:::::::::JOANA RUAS:::

ROTEIRO DE ALGUNS TEMAS AFRICANOS
elaborado por Joana Ruas a partir do seu romance

"A PELE DOS SÉCULOS" - INDEX

1ª Ficha
Cicios sob o mosquiteiro
  • Estás acordada?
  • Não, e tu?
  • Também não.
  • Estás com medo?
  • Não, e tu?
  • Estou com medo.
  • Não tens razão para ter medo.
  • Tenho medo por ti. Voltamos juntas para o colégio, amanhã?
  • Nós vamos para algures. Nem consigo imaginar um mundo assim distante...
  • Vão como pássaros derrubados pela tempestade, sem um abrigo.
  • Como tudo agora me parece estranho! Até tu.
  • Nasci estranha até para mim mesma. Entendes?
  • Sim.
  • Estás a chorar?
  • Dizem que foi acidente, mas eu sei que se tratou de um assassinato.
  • Quem me fará as tranças no colégio?
  • Nunca mais nos veremos, percebes?
  • Eu vou procurar-te logo que possa, prometo, eu vou descobrir-te nem que seja no fim do mundo.
  • Logo que possas...E quando poderás?
  • Isso só Deus sabe, somos quase crianças, como podemos saber?
  • Dá-me a tua mão. Confio mais no calor de uma mão do que em Deus que não salvou meu pai que era um justo.
  • Estás a dormir?
  • Estou, e tu?
  • Também. 

                                Angola, anos 50.

O romance A PELE DOS  SÉCULOS  tem como ponto de partida  uma conversa entre duas crianças intitulada Cicios sob o mosquiteiro.  Vivia-se na Angola dos anos 50/60, entre os apoiantes da candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República, um clima de frustração  e revolta.

Nessa época, entre os que se opunham ao regime, constituíam leituras obrigatórias  algumas revistas então surgidas: de 1951 a 1952 e editada pela Associação dos Naturais de Angola, é publicada a revista Mensagem, de Luanda, e, depois, a revista Cultura que reapareceu, após seis anos de interregno forçado, em Novembro de 1957. Como nos lembra o escritor Leonel Cosme, foi uma  época de vazio policiado,  «um tempo de cicio» como lhe chamou Jofre Rocha um dos poetas dessa geração.

A atmosfera de  medo fazia com que mesmo no mais recolhido dos lugares —  a cama —  duas crianças, debaixo do mosquiteiro, ciciassem. Como assinala ainda Leonel Cosme no seu livro Agostinho Neto e o seu Tempo, editado pela Campo das Letras, na revista Mensagem «eram visíveis dois projectos político-culturais contraditórios: um, perfeita emanação do regime colonial vigente, face ao qual Angola, «província ultramarina» de Portugal, era tida como parte integrante da nação portuguesa; outro, tendo como vector a caminhada autonômica de Angola, no sentido óbvio de uma sonhada independência.»

Quando em 31 de Janeiro de 1960  surgem as Publicações Imbondeiro dirigida por Garibaldino de Andrade, Leonel Cosme, Maurício Soares e Carlos Sanches, a sua leitura tornou-se-me obrigatória e foi através dela que contactei com autores como Luandino Vieira, António Jacinto, Cochat Osório, Alda Lara, Agostinho Neto, Alfredo Margarido e  Acácio Barradas entre outros. Mais tarde, já em Coimbra, tanto  os angolanos residentes em Portugal como os portugueses que haviam residido em Angola, seguíamos todos, com preocupação,  o processo dos 50 e, em meados de 1960 a prisão, pela Pide, de Agostinho Neto e Joaquim Pinto de Andrade, e ainda, na segunda metade de 1961, de António Cardoso que em 1963  seguia para a prisão no campo do Tarrafal para onde foram também António Jacinto, Luandino Vieira, Mendes de Carvalho e Manuel Pedro Pacavira. É na sequência destes acontecimentos que se soube  da prisão em Luanda do oficial miliciano  Manuel Alegre.

Carta Final

«Querida amiga,

Vinte e cinco anos depois fui à Guiné-Bissau Independente para te procurar. Estive lá mas não te encontrei. No nosso desencontro encontrei um mundo de pessoas que me proporcionou a vivência de que nasceu este romance.
Lisboa, 1998.

A carta final a essa amiga de infância, dá conta do desencontro entre as duas amigas agora separadas pela desordem social que se seguiu à guerra colonial. Desencontro que teve, como consequência, a dupla viagem da autora por um mundo geográfico desconhecido e, simultâneamente,  pelo mundo do Outro encarado como um irmão e não como um inimigo. 

 A nossa sociedade privilegia a comunicação pelos media, comunicação que  fornece uma representação falsa do  mundo em que vivemos, levando as pessoas a viverem em desacordo com a realidade, ao confundirem realidade e fenómenos ilusórios. Na amizade, na comunicação fraterna, partilham-se afectos, vivências e responsabilidades. A escrita do romance A PELE DOS SÉCULOS é uma afirmação da Amizade como valor social,  como uma forma de comunicar valores e de fazer intercomunicar, de forma fraterna, espaços e tempos diversos.

O romance A PELE DOS SÉCULOS nasceu   da vontade de   estabelecer uma continuidade entre o passado e o presente. Não se tratou de uma busca do tempo perdido mas a busca, no rio do tempo, esse rio que nos leva como disse Jorge Luís Borges, de pessoas que conjunturas políticas separaram. Ao longo da sua vida, uma das crianças apercebe-se que o seu futuro se despovoou, que, apesar de ter atravessado o rio do Esquecimento não se desvaneceram da sua memória os rostos e vozes que povoaram a sua infância. Já adulta, e depois que a alvorada de Abril lhe abriu de novo as portas desse  mundo assolado pela guerra, ela, a outrora criança,  empreende uma longa e difícil travessia entre dois mundos ainda em conflito. Porque temos memória pessoal, histórica e genética, a vida banha-se no rio de vários tempos como disse Michel Serres. Foi o que a narradora percebeu na sua peregrinação por vários mundos e vários tempos, tempos feitos de séculos que marcaram a pele da humanidade com os sinais do sofrimento, da espoliação  e da opressão.

De facto, a história colectiva dos portugueses e dos povos africanos foi neste livro revisitada: o tráfico de escravos; a dispersão dos povos ibéricos devido à Inquisição quer em Espanha quer  em Portugal. O mundo árabe absorveu parte deste contingente que lhe chegou dos reinos da Espanha e da Sicília que era ao tempo  pertença de Aragão. De Portugal, judeus e mouros  chegaram a Cabo Verde, a São Tomé e Príncipe, à Guiné, Angola, Moçambique e Timor. Os judeus e mouros iam nas caravanas pelas rotas sarianas do ouro que saíam de Anafé (actual Casablanca) e Safim, para a Guiné ( então chamada Etiópia austral ou Líbia inferior).

«— O teu Mestre era um filho do deserto, e muitos dos filhos do deserto são mestiços de Judeus e Mouros ibéricos e de Negros. Alguns são descendentes de Judeus idos da Palestina para fugirem ao cativeiro da Babilónia e que vivem no Todra, no vale de Dra, nos contrafortes do alto Atlas. Foram eles que ensinaram a música, a ourivesaria e a arte dos metais aos Povos do grande deserto.

— Conheces, por acaso donde vem o valor desta moeda chamada Zamul? Perguntou Amílcar mostrando-lhe a moeda.

Bilâl pegou nela, observou-a com cuidado e respondeu:

Na realidade trata-se de um douro e teria vindo para as nossas paragens através dos tuaregues e dos Ineden, os Iullemmeden de Leste, que lhe chamaram Zamul. Zamul quer dizer, na Língua Tamachek, uma brisa muito viva, uma rajada de vento, talvez por lhes lembrar a origem da dispersão desses povos ibéricos.» 

JOANA RUAS. Escritora portuguesa. Obras:

Na Guiné com o PAIGC, reportagem escrita nas zonas libertadas da Guiné em 1974, edição da autora, Lisboa, 1975;no jornal da Guiné-Bissau , Nô Pintcha, redige, em 1975, a página de literatura africana de língua portuguesa. Traduz textos inéditos de Amílcar Cabral escritos em língua francesa e recolhe na aldeia de Eticoga (ilha de Orangozinho, arquipélago dos Bijagós), a lenda da origem das saias de palha; Corpo Colonial, Centelha, Coimbra, 1981 (romance distinguido com uma menção honrosa pelo júri da APE; traduzido em búlgaro); Zona (ficção), edição da autora, Lisboa, 1984 (esgotado); O Claro Vento do Mar, Bertrand Editora, Lisboa, 1996; Amar a Uma só Voz ( Mariana Alcoforado nas Elegias de Duíno), Colóquio Rilke, organizado pelo Departamento de Estudos Germanísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,  Edições Colibri, Lisboa, 1997 e publicado no nº 59 da  revista electrónica brasileira AGulha (www.revista.agulha.nom.br;  A Amante Judia de Stendhal (ensaio), revista O Escritor,  n.º 11/12, Lisboa, 1998; E Matilde  Dembowski ( ensaio sobre Stendhal), revista O Escritor, nº13/14, 1999 ; A Guerra Colonial e a Memória do Futuro, comunicação apresentada no Congresso Internacional sobre a Guerra Colonial, organizado pela Universidade Aberta, Lisboa, 2000; A Pele dos Séculos (romance), Editorial Caminho, Lisboa, 2001; tem publicação dispersa em prosa  por vários jornais e  suplementos literários. Participou  com comunicações nas Jornadas de Timor da Universidade do Porto sobre cultura timorense e sobre a Língua Portuguesa em Timor na S.L.P. A sua poesia encontra-se dispersa por publicações como NOVA 2 (1975), um magazine dirigido por Herberto Helder; o seu poema Primavera e Sono com música de Paulo Brandão foi incluído por  Jorge Peixinho no 5º Encontro de Música Contemporânea promovido pela Fundação Gulbenkian e mais tarde incluído no ciclo Um Século em Abismo — Poesia do Século XX realizado no C.A.M.;  recentemente  publicou poesia nas seguintes publicações : Antologia da Poesia Erótica, Universitária Editora; Cartas a Ninguém de Lisa Flores e Ingrid Bloser Martins, Vega ; Na Liberdade, antologia poética, Garça Editores; Mulher, uma antologia poética integrada na colecção Afectos da Editora Labirinto; Um Poema para Fiama, uma antologia publicada pela Editora Labirinto; excertos do seu romance inédito, A Batalha das Lágrimas foram publicados em Mealibra,  revista de Cultura do Centro Cultural do Alto Minho.Na revista Foro das Letras foi publicado o seu  Caderno de Viagem ao Recife.