., Sé de Viseu, maço I, doc. 13., onde se diz “fecimus ecclesie Sancte Marie episcopalis sedis Visensis”, facto que não estaria correcto, dado que só voltou a ter bispo, depois de 1147, o mesmo sucedendo a Lamego.

(21) IAN/TT., Gavetas, gav. I, maço 6, n.º 6.

(22) O doc. data de 25 de Dezembro. IAN/TT, Sé de Coimbra, maço III, docs. 1º, 11 e 12.

(23) IAN/TT, Forais Antigos, maço VIII, n.º6. Documentos Régios, 57.

(24) Documentos Medievais Portugueses, cits., Doc. Régio, n.º 39.

(25) Porto, 1968.

(26) Ed. de 2000-

(27) Ed. de Braga, 1997.

(28) Ver a  Intervenção de Lamego na Libertação Nacional – 1126/1128, Viseu, 1995.

(29) Anos de 1943 a 1945.

(30) Céu Amargo, 1957, p. 57.

A. de Almeida Fernandes no TriploV

João Silva de Sousa. Prof. da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Académico Correspondente da Academia Portuguesa da História)