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JOÃO SILVA DE SOUSA |
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D. Afonso Henriques n’
«Os
Lusíadas» |
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O Lírico e o Épico |
“Doutos varões darão razões
subidas,
Mas são experiências mais provadas
E por isso é melhor ter muito visto.
Cousas há i que passam sem ser criadas,
E cousas criadas há sem ser passadas;
Mas o melhor de tudo é crer em Cristo”
Luís de
Camões |
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Luís de
Camões intercalou, inteligentemente, o género épico com o lírico n’
Os Lusíadas. Foi uma técnica inteligentemente valorativa para este
magnífico Poema dividido em dez cantos, cada qual com um número variável
de estrofes, cada uma de oito linhas decassilábicas. Tendo em conta um
sem-número de episódios magistralmente exalçados, seria de calcular que
o grande Poema contivesse segmentos líricos, por sinal, quanto a nós, os
mais cativantes, os que nos prendem vivamente a atenção, intercalados
com a epopeia que se inicia com a frota lusa no Índico, detendo-se em
Moçambique: é, exactamente na sua costa marítima que nos situamos para
tomarmos conhecimento do desenrolar de toda a ‘história’. A frota avança
até Mombaça, chegando a Melinde, cujo rei visita a armada e pede a Vasco
da Gama que lhe descreva o seu País, a localização e a sua História.
Assim toma lugar a narrativa dos factos relacionados com a presença do
Conde D. Henrique, nas terras de Coimbra e de Portucale, em simultâneo
com a ligação de parentesco a Afonso VI de Leão e Castela, por ter
casado com D. Teresa (Canto III).
O Poeta prossegue, dando nota de factos ligados com D. Afonso Henriques,
no Canto III, tendo o irmão de Vasco da Gama, de nome Paulo da Gama,
prosseguido com mais algumas explicações, quando o Catual e Naires são
recebidos a bordo, frente a Calecut, na Índia, conduzindo uma embaixada
portuguesa junto ao Samorim. Pouco depois, Paulo da Gama, recebendo o
Catual, a bordo da Capitaina, responde, prontamente ao que lhe é
perguntado acerca do significado das figuras desenhadas nas bandeiras de
seda, começando, mais uma vez, desta feita muito resumidamente, por D.
Afonso Henriques, cuja imagem é aí também invocada (Canto VIII).
Partindo de regresso da Índia a Portugal, chegam a Lisboa, já sem Paulo
da Gama que acabara de falecer, em Angra, nos Açores, em 1498, tendo
sido sepultado na cidade, na Igreja de Nossa Senhora da Guia, do
Convento de S. Francisco. Paulo da Gama, irmão mais velho de Vasco da
Gama, comandou a nau S. Rafael, quando o acompanhou ao Oriente.
Com tantas aventuras em que os Portugueses se vêem envolvidos, eles
acabam por contar com a intervenção dos deuses romanos, das ninfas e das
Tágides, uns a favor outros contra, vencendo o bem sobre o mal e capazes
de fazer esquecer os feitos de Baco no Oriente, para os substituir pelos
dos Portugueses, não tendo nunca sido em vão as súplicas a Deus, também
ouvidas e, por isso, operativas, favorecendo-os nos seus difíceis
trâmites.
Nos quadros descritos pelo grande Poeta, deparamos com narrativas, por
um lado, guerreiras, por outro, amorosas, – umas férreas, outras brandas
–, que ele sintetiza no verso “nua mão sempre a espada e noutra a pena”.
Esta famosa linha pode não significar apenas isto, dado que as
descrições das epopeias nos apresentam, com a devida clareza, o esforço
bélico do seu herói primeiro – o Povo Português – reescrito com a tinta
do seu sangue, nas constantes investidas contra o Mouro de dentro e no
exterior do País.
Tenhamos em conta os primeiros acometimentos agressivos militares da
nossa História com os quais os milites estribaram o Reino e deram
a D. Afonso Henriques motivos suficientes e claros de vir a tornar-se no
Rei do primeiro território independente europeu. Entre os mais antigos e
demonstrativos de maior bravura – episódios do maravilhoso ou não,
associados ao que ele, dadas as ocorrências, exprime como “Que
estranhezas, que grandes qualidades / E tudo sem mentir, puras verdades”
–, estão Ourique, Lisboa e Badajoz.
De facto, o que é fantástico no Poeta é o modo como enreda
acontecimentos lendários, mitológicos, tradicionais, puros mas não
verdadeiros, na verdade histórica, o que o torna um narrador, por
excelência. E Camões sabe – como outros que se tornaram nos melhores
vultos do Renascimento e do Humanismo –, considerar que o que é
importante é o Homem amante ou guerreiro, ou ambas as coisas. Mesmo os
deuses “humanizados”, que intervêm na história tão heróica como lírica
do seu grandioso texto, não negam o Classicismo, nem deixam de
adaptar-se às novas correntes estéticas da arte e da Literatura que não
dissociam, tal como Camões não separa, assim como a nós não é permitido
ignorar.
O género épico ou narrativo tinha, então, para o Classicismo dos séculos
renascentistas certas regras abstraídas de estereótipos que advinham da
Ilíada e da Odisseia homéricas e um tanto menos da
Eneida de Virgílio.
Religião sem dogmas, a da Grécia antiga, não comporta crenças que os
homens tenham o dever de aceitar por obrigação de consciência, até
porque o conceito do Além varia de poeta para poeta, cabendo a cada um
deles “fantasiar” a vida depois da morte. É mais colectiva do que
pessoal: só muito rara e tardiamente, os crentes e amantes do
maravilhoso que ia passando de geração em geração, procuraram
assegurar-se do seu devido comportamento, através da prática da
religião. Ela é de todos, como um forte elemento de união: o seu
objectivo é alcançar a protecção dos deuses aos diferentes grupos que
constituem a sociedade – a família, ou a tribo ou, mais amplamente, a
cidade.
A religião é antropomórfica, como será também a Romana.
Aparentemente, não há diferenças entre Zeus e Júpiter, entre Afrodite e
Vénus, entre Dionísio e Baco, entre Poseidon e Neptuno. Referimos estes,
na sua relação Grécia/Roma, porque são, entre outros, os mais
interferentes no destino da frota portuguesa que se dirige, então, para
Calecut, no dizer de Camões, no seu intrincado apelo ao maravilhoso
pagão.
A mitologia conta também com os
seus heróis ou semi-deuses. São aqueles que lemos referenciados nos
Poemas Homéricos e em Virgílio.
´ .
Perseu é filho de Zeus e da mortal Danae.
.
Medusa, uma Gorgónea, tem serpentes no lugar dos cabelos e transforma em
pedra quem a olha. É morta por Perseu que lhe corta a cabeça, com a
ajuda da deusa Atena.
.
Belerofone surge montado no seu magnífico cavalo alado, de nome Pégaso,
matou Chimera, um monstro com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de
serpente – uma autêntica aberração física, para mais vomitava fogo.
. Jasão
partiu no navio de Argo, com os seus companheiros, os Argonautas, a fim
de roubar aos Bárbaros o Tosão de Ouro. Foi, para o efeito, ajudado por
Medeia, filha do rei do País, guardado que era por um enorme dragão que
ela fez adormecer.
. Teseu,
filho de Egeu, rei de Atenas, deu conta dos bandidos que infestavam a
cidade. A sua mais importante viagem conduziu-o a Creta, onde um monstro
meio homem, meio touro, o Minotauro, alojado num labirinto com dezenas
de corredores, exigia um tributo anual de jovens atenienses que ele
devorava. Ariane auxiliou-o, dando-lhe um fio para que, através dele,
Teseu pudesse sair tal como entrou, tendo matado o bravo touro.
. Édipo,
filho do rei de Tebas, de nome Laios e de Jocasta, livrou a cidade de um
monstro-mulher, conhecido pelo nome de Esfinge. Esta colocava aos
viajantes inigmas que eles tinham de resolver.
. Herácles, particularmente
querido pelos Dórios, detentor de uma força única, pôde realizar os
feitos por que ficou famoso, ou seja, os seus doze trabalhos: No
Peloponeso, estrangulou o Leão de Nemeia; matou a Hidra de Lerna, uma
serpente com corpo de dragão, que possuía nove cabeças; alcançou,
correndo velozmente nunca visto, a Corça de Cerínia, um animal com
chifres de ouro e pés de bronze; capturou vivo o Javali de Erimanto, que
devastava tudo, por todo o lado; limpou, num dia, os currais do rei
Aúgias, que continham três mil bois e que, havia trinta anos, não eram
limpos; matou no lago Estínfalo, com suas flechas envenenadas, monstros
cujas asas, cabeça e bico eram de ferro, e que, pelo seu gigantesco
tamanho, interceptavam no voo os raios do Sol; levou o Touro de Creta
vivo até Euristeu, que, por sua vez, o entregaria a Hera; Castigou
Diómedes (rei da Trácia), filho de Ares, possuidor de cavalos que
vomitavam fumo e fogo, e aos quais ele dava a comer os estrangeiros que
as tempestades arrolavam à sua costa. O herói entregou-o à voracidade de
seus próprios animais; venceu as amazonas, tirou-lhes a rainha Hipólita,
apossando-se do cinturão mágico que ela vestia; matou o gigante Gerion,
monstro de três corpos, seis braços e seis asas, e tomou-lhe os bois que
se achavam guardados por um cão de duas cabeças, e um dragão de sete;
trouxe do mundo dos mortos o seu guardião, o cão Cérbero; colheu os
pomos de ouro do Jardim das Hespérides, após matar o dragão de cem
cabeças que os guardava (1).
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(Os doze trabalhos de
Hércules, painel lateral de um sarcófago da Colecção Ludovisi) |
Os Romanos criaram a sua religião em paralelo com a dos Helenos. Ao
invés de cada cidade ter o seu, embora colectivamente fossem respeitados
por toda a gente, Roma tinha um panteão único e extensivo a todo o
Império. Assim, estamos perante uma religião politeísta, como já Camões
nos vem asseverando, desde o início de Os Lusíadas.
Roma e o seu Povo aceitaram e veneraram uma multidão de divindades, os
numina, cuja representação desconheciam. Em casa, havia um deus
da porta, um do ferrolho e outro da soleira. Uma divindade assistia ao
nascimento da criança, uma outra à primeira aleitação, outra ainda aos
seus primeiros passos e mais uma que atendia às primeiras palavras
balbuciadas. Havia também um numen (um poder mágico)
especializado em cada um dos trabalhos agrícolas. Da grande quantidade
de numina, emergia um certo número de deuses representados sob a
forma humana.
Sem dogmas, como nas cidades-estados da Grécia, a religião dos Romanos
não impunha regras, mas respeito. Tinha, contudo, um carácter formalista
e prático. O culto propunha-se conseguir a obtenção do favor divino,
através de orações rituais minuciosas, formuladas com a máxima
correcção, com sacrifícios normalizados de princípio, isto é, da
intenção, ao fim.
Era uma religião cívica. Conforme Cícero, “o cuidado que a religião e a
conduta da República impunham eram confiados aos mesmos homens”.
Os doze grandes deuses da época clássica correspondem aos que se reúnem
no Olimpo para decidir do destino dos Portugueses no mar, porque estes
espelhavam os jovens marinheiros latinos, no dizer de Afrodite.
Retirados os deuses do Inferno (Plutão) e do vinho (Baco que tanto quis
prejudicar os Portugueses para que o seu nome no Oriente não fosse
esquecido), tinham as mesmas atribuições que entre os Gregos, como,
sobre alguns, já acima pretendemos estabelecer: Júpiter era Zeus; Juno,
a Hera; Minerva correspondia a Atena; Ceres era Deméter; Marte era Heres,
entre os Gregos; Vénus, a Afrodite; Vulcano era Efaístos; Apolo era
Efebus; Diana correspondia a Artemisa; Mercúrio a Hermes; Vestia era
Hestia; Neptuno correspondia a Poseidon. Lendo Os Lusíadas,
facilmente retiramos a ideia de que, entre os deuses romanos, havia,
simultaneamente, a Concórdia, a Esperança, a Piedade, o Amor, o Ódio, a
Reprovação, a Autoridade, a Inter-ajuda, a Manha e a Dissimulação,
enfim, os sentimentos de qualquer humano comum. E vai ser com estes
predicados – um a um ou dois a dois –que os Portugueses vão ter de saber
lidar no Mar, contra monstros, ventos e marés. O Pontifex Maximus,
no enredo camoniano, é alternadamente: Júpiter, Marte, Neptuno, Eolo,
deus dos ventos, e Baco, o grande opositor.
Em versos fantásticos onde intervêm estas figuras mitológicas, somos
forçados a beber a beleza de uma Atenas e de uma Roma de outros tempos,
visionando um paraíso terreno que a população pretendia construir à
semelhança do Olimpo. Os órgãos de governação, sobretudo os que
compunham a Democracia ateniense, advinham das crenças de um deus
mandante, ordenador e o último a decidir, mas depois de ouvir sempre os
representantes dos vários lados das questões que lhe fossem colocadas, a
fim de melhor mandar proceder. A desobediência de Baco, por exemplo,
correspondia à velha dissidência que sempre existiu em qualquer “Estado”
ou religião. A ideia de obter adeptos era também normal, como assim o
foi em qualquer período da História dos homens. |
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2. D. Afonso Henriques.
Início da descrição |
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“Era um violento e, cortado no roble de todos os
guerreiros da Idade Média, egoísta, sensualão e déspota. Se não
fosse assim, não teria fundado um reino”.
(Aquilino Ribeiro) |
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Era já velha, como vimos, a ideia de se relatarem, em poemas épicos, as
façanhas de um povo. Assim sucedeu com os Lusitanos ou os Portugueses no
poema de Luís de Camões.
Em a
Narração, no Canto III e no Canto VIII, o nosso Poeta refere-se a D.
Afonso Henriques. Cada uma das suas invocações precede a exposição da
História de Portugal. D. Afonso, para ser cantado por Camões, levou este
a invocar Calíope, a musa da Epopeia épica e da Eloquência:
“Agora tu, Calíope, me ensina
O que contou ao Rei o ilustre Gama:
Inspira imortal canto e voz divina,
Neste peito mortal, que tanto te ama”. (2)
Porque o assunto principal do Poema é precisamente esse, Camões não
entra nele sem invocar a ajuda da musa.
A personagem escolhida pelo
Poeta, seja de romance, de epopeia – como é o caso –, de poema lírico –
também –, constitui um problema com que depara, e tem a ver directamente
com as modalidades da sua análise e do seu estatuto – pontos essenciais
da fixação tradicional da “crítica” antiga (e recente). Em torno deste
lugar estratégico, a retórica clássica regista como unidades autónomas
“figuras” ou “géneros”, como o retrato (Afonso Henriques e os demais
reis de Portugal, neste caso, até D. Sebastião e as divindades chamadas
para o elenco), o brasão ou sinal, a alegoria, a prosopopeia, a
comparação…, aliás, sem os distinguir ou definir, mas usando-os, uns com
mais precisão do que outros. Quem foi Afonso, e sua mãe, D. Teresa… e
Calíope, Afrodite e Júpiter…? Ou quem foi o modelo de Afonso VI, de
Leão?. Tudo permanece vivo e visível e as tipologias mais elaboradas
fundamentam-se, frequentemente, numa teoria da personagem (Afonso
torna-se, de início, um herói problemático, nos campos de identificação
ou de compensação… A voga de uma certa crítica psicanalítica conduzida
mais ou menos empiricamente contribuirá para tornar esta problemática da
personagem um objecto de estudo muito valorizado, como se verá, neste
caso concreto, com D. Afonso Henriques, de “Rei” a Rei.
O
Poeta, contudo, não foi longe ao narrar os feitos do nosso Príncipe,
pois pareceu ficar-se por Duarte Galvão, um cronista do século XVI,
de uma pobreza histórica encaiporada, plena de factos totalmente
inaceitáveis (3).
No entanto, na estrutura do episódio relativo ao nosso primeiro rei,
encontramos as estrofes seguintes: “Descrição Geográfica de
Portucale” (estrofe 20); “Luso ou Lisa” (estr. 21); “Viriato” (estr.
22); “Afonso VI, avô de D. Afonso Henriques” (estr. 23 e 24); “Conde
D. Henrique” (estr. 25-27) e “D. Afonso Henriques” (28-85). Dentro
desta epígrafe, encontramos as “Lutas de D. Afonso com a Mãe” (estr.
30-33); “Invasão de Portugal por Afonso VII, seu Primo, imperador de
Leão e Castela” (estr. 34-35); “Egas Moniz” (estr. 36-41); “Afonso
Henriques Prepara-se para Combater os Mouros em Portucale” (estr.
42-47); “Batalha de Ourique” (estr. 48-54); “Tomada de Leiria,
Arronches e Santarém” (estr. 55); “Santarém” (estr. 56); “Lisboa” (estr.
57-60); “Óbidos, Alenquer e Torres Vedras” (estr. 61); “Elvas,
Moura, Serpa e Alcácer” (estr. 62); “Évora” (estr. 63); “Beja” (estr.
64); “Palmela e Sesimbra” (estr. 65); “Badajoz e o Grande Desastre
para os Portugueses” (estr. 66-74); “Infante D. Sancho” (estr.
75-88); e a “Morte de D. Afonso Henriques” (estr. 85-85).
Filho do Conde D. Henrique, cônsul de Portugale, falecido em 1112, e
de D. Teresa de Leão, o Poeta diz que o Infante era neto, por parte
do pai, “de hum Rei da Hungria” (4), revelando-se totalmente
equivocado, porquanto pertencia à família ducal da Borgonha, trineto
de Roberto II, rei de França, sobrinho de Hugo I e de Eude I, duques
da Borgonha, todos descendentes de Hugo Capeto, filho de Hugo, o
Grande, reis dos Francos, da parte do pai e, do lado materno, neto
do Imperador Afonso VI e bisneto de Fernando I de Leão e Castela
(Fernando, o Magno, filho de Sancho III de Navarra).
Camões, nas comparações que faz, exagera, por demais – a nosso ver
–, os defeitos da mãe de Afonso Henriques (5): “Onde a mãi
[referindo-se ao recontro em Guimarães], que tão pouco o parecia / A
seu filho negava o amor, e a terra" (6).
As paixões, as lutas, os grandes trabalhos que têm lugar nos
bastidores do futuro Reino, que pertencem, de ordinário, aos deuses,
são explicadas por duas forças em confronto: as de Afonso e as de
Teresa, sua mãe, em Guimarães, a 24 de Junho de 1128. No entanto,
descrevendo as consequências desta desastrosa cena comparada a
outras congéneres, ele diz que a rainha “contra o filho vai”.
Resta-nos saber se foi Teresa quem atacou o filho ou, pelo
contrário, o que mais se tem contado, se foi o filho que a
confrontou com o seu exército. Provavelmente, nem terá sido um
confronto militar tão bárbaro como outros, nem civil, como nos é
contado. Recordamos D. Afonso Sanches (séc. XIV) e D. Pedro em
Alfarrobeira (século XV) … Pensamos não ser de comparar, embora com
consequências que, porventura, deram resultados positivos para a
salvação da terra portucalense que se viu livre, com alguma
facilidade, das obrigações, indiscutíveis, de incomuniação e
benefactoria em relação ao Império governado pelo primo na Hispânia
cristã, ou seja a “grão fidelidade Portugueza, / de vassallo que a
tanto se obrigava!" (7); a definição de fronteiras num território
livre; do alcance, por liberalidade papal, da atribuição do título
de Rei; da formação de um Reino que prosseguia as suas conquistas,
alimentando-lhe a área e da sucessão hereditária que ia afastando os
Castelhanos do trono de Portugal.
A
figura de Afonso Henriques, como uma das principais personagens de
Os Lusíadas não é, como já demos a entender, uma criação camoniana,
mas uma das figuras estritamente heróicas, que ele volta a retratar
e a expor à nossa apreciação. Limita-se a dar-lhe vida e fazê-lo
desfilar ante os leitores, dotado de uma grandeza indiscutível que a
morte selara já de uma vez por todas. Vejamos no Canto VIII, como
ele faz retirar de uma das bandeiras da Capitaina “o primeiro Afonso
[…] / que todo o Portugal aos Mouros toma” (8). Apresenta-o como um
grande militar, o que lhe originou o cognome de “O Conquistador”,
quando, na verdade, a sua política diplomática ter-lhe-á valido –
com idêntica importância – a concretização dos seus adjacentes
desideratos, preocupação que já vinha de seu pai, interrompida, um
tanto inteligentemente, por sua mãe que terá preferido, subtil e
consensualmente, obter a independência, sem que tivesse tido tempo
para consegui-lo. Só a seguir vemos actuar o Infante, nesse mesmo
sentido, desde que iniciou lides no seu espaço até 1179, quando
obteve a bula papal do seu imperium. Questionamo-nos: a força social
e o prestígio de Família de Fernão Peres de Trava, aliados à figura
da Princesa, filha, embora bastarda, do Imperador falecido em Toledo
em 1109, se associados, por esta via, o Condado com a Galiza, não
produziriam, diplomaticamente, um efeito mais rápido em Urraca,
casada com Afonso I, rei de Aragão, em nada populares entre Leoneses
e Castelhanos?! Como teria sido nunca o saberemos, mas esta volta de
180º, se comparada com a que historicamente conhecemos, não será de
nos dispensarmos de suposições… Aliás, numa altura em que celebrámos
900 anos do nascimento, na cidade de Viseu, de D. Afonso Henriques,
por Agosto de 1109 – onde terá sido, por certo, também baptizado na
Catedral de Santa Maria –, facto provado documentalmente, por
Almeida Fernandes em 1991, os historiadores foram levados a
encaminhar os suas investigações desde Afonso I das Astúrias a
Sancho I de Portugal, o que deu um forte impulso nos estudos e
conclusões da nossa “alta” Idade Média, das variadas personagens nos
diversos palcos conjunturais dos séculos em causa. Porque a História
se não faz de lendas, nem de arrependimentos, do diz e desdiz, do
que se afirmou em dada altura (se bem que sob o estigma da
“probabilidade”) e do que, meio ano depois, ajoelhado ante Nosso
Senhor, em Guimarães ou Gumirães (vá-se lá saber) se pede perdão e
se volta para Coimbra, com base documente zero!
Acreditado pelos seus
seguidores vassalos e pelo povo em geral, a sua fama ultrapassou
fronteiras e, por mais de uma vez, chegou à Flandres, daqui passou
ao Norte da Germânia, seguiu para a Península Itálica e foi
abençoada, porque bem aceite, em Roma; atravessou as Ilhas
Britânicas e desceu ao Reino dos Francos. Conhecido no Norte da
Europa, nos Países gelados, contou com os Vikings contra e a favor.
E remata:
“Dá a terra
Lusitana Cipiões,
Césares, Alexandres, e dá
Augustos;
Mas não lhe dá, contudo aqueles
dões
Cuja falta os faz duros e
robustos.
Octávio, entre as maiores
opressões,
Compunha versos doutos e venustos…”
(9)
Mas Afonso
é um homem de um pequeno território, embora um importante cidadão de
uma Europa unida pela Santa Sé e pelo Sacro Império Romano-Germânico,
do que, aliás, tem plena consciência, como a tem daqueles “Césares”
e “Augustos” de quem descende.
A
narrativa liga-se, preferentemente, na literatura épica camoniana à
ficção e não podemos esquecer que diversos subgéneros a integram: o
diário, tal como nos é apresentado, do princípio ao fim do Poema: a
relação do que, dia-a-dia, no quotidiano, vai acontecendo: as
memórias, o relato da parte mais acidentada da vida de Camões, de
uma época quase por inteiro, de um estado empenhado em função de um
acontecimento, mas sempre e sempre, como sabemos, do ponto de vista
cronológico, de factos passados em todos Cantos, excepto na parte
final em que alude ao presente, ao oferecer o Livro ao Rei de
Portugal e, inclusive, ao futuro (10):
“Se me isto o Céu concede e o vosso
peito
Dina empresa tomar de ser cantada,
Como a pressaga mente vaticina,
Olhando a vossa inclinação
divina" (11).
O
presságio seria o conhecimento que tinha dos conselhos de D.
Catarina de Áustria e do Cardeal D. Henrique que foram seus
regentes. E do próprio Filipe II da Espanha que o avisara dos
perigos que o jovem rei, seu sobrinho corria. Era um remate de muito
maior gravidade do que o desastre de Badajoz assumiu em 1169.
E
prossegue:
“… rompendo nos campos de Amplusa
Os
muros de Marrocos e Trudante" (12)
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3. A
Cruzada |
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“Pai, foste cavaleiro.
Hoje a vigília é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força!
Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infiéis vençam,
A bênção como espada,
A espada como bênção!”
(Fernando Pessoa) |
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Ao lermos as imensas
estrofes de construção única neste autor nacional adentro do rol dos
maiores representantes da poesia portuguesa, descobrimos, no enredo do
capítulo em causa, três planos de acção:
- um
mitológico, a envolver os deuses do Olimpo e Deus;
- um
segundo, o humano, a retratar Afonso e algumas outras personagens que
entram no episódio com força real;
- e
um terceiro que vai traduzir-se no fantástico, na lenda e no mítico os
quais fazem a temperança da acção, e a ligação do primeiro com o segundo
estádios.
O
tema principal do episódio de D. Afonso Henriques tem por base a cruzada
e o ódio aos Berberes que atacam e perdem, para voltar de novo a atacar
e a estabelecer consecutivos obstáculos à nossa reconquista da
“Espanha”.
Em
todo o Poema, aliás, se sublinha esta característica da nossa evolução
histórica. As parecenças com os Romanos e os Lusitanos de quem
descendemos, dois povos que se digladiaram, são frequentes. A união em
Portucale era urgente. Tanto quanto a confederação de tribos entre os
Lusitanos, chefiados por Viriato, Sertório e outros antes destes. A
Cruzada implicava a aliança na altura. Se não apenas na luta contra o
Mouro, no nosso pedaço português, e na demais Hispânia, também nos
contactos com os povos do Índico até à chegada à Índia.
O
nosso Povo, na maneira de ver do Poeta, ergue-se, nos inícios da
“Nacionalidade”, como soldados que levantam a Cruz de Cristo para
justificarem o que não parece justificável. Mas, ante uma conquista do
território da Hispânia pelos Berberes, Árabes, Persas, Sírios… toma
lugar a Cruzada que os ataca no Finisterra e vai até à fonte, no
Oriente, como sabemos, e a que chama Camões: à “Hierosolyma sagrada"
(13), a Jerusalém, ao Santo Sepulcro – ao Santo Marte, ou seja a guerra
santa, empreendida com o propósito de libertar as terras cristãs (as
terras santas ou a Terra Santa, da Palestina, especialmente) do domínio
islamizado (14). Uma guerra de Cruzada em oposição feroz e frontal à
Jihad árabe e berbere.
Contra eles se dirige, de modo especial, a acção cristianizadora dos
Portugueses, dado o estorvo que eles representam na propagação da Fé em
Cristo. Contra “o mauro povo cego" (15), “o torpe Ismaelita" (16),
“Mouro frio" (17), “falso Mouro" (18), “malvado Mouro" (19), “torpe
Mauritano" (20), “povo imundo" (21), “maligna gente sarracena" (22), o “Maometa”,
“os perros" (23)… contra eles, naturalmente, no antigo espaço cristão
romano e suevo-godo, agora a Hispânia e, em particular, Portucale, as
hostes dirigem-se de maneira muito especial, na sua acção
cristianizadora, alongando-se até ao Mediterrâneo, para promoção
industrial e comercial, como sucedeu dos séculos XII ao XVIII.
Entretanto, Afonso Henriques, parecendo-se com o pai, na força impetuosa
da alma de homem de fé, era dotado de força, manha (24), homem de muita
religiosidade, com desprezo pelas honrarias populares, cuidadoso na
repartição das honras e dos bens com aqueles a quem devia recompensar
(25), guerreiro valente e irado, para cumprir todos os seus objectivos
políticos (26).
O
Poeta exagera, por certo, as considerações que tece acerca do modo como
D. Afonso tratou sua mãe em S. Mamede, em 1128, ao referir que o
Príncipe, “vencido de ira o entendimento, / a mãi em ferros ásperos
atava" (27). É hoje muito contestada a expressão de hostilidade do mesmo
contra D. Teresa de Leão, travando-se um mero encontro, embora, como
muitos querem, assaz significativo no campo político e de forte
significado patriota. Todavia, quem está exposto no campo de batalha são
os soldados que se confrontam pela unidade e libertação e não
exactamente, a priori, qualquer necessidade de comportamento de ira e
ferocidade de filho em relação à mãe e vice-versa.
O
grau humano e moral desta atitude muito empolada, justifica-se que não
tenha sido exactamente uma luta entre mãe e filho. O território, em
1112, era governado com direito da certa independência e a um nível de
soberania características de um feudo franco medieval. D. Afonso
Henriques, à data da batalha, ia a caminho dos dezanove anos de idade,
tempo suficiente para suceder ao pai, não havendo razão nenhuma para sua
mãe reger o condado e muito menos se ostentar, porque filha do rei de
Leão, já falecido – como referimos –, como governante, e fazer esperar o
filho, pela sua morte ou incapacidade ou ausência prolongada, para que
ele lhe sucedesse. Mesmo que esta situação tão duradoura tivesse ficado
a dever-se a uma última vontade aduzida pelo Cronista.
Com
efeito, a sucessão, havendo filhos maiores de catorze anos de idade à
altura do falecimento do governante, dava ao primogénito varão, por
direito próprio, o direito a herdar a posição do pai ou de outro
familiar directo a quem sobrevivesse. Sendo menor, quando muito, e se
assim o desejassem os maximi nati, ficasse a Senhora, mas como regente.
A
Poesia tem destas coisas: abranda os sentimentos quando é necessário
apor outros motivos sobrevalorativos que justifiquem dada atitude, ou,
ao invés, exagera e inventa forças ilimitadas de alma que levam, no caso
vertente, a quem cabe cometer o crime se necessário, a fazê-lo, como
forma justificadora. Neste caso vertente, até poderíamos esquecer a
Poesia de per si. Mas a Cronística medieval… como bem se sabe, pelos
textos de Fernão Lopes, Rui de Pina, Duarte Galvão, Duarte Nunes do Leão
e Gomes Eanes de Zurara, apontam quadros de uma desumanidade sem maneira
de nos levarem a crer que tais acções tivessem sido as mais apropriadas.
É
curioso que, muito além das guerras, fossados e presúrias, dos
acometimentos surpresa contra as populações estranhas… Afonso Henriques
tratou muitos dos seus problemas, a fim de alcançar objectivos, através
da figura jurídica do acordo e foi assim, pela diplomacia, que veio a
obter de Alexandre III, a bula Manifestis probatum est argumentis, em
1179, por que veio a ser reconhecido como Rei de um Reino, situação
oposta à de sua mãe que Rainha era de Reino nenhum. |
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4. O Milagre |
“A defesa da tradição de Ourique, a um tempo sinónimo de patriotismo
e de fé, traduz uma concepção particular da pátria e da história,
em suma, de um passado que, potenciando o futuro, nele se projecta,
o explica e o promete”. (Ana Isabel Buescu) |
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Ao milagre de Cárquere a que Camões se não refere, sucede o de Ourique.
Vejamos o primeiro, relatado à Academia Portuguesa da História por
Joaquim Correia, no passado dia 9 de Abril (28). A lenda reza que, sendo
D. Egas Moniz, senhor de Ribadouro e com Paço em Resende, pessoa da
máxima confiança do Conde D. Henrique, foi nomeado-o aio do seu filho
Afonso Henriques, ficando com a incumbência de criá-lo e educá-lo.
Parece que a criança sofria de uma malformação das pernas, o que
constituía uma grande preocupação para D. Egas. E a cura apenas teria
solução desde que se desse a intervenção directa de Deus. É natural que
as orações se dirigissem para Nossa Senhora/Santa Maria, cuja imagem era
muito venerada ali bem perto. Até que um dia, encontrando-se no seu Paço
de Resende, a Santa lhe apareceu em sonhos, dizendo-lhe que caminhasse
até Cárquere, colocasse a criança em cima do Seu altar e lhe acendesse
duas velas. E assim fez. Mas, cansado e dormente, só o príncipe se deu
conta de que uma das velas caíra e pegara fogo às toalhas e ao altar. A
fim de evitar o alastramento do incêndio, é impelido a agir,
deslocando-se para apagar as chamas. Foi, nesse instante, que o Infante
se curou (29).
No
que se refere a Ourique, Camões é peremptório e situa a batalha contra
os cinco reis mouros, em Ourique do Alentejo. Era, na verdade, uma das
vilas que estavam na mira das conquistas de D. Afonso Henriques. Mas
também sabemos que Ourique alentejano seria inoportuna, àquela data: um
autêntico suicídio. Nada havia sido tomado fora do País, até 1139.
Santarém, Sintra e Lisboa foram definitivamente conquistadas só em 1147
e com bastante dificuldade. Ourique não teria a mínima hipótese de
sucesso, um ponto totalmente inatingível, pois a vila contava com o
auxílio dos Mouros de todos os lados e não havia interesse algum,
“saltar” da linha Leste do rio Tejo para uma afastada praça além Tejo.
O
plano que as conquistas afonsinas revelam, umas com sucesso outras mesmo
sem ele, consiste numa progressão lenta no território do futuro
Portugal, apontando armas para praças sucessivamente mais distantes, mas
cuja retaguarda pudesse sustê-las, fazendo frente ao inimigo que reagia
sempre.
Ourique deverá ter sido Vila Chã de Ourique, por perto de Santarém, o
que faz sentido no momento que lhe corresponde, tendo em linha de conta
que funcionou, por certo, como um estratégico ganho que facilitaria,
oito anos depois, os sucessos de Santarém e dos demais lugares que
citámos.
Camões fala de Ourique, onde, para um só cristão, “cem mouros haveria"
(30). Eis que “quando na cruz o filho de Maria / amostrando-se a Afonso
o animava" (31), o “rei” começou a gritar-Lhe: “Aos infiéis, Senhor, aos
infiéis, / e não a mi que creio o que podeis!" (32).
O
espectáculo é vivamente relatado, com braços e pernas decepados e ao
abandono no campo de batalha, sem dono e sem sentido, as entranhas de
outros palpitando, correndo rios de sangue espargido, “como também do
campo a cor se perde / tornando carmesim de branco e verde" (33).
Da
batalha resultou, com a magna e surpreendente vitória, no branco Escudo
do Infante a colocação de cinco escudos azuis, em sinal dos cinco reis
vencidos. E neles manda pintar dinheiros, pelos quais Judas vendeu
Cristo e, em cada um dos cinco, cinco pintas, “porque assi fica o numero
cumprido / contando duas vezes o do meio / dos cinco azues, que em cruz
pintando veio" (34). Note-se, contudo, que o suposto «milagre de
Ourique» foi forjado séculos depois dos acontecimentos pelos monges de
Alcobaça…
Com
estas vitórias, seguidas de numerosas outras, Vasco da Gama, ao
dirigir-se ao rei de Melinde, classifica a História de Portugal de
“sanguinosa guerra" (35). O género épico de Os Lusíadas terá, por certo,
entusiasmado Luís de Camões, pois fez uma boa selecção na vida das
gentes do território, preferentemente a outras infra-estruturas, as
heroicidades cometidas em batalhas e fossados pelas “armas e barões
assinalados”, ao pedir a Calíope que o ensinasse “o que contou ao rei o
ilustre Gama”, que lhe inspirasse “imortal canto, e voz divina, / neste
peito mortal que tanto te ama”, pois “Esta é a ditosa pátria minha amada
/ à qual o céu me dá, que eu sem perigo / torne com esta empresa já
acabada”. E começa pelos Lusitanos, de Luso ou Lysa “que de Baco /
filhos foram" (36).
Os
relatos sanguinários das vitórias dos Portugueses contra o inimigo
cairiam bem nos ouvidos e no entendimento do rei de Melinde e dos de sua
corte que estariam atentos ao que o grande navegador português lhes ia
contando.
Aquelas paragens mouriscas a
Norte de Moçambique não eram nem nunca foram pacíficas. Organizaram-se
através da conjugação de tribos, em que uns não concordantes com a perda
da sua individualidade, obrigaram o rei e o seu exército a mover-lhes
guerra para a unificação. À época, eram zonas portuárias de comércio
activo de que vivia o seu povo, e o sangue necessário para a formação de
Portugal assemelhar-se-ia ao que eles haviam selvaticamente espargido,
para a constituição e defesa do seu espaço, gentes e actividades
económicas. Aqui, o episódio de D. Maria de Portugal, filha de Afonso IV,
daria azo a ouvidos atentos, pela grande batalha que se cumpriu no
Salado; a morte de Inês de Castro e os seus amores com o Príncipe D.
Pedro, um monumento de poesia lírica como o anterior, também fora, por
certo, bem aceite, pela hipotética conjura de Castelhanos e Aragoneses
contra o rei de Portugal que os levou de vencidos como, por certo,
passagens houve idênticas no estabelecimento dos reinos no Índico. Não
valerá de muito questionarmo-nos por que povos guerreiros estariam
interessados nas batalhas e vitórias relatadas e, simultaneamente, nas
passagens plenas de amor e de reprovação, muito belas como sabemos,
porque motivação bastante houve para lhes dar o fim que elas mereciam e
que os de Melinde tão bem compreenderiam – as lutas internas entre os
povos do Oriente eram diárias e devastadoras. O que escapava seria alvo
das pilhagens continuadas por piratas em terra e no mar. A formação de
tribos, a partir da união de clãs e dos primeiros que dariam origem a
cidades-estados e a territórios mais ou menos alargados fora sempre um
processo lento, mas surpreendentemente sanguinário.
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5. O
Humanismo: Luís de Camões e as empresas militares |
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“A
admiração que as obras greco-romanas despertam nos homens de
Quinhentos, a devassa entusiástica dos textos antigos, o livre
comprazimento nos valores do mundo pagão são produto de uma
atitude mental de todas as coisas”.
(Duarte Pacheco Pereira) |
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É comummente sabido que não há humanista que se
preze que não condene a guerra. Talvez, o episódio de “O Velho do
Restelo” seja aquele que mais serve a esta nossa consideração. Mas há
mais, pelos dez cantos fora. Todos, sem excepção, condenavam-na porque
destruidora de quanto o homem deve considerar de mais precioso: a vida.
Havia, no entanto, um meio-termo: a união de povos
contra uma invasão abusiva de malfeitores que devastariam o Reino e o
seu Povo em geral.
Os classicistas, renascentistas das culturas grega e latina, aqueles que
colocavam o Homem, a sua Vida e o seu Valor no centro do Universo
aceitavam a luta defensiva. É o que retrata, exactamente, o episódio de
D. Maria de Portugal (37), que se dirige ao rei seu pai, Afonso IV,
pedindo ajuda para seu marido Afonso IX de Castela, nestes termos:
“Quantos povos a terra produziu De África toda, gente fera e estranha, O grão Rei de Marrocos conduziu Pêra vir possuir a nobre Espanha. […] Aquele que me deste por marido, Por defender sua terra amedrontada, […] E, se não for contigo socorrido, Ver-me-ás dele e do Reino ser privada; Viúva e triste e posta em vida escura,
Sem marido, sem Reino e sem ventura. […] Se esse gesto, que mostras claro e ledo, De pai o verdadeiro amor assela, Açude e corre, pai, que, se não corres, Pode ser que não achas quem socorres”.
As guerras no Norte de África e no Oriente, que se
seguiram à expulsão compulsiva dos infiéis de Portugal, esta
trilogia é, em diversas estrofes dos cantos, louvada, esquecendo-se
o Poeta de que tanto Cristãos como Muçulmanos apelam ao mesmo Deus,
porque ele é uno, indivisível e omnipotente. Quando Afonso Henriques
lembra a Cristo crucificado que tem de combater os infiéis e que lhe
dê a ele mesmo a vitória, está a escamotear este princípio. Para
Camões, Afonso grita que marchem contra os infiéis. Que infiéis? Não
os Cristãos, nunca o admitiria. Contra os Sarracenos, por certo. Mas
se pede que lhe dê a vitória, como pode, no fundo, acreditar que o
“seu” Deus poderia dar ganhos aos Muçulmanos? Que lógica haveria,
sendo dois deuses distintos, rogar os ganhos a Cristo em prol dos
Portugueses e temendo que os desse ao inimigo?
Perguntamos: que haverá por detrás do homem muçulmano
que não exista no homem cristão que o leve a solicitar a vitória? Em
todo o Poema, mas, sobretudo, neste episódio, neste retrato
complexo…, ele sabe que, a fim de ganhar o espaço antigo que
pertencia aos Cristãos, os invasores têm de ser expulsos. No
entanto, Camões não refere a acção diplomática e de política oposta
àquele e que consistiu em dar carta de amizade e segurança aos
Mouros forros de Lisboa, Almada, Palmela e Alcácer, através de um
documento datado de 1170, pelo qual o “inimigo” podia, a troco do
pagamento de impostos em dinheiro e serviços, eleger o seu alcaide
de entre eles, e passar a reger-se por leis próprias, privilégio que
só cessou nas Ordenações de D. Manuel I (1514-1521).
Ora esta situação, aparentemente inédita, parecia ir
contra as atitudes genericamente tomadas pelo rei contra o infiel.
Sobre o assunto nada é falado ao régulo de Melinde nem ao Catual,
porque, naturalmente, os desorientariam acerca do que pensar dos
Cristãos, pois não aceitavam, com facilidade e meias palavras, esta
política de charneira que consistiu ou que pôde ser tomada como um
primeiro passo para a tolerância dos Mouros e Moçárabes no
território tomado aos guerrilheiros mais ferozes que nunca
aceitariam uma situação de sujeição ao imperium do nosso rei
de governante.
A História do Portugal marinheiro, já será mais
facilmente entendida, com interpretes diversos, porque essa situação
e o que lhe subjaz, embora não consiga imaginar em toda a sua
extensão, se bem que viva no tempo das Cruzadas e saiba, por certo,
o que isso significa na prática. Mas para ele, não conta o Portugal
para além das linhas de costa. Infiel para Afonso Henriques não
poderá ser nunca o mesmo infiel que nos é retratado pelo Poeta
noutros episódios, quando se refere aos séculos XV e XVI. Camões
realça essa dualidade, de um modo bem crítico, mas que lhe não cabe
aqui desvendar melhor do que o modo como o faz (38)..
E diz também;
“Desta arte o Mouro attonito e torvado, […] O Portuguez o encontra denodado, Pellos peitos as lanças lhe atravessa: Huns cahem meios mortos, e outros vão A ajuda convocando do Alcorão”.
Dois Povos em marcha um contra o outro. Os invasores lutando pela
ocupação, solicitam ajuda, conforme manda o Alcorão. Os
invadidos, porque pretendem retomar o que os Mouros lhes haviam
conquistado, solicitam ajuda a Cristo, como o manda o Novo Testamento.
Dois livros frente a frente; duas religiões que se confrontam. Um só
Deus na crença de ambos os grupos. Também neste princípio se revela o
Humanismo que defende o Homem em geral com todos os seus direitos. O
Homem está no centro da Sociedade, do Universo, em que a Igreja tem de
começar a ser interrogada e discutida. As sanções serão megeras para uns
e para outros nas mesmas circunstâncias, de novo, ante o peso desmedido
dos Religiosos, os quais não têm de todo a ver com o conceito de Homem e
da posição que se crê que ele tem, nos séculos do Renascimento. A Pátria
d’ Os Lusíadas é ainda a terra, onde toda a população nasce,
reside, ou aparece de qualquer lado para trabalhar e viver. Onde todos
esperam procriar e vir a morrer.
Camões foi um homem do seu tempo. No Oriente, Vasco da Gama,
curvado, diz ao rei de Melinde, com os olhos marejados de lágrimas e o
coração a ressentir-se de saudade:
“Esta é a ditosa Pátria minha amada,
Á qual, se o céu me dá quem eu sem
perigo
Torne […]
Acabe-se esta luz ali comigo" (39).
Todavia, o nosso Poeta põe um pé no século XII e deixa-nos
entender o que é a Pátria para o homem do tempo de Afonso Henriques:
“Eis aqui se descobre a nobre Espanha,
Como cabeça ali de Europa toda,
Em cujo senhorio e glória estranha,
Muitas voltas tem dado a fatal roda;
Mas nunca poderá, com força ou manha,
A Fortuna inquieta pôr-lhe noda,
Que lha não tire o esforço e ousadia
Dos belicosos peitos que em si cria”
(40).
Uma é a sua Pátria chorada por Vasco da Gama, por se encontrar longe,
com um objectivo que, para já, nada tem a ver com a guerra, nem com a
luta contra os infiéis, para manter-se e ser conhecida no mundo. É a
verdadeira Pátria de Camões que regressa da Índia a Portugal, pelos
meados do século XVI, embora vá dizendo ao rei de Melinde que os
Portugueses são vencedores e não vencidos, estripadores dos ventres do
inimigo, os Mouros, como o rei, o catual e seu povo o são. Assim
formaram Portugal. A outra, a dos séculos XI e XII, é a Pátria que cria
belicosos peitos, para que lhe não tirem o esforço e ousadia, os quais
terá para sobreviver, nas voltas da fatal roda do destino. A Pátria
conquistada palmo a palmo, à custa de sacrifícios inenarráveis de dor e
quase sem esperança; a Pátria que é tomada com a população na frente de
batalha que, não crendo em si mesma, apenas acredita num único homem: o
seu Príncipe. Seria muito pouco e desencorajaria qualquer mortal, razão
por que as divindades do Olimpo, e Cristo e a força humana do Povo…,
todos por junto, pelo contrário, ajudam o Príncipe e não crêem só nele.
O ímpeto da força não é o mesmo para o homem e para o Poeta ou para
Camões-Homem e para Camões-Poeta. |
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6. A fidelidade – o magno
pilar dos homens da Idade Média. |
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“Esta ordem de glorificação em vida, dada, além disso, a um dos
seus homens de maior confiança, produziu os seus
resultados: a História torna-se um instrumento de sublimação
política do rei, considerado como um
conjunto divino de todas as qualidades”.
(Manuel Rodrigues Lapa)
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A vassalidade ou o juramento de fidelidade que implicava aquela
residia na base de sustentação dos mais pobres aos mais ricos, contando
estes, a troco de bases precárias de privilégios e protecção a níveis
humanos, bastante rudimentares, da participação na guerra, largando a
enxada para fazerem número no exército do senhor, do desempenho de
corveias gratuitas, a principal o amanho da terra, com os óbvios
plantios e colheitas com o consequente pagamento de impostos, na grande
maioria em géneros: eram, assim, os ciclos do pão e do vinho, os
principais géneros com os quais se taxavam as populações.
Também da pequena à alta nobreza e o clero em geral
deviam obediência ao rei, desde o momento da sua aclamação na cúria ou
em qualquer outro tipo de assembleia que “elegesse” ou reconhecesse o
novo soberano até à morte ou substituição dele por outro.
Os mais pequenos que faziam parte das sociedades
locais, tinham por obrigação reconhecer os direitos do soberano como
exclusivos dele mesmo, de pagar direitos senhoriais ao senhor de quem
dependiam e em cujas terras viviam e trabalhavam, como também assim
teriam de agir se se achassem ligados directamente ao monarca,
trabalhando nas suas terras. Pagavam ainda direitos dominiais, solvidos
em pequenas parcelas de tudo quanto tinham de produzir, em géneros, em
épocas precisas, como pelo Natal, em Março e Maio, pelo S. João, pelo S.
Miguel de Setembro ou pelo S. Martinho…
A vassalidade passou por fases extremas, entre os povos
mais primitivos da Hispânia, com as chamadas, gentilitates,
consecratio capitis, deuotio iberica – dando origem ao
cliente designado de deuotus, soldurius ou ambactus –
e chegou ao século XII, com as suas características de medievalidade,
aqui sim, com os deveres de concilium, auxilium e obsequium,
principalmente, ou seja de aconselhar, prestar o serviço militar e
sujeitos a um dever de obediência extrema.
É um tanto
extemporânea a atitude de Egas Moniz, o aio de D. Afonso Henriques,
contada após o século XV, nas Crónicas da Idade Média e retomada
por Camões, nos finais do século XVI, n’ Os Lusíadas.
Diz a lenda que o aio se dirigiu ao paço de Afonso VII
e, por lealdade aos dois monarcas, o português e o castelhano, ofereceu
a sua vida e a dos seus pelo facto de incumprimento da palavra de Afonso
Henriques. Um ano antes da batalha de S. Mamede, dadas as hostilidades
já visíveis entre mãe e filho, Afonso VII veio em socorro daquela e
cercou o castelo. Egas Moniz promete que Afonso Henriques lhe prestará
homenagem. O rei de Leão, primo do futuro rei de Portugal, desfaz o
cerco e regressa a Toledo, mas o Infante portucalense não respeita a
palavra dada, e chega a invadir a Galiza, a fim de mostrar a sua força e
a vontade de expandir o seu território a Norte. É aí que intervém Egas
Moniz, segundo a lenda, contada no Canto III e no Canto VIII. D. Egas,
“ve-lo cá vai co’os filhos a entregar-se, / a corda ao collo, nu de seda
e panno/ porque não quis o moço sujeitar-se, / como elle promettera ao
castelhano / […] para que o senhor salve, a si condena" (41).
Lendas e tradições vão contra a ideia do que deve ser a
História. Mas a Poesia continua a dar-lhes crédito e, por vezes, são os
mitos que mais embelezam o poema épico. N’ Os Lusíadas, de um
modo geral, os episódios líricos suavisam a História exclusivamente
contada com a heroicidade que emana das suas personagens. Assim, a
guerra é intercalada pela lenda, por passagens contadas de modo belo e
triste, parecendo verdades, cheias de sentimento, coragem, misticismo,
cor e movimento. Ainda a surpresa. Afonso de Portugal é surpreendido por
Cristo num retrato de pleno sacrifício… Afonso VII presencia o mais
significativo acto de humildade e obediência, ao deparar com uma família
que recebe para a ouvir, da boca do seu maior, um pedido de perdão e a
oferta das suas vidas num acto de homenagem único em toda a História da
Humanidade. As histórias puramente ficcionadas agarram o leitor ao Poema
como grilhões do preso ao pelourinho.
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7. A
Mitologia no Poema: seu papel e significado |
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“Na
verdade, nenhum poeta alcançou recons
tituir, em beleza e euforia, o paganismo do
mundo mitológico como Camões”.
(Maria de Lurdes Belchior) |
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Uma das principais
figuras de estilo existentes no Poema é a Comparação. E é nesta que
reside o verdadeiro significado dos factos relatados e, numa
retrospectiva, as cores tocantes do ódio e as suaves do amor.
Um
dos elementos essenciais da epopeia clássica – como acima já o referimos
–, reside no maravilhoso, isto é, na intervenção de seres sobrenaturais
na acção, favorecendo-a ou dificultando-a.
Por
exemplo, o nosso episódio em estudo relativo a D. Afonso Henriques, quer
no Canto III ou no VIII do Poema, só foi possível, o primeiro, porque
Vasco da Gama está a contar a nossa História ao Rei de Melinde e a
pedido deste. O Segundo, porque Paulo da Gama é interrogado acerca do
significado das bandeiras da nau. Ambas e quantas outras… foram
resultado da decisão positiva tomada pelos deuses no Olimpo em que Vénus
e Marte apoiaram as navegações dos Portugueses, embora Baco se lhes
opusesse. Uma belíssima intervenção de Vénus junto de Júpiter seu pai,
fá-lo decidir favoravelmente. As navegações iniciam-se e as histórias
começam a ter a sua razão de ser (42). São dois quadros paralelos: um, o
mítico, o de Vénus rogando a intervenção de Júpiter, seu pai; outro, o
histórico: o de D. Maria a solicitar a D. Afonso IV, seu pai, que ajude
o marido castelhano (43).
“Este povo, que é meu, por quem
derramo
As lágrimas que em vão caídas vejo,
Que assaz de mal lhe quero, pois que
o amo,
Sendo tu tanto contra meu desejo
[…]
E destas brandas mostras comovido,
[…]
As lágrimas lhe alimpa, e, acendido,
Na face a beija, e abraça o colo puro
[…]
Fermosa filha minha, não temais
Perigo algum nos vossos Lusitanos
[…]
Que eu vos prometo, filha, que vejais
Esquecerem-se Gregos e Romanos,
Pelos ilustres feitos que esta gente
Há-de fazer nas partes do Oriente”.
São palavras de Júpiter a sua filha Vénus, que intercedia
a favor dos Portugueses. O que, na verdade, pretendemos atingir não
é o estabelecimento de uma mera comparação destes dois encontros: D.
Maria com seu pai, o rei D. Afonso IV, pedindo-lhe ajuda e Vénus com
seu pai, o deus Júpiter, solicitando-lhe auxílio. Mais que isto,
importa ter em conta, em primeira mão, o que os aproxima de modo
mais visível, para depois se passar à verificação das suas
diferenças, e às consequências que elas arrastam no que se reporta à
representação poética num e noutro consumada. E não há comparação
possível com a descrição que Camões faz do encontro de mãe e filho
em São Mamede, em 1128. Assim, este último relato, não tenhamos
dúvida alguma, que projecta vectorialmente ambas as primeiras
passagens líricas que referimos para uma similitude que poderia
passar despercebida. E outros episódios, emparelhados à custa da
Comparação, poderiam ser aqui referidos, pois, há sempre um terceiro
que, pelo seu contrário, os aproxima. Esta técnica camoniana é de
uma originalidade extrema, tipo de recorrência a que os melhores
poetas e prosadores modernos, nas suas narrações, por se aperceberem
a tempo do seu valor significante e estratégico, continuam a
utilizar.
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Camões poderia escolher entre o fantástico pagão, cristão ou
céltico. O nosso autor optou, essencialmente, pelo pagão, pois mesmo
quando as personagens invocam Deus, Ele nunca aparece. Poderão obter-se
resultados, mas quem, em Ourique, se mostrou a D. Afonso Henriques foi
Cristo crucificado, Cristo na última fase possível de se apresentar aos
homens, crucificado e ressuscitado. Depois é Deus e Deus nunca se vê.
O
maravilhoso pagão foi usado no Poema, por influência de Virgílio e da
sua Eneida. Mas são vários os semi-deuses invocados, ou heróis da
Antiguidade Clássica e ainda as Tágides, ou ninfas do Tejo, as do
Mondego, Orfeu, Calíope e tantos e tantas outros e outras. É patente a
influência do Poeta Romano, por exemplo, na Ilha dos Amores (44).
Como já o dissemos e facilmente
pode ser constatado no Poema camoniano, a narrativa cai num arrolamento
cronológico. Para quebrar o ritmo que, não fora assim, seria uma quase
perfeita constante, pôs o leitor em suspense na sua curiosidade mórbida
e fez introduzir na obra um grande número de episódios dramáticos que
ficaram a dever-se à paixão dos deuses e aos seus próprios juízos de
valor: cada um deles faz uso dos ardis que pode para conseguir os seus
intentos. Se a maior parte dos feitos marítimos, de Moçambique à Índia,
desta a Lisboa, acostando na Ínsula dos Prazeres como uma justa paga
daquilo por que os Portugueses passaram, já na História do Fundador, da
de seu pai e mãe, a intervenção nada fica a dever a Vénus ou Júpiter, a
não ser muito indirectamente. Mesmo assim, antes de iniciar o conto,
invoca Calíope e, por vezes, as ninfas do Tejo.
Na sua visão um pouco menos profunda, os deuses caracterizam-se por
uma atitude de auxílio, em que Vénus, apelando ao seu ex-apaixonado
Marte, favorece a empresa. Estão assim Eolo e Neptuno, claramente,
e, deste modo, decidiu Júpiter pai de todos, no seu trono marchetado
de ouro e pedrarias, no Olimpo. Mas uma outra, caracterizadamente,
de impedimentos sucessivos, ficou a dever-se a Baco que quer colocar
aos Portugueses toda a sorte de obstáculos a fim de o seu nome não
ser esquecido no Oriente. O mesmo é dizer que nenhum outro povo se
aproxime dos seus mares e territórios, contando os aspectos
geográficos que foram sendo, a pouco e pouco, alterados nos confins
da Europa, na luta contra outros invasores e façam declarações sobre
os seus incontáveis heróis que suplantam as acções mais conhecidas
dele mesmo, pelas paragens do Nascente. Representam-no os Mouros e
alguns indígenas desconfiados.
Consequentemente, estão em guerra aberta Vénus e os seus seguidores
e aliados; e Baco, contra ela, de novo apoiado pelos Muçulmanos, a
nossa grande praga aí e que já o fora no Continente, no fim do
Mundo: no fim da Terra, na Hispânia. Quem venceu esta disputa,
todavia, fomos nós. Pois não é assim que começa o Canto III, com D.
Afonso Henriques vitorioso sobre os infiéis?
Ficamo-nos, então, pelo facto de os deuses do maravilhoso pagão não
passarem de símbolos, pois, no Renascimento, existe a convicção
sublinhada de que não há limites para os homens e para quanto eles
podem fazer e atingir. É necessária perseverança e querer. Morrer
onde viverem, mas alcançarem a fama de lendários e semidivinos pelos
seus actos heróicos, começando pela tomada da sua terra de origem,
palmo a palmo. A vitória foi a de Deus, no maravilhoso Cristão,
através de um Cristo crucificado que, mesmo no auge da sua dor, não
deixa de proteger quem o respeita e quem O chama para se sentir
protegido. Vejamos: a Igreja Católica, a Religião Católica… são as
grandes vencedoras. Tudo o mais é belo, sem dúvida, mas nada mais é
que hesitação, fantasia, e mera lenda, num paralelo perfeito com o
milagre católico que aduzimos.
Se começa com D. Afonso Henriques, Camões termina com D. Sebastião,
ou melhor com o rei de Portugal a quem oferece Os Lusíadas que, por
mero acaso, era D. Sebastião:
“Vereis amor da pátria, não
movido
De prémio vil, mas alto e
quase eterno;
Que não é prémio vil ser
conhecido
Por um pregão do ninho meu paterno”.
Valera, diplomata e escritor espanhol, que, por esse tempo, esteve
em Portugal, escreveu que Os Lusíadas “son el mayor obstáculo à la
fusion de todas las partes de esta Península. Camões
se levanta entre Portugal y España qual firme muro, más diffícil de
derrubar que todas las plazas y los castillos todos”.
O
destino tem destas coisas: contam-se actos heróicos dos Portugueses
e o Reino vem a decair com a morte do soberano. Mas o que ficou teve
como grande missão deixar todos recordarem que se foi possível lutar
contra os Mouros… será fácil, um dia, encontrar-se a oportunidade de
se lutar contra os Castelhanos, porque foi bem testado que os
Portugueses actuariam sempre, com glória e persistência, se a tanto
os ajudassem o engenho e arte.
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8. Da
derrota à vitória final |
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“Na terra tanta guerra, tanto
engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?”
(Luís de Camões) |
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No Canto VIII, aparecem na acção militar de D. Afonso Henriques quatro
personagens pintadas na nau: D. Fuas Roupinho, “que na terra, / E no mar
resplandece juntamente” e com forte intervenção aquém-Gibraltar; o Prior
D. Teotónio, visiense acólito do Príncipe, “um Sacerdote vê brandindo a
espada / contra Arronches que toma, por vingança”: acostumado a defender
com as armas os bens da Igreja, entra no combate, ao lado do Infante, na
tomada da vila; Mem Moniz, “digno desta bandeira, pois sem falta / a
contrária derriba, e a sua exalta; e, finalmente, Geraldo Geraldes, o
Sem Pavor, que “he o [do] forte peito”, além de D. Sancho I, Martim
Lopes (que capturou Pedro Fernando de Castro, renegado leonês aliado aos
mouros), o bispo D. Soeiro Viegas e D. Paio Peres Correia.
Quem, entre todos, mais complicações causou, então, a D. Afonso
Henriques foi, Geraldo.
Em
1168, quando o Príncipe D. Sancho completou os catorze anos, D. Afonso
Henriques associou-o ao governo. Seria, por certo seu herdeiro, como ele
o fora do Conde D. Henrique, seu pai. Foi, então, encarregado de
despachos administrativos e militares, enquanto o Rei continuava a
enfrentar o inimigo e a acrescentar terras ao País.
No
ano seguinte, Geraldo meteu-se em trabalhos, pensando que seria fácil
tomar Badajoz. E, de facto, as muralhas tinham já sido escaladas pelos
Portugueses e apenas faltava o ataque final à alcáçova.
Metido em acções para as quais não contava com um número suficiente de
salteadores, teve de contar com o apoio de D. Afonso Henriques que o
alcançou em seu socorro. Nenhum esperava, no entanto, a súbita presença
de Fernando II de Leão, genro do caudilho português que surgia,
inesperadamente, com os seus aliados Almóadas, tentando atacar pela
retaguarda, ganhar Badajoz e vencer – como aconteceu, de facto.
Afonso Henriques não viu meios de se escusar ao cumprimento das
exigências do genro e, quando foi libertado, voltou a Portugal, tendo
sofrido, num entanto, um acidente que lhe causara a incapacidade de
voltar a montar e prosseguir com os seus fossados.
Foi
um volta-face, pois teve de trocar com o filho as actividades que um ano
antes havia decidido repartir. Tinha chegado a vez de Sancho se incumbir
das acções militares, para as quais se não sentia preparado e D. Afonso
Henriques, um homem que, à época, tinha sessenta anos de idade e
quarenta de quase exclusiva actividade militar, permanecia, agora, no
seu gabinete, tratando maioritariamente de matérias diplomáticas.
Por
vezes, a vida de um homem modifica-se inesperadamente. Afonso decidiu
prosseguir com a insistente correspondência com a Santa Sé, que, desde o
Tratado de Zamora, a 5 de Outubro de 1143, e sobretudo depois da morte
do Papa Inocêncio II e a sucessão deste por outros, entre eles, por
Lúcio II, se viu apenas confirmado como Dux e a Portugal como terra.
Caiu aí o seu sonho de vir a ser ratificado o seu tratamento de Rei e a
Portugal de Reino, como ficara decidido em Zamora, por seu primo Afonso
VII, mesmo na presença do delegado do Papa, o Cardeal Guido de Vico.
Aguardando, anos a seguir a anos, a altura mais apropriada para
regressar ao assunto, o facto é que a guerra não o deixava actuar
naquele sentido. Agora que a ideia de Império se havia desfeito, com a
morte de Afonso VII e se haviam constituído, em sua substituição, dois
reinos: Leão e Castela; depois de Roma ter verificado que a perda da
unidade imperial na Hispânia não mais seria considerada como base segura
para a liderança de um só Imperador, ou monarca, nas guerras da
Reconquista… tudo se tornava diferente.
D.
Afonso contou ainda com uma forte oposição do Papa, encarregado de
matérias espirituais com Francisco Barba-Ruiva, o imperador do
Sacro-Império, com a missão de responder a problemas levantados no
sector temporal. Esta maneira simples de dividir tarefas tornou-se
complicadíssima, pois não se sabia estabelecer a linha de fronteira
entre o espiritual e o temporal. O Imperador alargava a secância do
círculo muito para o interior da espiritualidade de tal forma que
preparou os seus exércitos para enfrentar o Papa. Alexandre III, com um
outro modo de ver a Europa e o seu poder nos Países que a compunham, não
deixava margens para justificar a impossibilidade de intervir nos
problemas temporais, sendo um entre muitos, o de sagrar o rei, formar
novos reinos, satisfazer pretensões, com justa causa, provindas dos
governantes.
Melhor altura não podia ter D. Afonso Henriques encontrado para
solicitar ao Sumo Pontífice a confirmação para si do título de Rei e
para Portugal a categoria de Reino. Melhor situação não poderia o papa
ter achado para mostrar ao Imperador que o ameaçava constantemente, que
a Roma cabia o encargo de constituir reinos e nomear os reis, tal como o
fazia, desde sempre, em relação às novas dioceses e aos seus respectivos
bispos.
Tinha
D. Afonso Henriques bem perto dos 70 anos, quando a 23 de Maio de 1179,
Alexandre III incumbindo-o de prosseguir ou mandar continuar a luta
contra o infiel, lhe reconheceu o título de Rei e a categoria de Reino a
Portugal, avisando, na bula enviada para o efeito, que a nenhum outro
chefe de “Estado” era admissível o direito de diminuir terras e funções
ao novo Rei de Portugal. Seis anos mais tarde, viria o primeiro rei de
Portugal a falecer, com 76 anos de idade, quase sem ter tempo de ver
resolvido o seu desiderato de sempre. O desastre de Badajoz,
consequentemente, teria tido um desfecho único, o mais significativo e
belo de todo o sempre para Portugal, acalentado, desde cedo pelos pais e
agora, no fim da vida, outorgado a D. Afonso Henriques. Empenhado
especialmente na diplomacia, recebia do líder do Direito Internacional
da época a resposta que almejava desde 1143 e que vira desfeita pela
carta Deuotionem tuam de Lúcio II, datada de 1144.
Desavenças entre os poderes seculares e espirituais tiveram grande
impacte na formação do novo Reino. Mas a D. Afonso Henriques, pela
espada e pela pena, ficámos todos a dever Portugal. |
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(1) Ver Walter Burkert,
Greek Rekigion, Cambridge, MA, USA, 1985;Pseudo Apolodoro,
Bibliotheke, 2.5.1-2.5.12.
(2) Canto III,
estrofe 1.
(3)
Chronica de el-rei D. Affonso Henriques, Lisboa, Escriptorio,
1906 ou em outra ed. mais acessível de Lisboa, Portugália, s.d..
Ver Crónica de Cinco Reis de Portugal, seguida da Crónica
Geral de Espanha que insere as Histórias dos Reis de Portugal,
Porto, Livraria Civilização, 1945, pp. 47-134.
(4) Canto
III, estrofe 25.
(5) Versos
1 a 4, estrofe 32
(6) Canto
III, estrofe 31
(7) Estrofe
41, do Canto III
(8) Canto
VIII, estrofe 11.
(9) Canto V, Estr. 95.
(10) Sobre
a narrativa, vejam-se Françoise Van Rossum-Guyon, Philippe Hamon e
Daniele Sallenave, Categorias da Narrativa, Lisboa, Veja, s.d.;
Roland Barthes et alii, Novas Perspectivas em Comunicação. 1.
Análise Estrutural da Narrativa. Pesquisas Semiológicas, 4.ª ed.,
Lisboa, Editora Vozes Limitada, 1976; Maurice-Jean Lefebve,
Estrutura do Discurso da Poesia e da Narrativa, Coimbra,
Livraria Almedina, 1980; Carlos Reis, Técnicas de Análise Textual,
3.ª edição revista, Coimbra, Livraria Almedina, 1981;
(11) Canto
X, Estr. 155.
(12) Canto
X, Estr. 156.
(13) Canto III, estrofe 27
(14) Canto III, estrofe 88
(15) Canto III, estrofe 80
(16) Canto I, estrofe 8
(17) Canto I, estrofe 16.
(18) Canto I, estrofe 99.
(19) Canto I, estrofe 101.
(20) Canto III, estrofe 81
(21) Canto VII, estrofe 2.
(22) Canto IX, estrofe 6
(23) Canto III, estrofes 48 e 89.
Nada havia de mais injurioso que chamar-lhes cães ou porcos. E
Maometanos, nunca. Seria ligar o Profeta a Deus, como os
Cristãos o fizeram em relação a Cristo.
(24) Canto III, estrofe 23
(25) Canto III, estrofe 24
(26) Canto III, estrofe 30.
(27) Canto III, estrofe 36.
(28) Cf. “O Milgre de Cárquere:
facto histórico, lenda ou embuste?”, ou a cura milagrosa do
nosso primeiro rei.
(29) O relato deste milagre data
dos séculos XVI e XVII.
(30) Canto III, estrofe 43.
(31) Canto III, estrofe 45.
(32) Canto III, estrofe 45.
(33) Canto III, estrofe 52.
(34) Canto III, estrofe 54
(35) Canto III, estrofe 5
(36) Canto III, estrofes 1 a 21.
(37) Canto
III, estr. 101 e ss.
(38) Canto
III, estrofe 45
(39) Canto
III, estrofe 21.
(40) Canto III, estrofe 17.
(41) Canto VIII, estrofe 14
(42) Canto II, Estr. 33-55
(43) Canto III, Estr. 101-117. Vide
supra.
(44) Ver Canto IX. Atenda-se à bacanal da
“Ínsula Divina” como um decalque dos prazeres que a deusa proporcionou
ao Troiano, em Cartago, na corte de Dido. |
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João Silva de Sousa. Prof. da Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Académico
Correspondente da Academia Portuguesa da História) |
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