Cobra
(1), é um poema em que Herberto Helder
nos projecta para o filme de um tempo africano onde a dança, a caça, o
rito da morte e a fraternidade do sexo, numa constante metamorfose, se
imprimem na matéria da memória, tornando-a comum no espaço do poema.
Entre 1974 e 1977, Herberto Helder projecta num poema —
Cobra
— ,
a relação pessoal do poeta com o
espaço e o tempo. Como instância degradada do poema, Herberto Helder
deixa aos prosadores a especulação
de um modo extensivo e extrapolado de desgaste do tempo, do espaço.
Instalado no espaço do lugar incomum, o poeta, empunhando a máquina de
filmar e apontando-a para a matéria verbal da sua memória, assiste à
ressurreição do que foi morrendo, e morre, e vai morrer. Unindo-se à
concepção de Levinas, Helder valoriza o tempo, e o espaço como metáfora do
tempo. O poema a que deu o título de um dos seus fragmentos —
Cobra —, começa com
Memória,
Montagem, poema em que é referida La Prose
du Transsibérien et de la Petite Jehanne de
France, de Blaise Cendrars, como a obra que inaugura, no poema, o
espaço da simultaneidade.
A simultaneidade foi uma entre muitas das tendências estéticas que
surgiram no horizonte do século passado revelando-se uma das mais
prometedoras e perenes. A forma de expressão artística baseada na
simultaneidade foi adoptada pelo cinema, usada na pintura e na escrita. Na
poesia já existia havia muito e apareciam ao leitor em estrofes que
acolhiam uma multiplicidade de sentidos como aconteceu com Hölderlin (já
no século XVIII), com Rilke e, entre nós, com Herberto Helder. Esta
corrente teve o seu apogeu de concretização plástica na pintura de Sonia
Delaunay e Paul Klee, tendo sido seguida, em Portugal, por Amadeo de Souza
Cardoso. Blaise Cendrars, influenciado por Sonia Delaunay, foi quem
oficialmente exprimiu a simultaneidade oferecendo não uma multiplicidade
de sentidos mas de imagens justapostas. Essa multiplicidade de sentidos é
obra do real que excede a representação e em que a memória é concebida
como uma dinâmica do tempo. Trata-se, pois, de uma montagem ou colagem em movimento. A imagem
visa fazer vibrar o tempo e, neste caso, em assinalar a criação de uma
mudança de tempo. A imagem faz a mediação entre a percepção e a memória.
Esta obra de Cendrars, publicada em Paris em 1913, apresentava no título:
Poème, couleurs simultanées de Mme
Sonia Delaunay.
É perante o
fragmento do poema Memória,
Montagem, uma das pérolas desse
circuito vibrante que é Cobra,
que me vou sentar, meditando, sabendo como é verdadeira a intuição de
Hölderlin quando em Hipérion diz que o homem é um deus quando sonha e um
mendigo quando medita. Em Cobra,
Herberto Helder põe os objectos-palavras movendo-se, simultâneamente, no
quadro em movimento: o rosto do século, o rosto da ausência.
Em Cobra o lugar não existe, existe apenas a noção de limite. Onde
está, então, o poeta de Cobra? O poeta não está em parte alguma porque o
poeta está em todo o lado, ou melhor, no coração do mundo:
"Estive agora
em África com seus fulcros de oxigénio, e a energia das patas, e as
radiações das flores paradas. Um mês nodulunar activo crivando todo
o poema ensombrecido pelas veias do mel.
Estive em toda
a parte onde pulsa o corpo com as órbitas de amianto sob a força
pensada, virgem e severa. Desde as águas palpitando entre as bocas e
as guelras, e o sangue sorvido através das válvulas, e nas crateras o
fulgor dos óvulos de faiança. O salto dos sóis no corpo arrancado".
O poema que
está organizado como uma constelação de palavras no silêncio infinito do
espaço, revela que o poeta, como a maior parte dos homens está, é,
estaciona, mas não vive em lugar algum e os lugares, se existem, é porque
o poeta os evoca numa paisagem súbita, repentina, porque a memória, que
guardou os lugares na sua treva de silêncio, os lança como uma flecha
luminosa no Poema. O Poeta floresce, solitário, num mundo adormecido como
no-lo diz Hölderlin,
em
A Morte de
Empédocles (2). O poeta
esteve em África mas devido ao descentramento permanente do espaço, a
África ausente está centralmente situada no
agora do instante pois o poeta
vive entre centro e ausência: "A minha idade escapa-se de um lado para o
outro, sob os dedos, como um nervo fulgurante. Vou morrer. O ouro está
perto".
"Os mortos
reluzem nas cavernas. Usa-se a morte como uma lembrança genial ou um
absoluto inquilinato".
Tudo o que vivo
foi sonegado ao tempo novo com seus homens, mulheres e crianças, toda a
matéria que não foi fotografada, aflora, ainda que tocada pelo
escurecimento, esse oiro mortal. Tudo corre na paragem do tempo, os bichos
para o caçador, Deus para o coração dos que o procuram, tal como o
concebeu também Rilke. O poeta está no centro e o centro está em toda a
parte. E Nós, a Palavra desviada
do poema, perguntamo-nos: como seríamos nós, como seria o mundo e a
história se esses homens, mulheres e crianças que reluzem nas cavernas
tivessem vivido a vida que lhes cabia viver? A nossa ciência é escura pois
sabemos que o homem se tornou inalcançável para outro homem. Entre o homem
e o homem há um abismo. "A força do medo verga a constelação do sexo",
diz-nos o poema. Perdemos, humanos que somos, o poder de transmitir a
essência humana uns aos outros, de homem para homem, de homem para a
mulher e vice-versa. O homem desconhece o homem e é das mãos dos animais
que o poeta toma o poder, porque dos animais temos a ciência exacta de
tudo o que é grave e "carregado: as frutas, ou a noite e o calor, e os
negros laços atados dos animais".
"Quando a
paisagem sopra pelas janelas, durmo
olhando
os centros de
África. Deu-me a inteligência aquilo que toquei: o pénis que vem desde os
astros das costas, os ovos no fundo dos alvéolos, ou as negras pálpebras.
Somente o mundo
é uma coisa
sonora. E eu estou soldado por cada laço da carne aos laços das
constelações".
O homem não
pode estar à mesa do mundo como antropófago mas como caminhante. Como
Cendrars, em Feuilles de Route, no seu poema A Table, incluído no volume
Au coeur du monde(3), comer
está nas antípodas: "...de l'amour du toucher du toucher de l'amour em
pleine évolution et croissance universelle Révolutionnaire Synthétique".
Poincaré
(1854/1912), matemático e físico francês, declarou que o espaço
topológico é o do tacto. "O sol belo como um Pé de homem" exclamou,
maravilhado, Heraclito. Cabe ao pé, esse sol, reiniciar o
contacto com o espaço topológico
da Terra através da caminhada. Uma mesma concepção está presente na noção
de poema como espaço topológico
em Herberto Helder: "(...)Ou então o poema vitaliza a
vida, se a toca nalguns pontos. O poema gera uma vida nesses pontos
tocados. É um colar de pérolas, as pérolas todas juntas, circuito vibrante
que se pode sentir à roda do pescoço com uma viveza autónoma de bicho".
Herberto Helder filma este
seu poema entre 1974 e 1977, ano em que é publicado. A Revolução de Abril,
essa época de "Violência, claridade, sobressalto", surge simbolizada nos
rostos, na expressividade que os rostos adquiriram depois de meio século
de inexpressividade obrigatória e camuflagem necessária: "O tesouro de um
rosto furioso. E a claridade evapora-se dos cérebros, ao alto do
candelabro, como o olho activo de uma flor de ágata".
Sendo o tempo a ordem da existência das coisas
sucessivas e que não são, portanto, simultâneas, aqui, agora, no poema,
tudo é simultâneo. No espaço do poema está um agregado de coisas
simultâneas, o mundo como espaço de coexistência ou ordem da existência
entre coisas que são simultâneas. Nós, compondo com as palavras do poeta
uma prosa, estamos no filme, junto ao lume das coisas, nas chamas frias
dos seus espelhos. Somos apenas a palavra dirigida ao poema, tímida como
uma flor entre as páginas de um livro, e não somos nomeados porque estamos
na expansão da sua sonoridade dentro de nós, no eco das suas imagens,
trabalhando-nos. Como a sonoridade se expande pacientemente, assim a calma
lentidão das imagens, no espaço, à volta de um falo de mármore, umbigo do
mundo, símbolo da fecundidade da terra.
"Umbigo que
brilha, cego. O púbis brilha, alto como talha".
Crescimento universal de uma nova genealogia do
homem, uma genealogia que não é consanguínea nem de parentesco mas que
entende a Humanidade como uma Família única, a Família Humana.
"A infância é
central como os ramais da água circulando na África. Oh crianças de negros
rostos vivos como candeeiros", reza o poeta Herberto Helder no seu poema
Cobra.
Bibliografia
1.
Herberto Helder,
Cobra.
Editora & etc, 1977
2.
Hölderlin,
A Morte de Empédocles
.
Relógio D’Água.
Trad.Maria Teresa Dias furtado
3.
Blaise Cendrars,
Au coeur du monde.
Poésie/Gallimard
|
JOANA RUAS. Escritora portuguesa. Obras:
Na Guiné com o PAIGC, reportagem escrita nas zonas libertadas da Guiné em 1974, edição da autora, Lisboa, 1975;no jornal da Guiné-Bissau , Nô Pintcha, redige, em 1975, a página de literatura africana de língua portuguesa. Traduz textos inéditos de Amílcar Cabral escritos em língua francesa e recolhe na aldeia de Eticoga (ilha de Orangozinho, arquipélago dos Bijagós), a lenda da origem das saias de palha; Corpo Colonial, Centelha, Coimbra, 1981 (romance distinguido com uma menção honrosa pelo júri da APE; traduzido em búlgaro); Zona (ficção), edição da autora, Lisboa, 1984 (esgotado); Colaborou no Suplemento Literário do Diário Popular e, na página literária do Diário de Lisboa, foi publicado um seu trabalho de análise crítica intitulado O Lado Esquerdo da Noite sobre o romance de Baptista Bastos, Viagem de um Pai e de um Filho pelas Ruas da Amargura; na Revista cultural Algar numa edição da Casa Museu Fernando Namora em Condeixa, apresentou um estudo sobre o romance Fogo na Noite Escura de Fernando Namora; colaborou com textos na página de Letras e Artes, Alma Nova, do jornal O Mirante, no Notícias de Elvas, no União, Quarto Crescente, Jornal do Sporting com poemas inéditos e com um trabalho de análise crítica sobre a narrativa dramática de Norberto Ávila, As Viagens de Henrique Lusitano; O Claro Vento do Mar(romance) Bertrand Editora, Lisboa, 1996; Amar a Uma só Voz ( Mariana Alcoforado nas Elegias de Duíno), Colóquio Rilke, organizado pelo Departamento de Estudos Germanísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1997 e publicado no nº 59 da revista electrónica brasileira Agulha (www.revista.agulha.nom.br; A Amante Judia de Stendhal (ensaio), revista O Escritor, n.º 11/12, Lisboa, 1998; E Matilde Dembowski ( ensaio sobre Stendhal), revista O Escritor, nº13/14, 1999 e revista electrónica (www.revista.agulha.nom.br e Triplov; A Guerra Colonial e a Memória do Futuro, comunicação apresentada no Congresso Internacional sobre a Guerra Colonial, organizado pela Universidade Aberta, Lisboa, 2000; A Pele dos Séculos (romance), Editorial Caminho, Lisboa, 2001;.Participou com comunicações nas Jornadas de Timor da Universidade do Porto sobre cultura timorense e sobre a Língua Portuguesa em Timor na S.L.P. A sua poesia encontra-se dispersa por publicações como NOVA 2 (1975), um magazine dirigido por Herberto Helder; o seu poema Primavera e Sono com música de Paulo Brandão foi incluído por Jorge Peixinho no 5º Encontro de Música Contemporânea promovido pela Fundação Gulbenkian e mais tarde incluído no ciclo Um Século em Abismo — Poesia do Século XX realizado no C.A.M.; recentemente publicou poesia nas seguintes publicações : Antologia da Poesia Erótica, Universitária Editora; Cartas a Ninguém de Lisa Flores e Ingrid Bloser Martins, Vega ; Na Liberdade, antologia poética, Garça Editores; Mulher, uma antologia poética integrada na colecção Afectos da Editora Labirinto; Um Poema para Fiama, uma antologia publicada pela Editora Labirinto; ; tem colaboração nas revistas Mealibra, revista de Cultura do Centro Cultural do Alto Minho e na Foro das Letras revista da Associação Portuguesa de Escritores-Juristas onde publicou Caderno de Viagem ao Recife . Na revista electrónica Triplov foi publicado um Roteiro sobre a sua obra, A Pele dos Séculos. Em 2008, a Editora Calendário publicou o seu romance histórico A Batalha das Lágrimas. Participou na 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará onde proferiu uma palestra intitulada Aproximar o Distante, Do Estranho ao Familiar — duas experiências: Timor-Leste e Guiné-Bissau. |