:::::::::JOANA RUAS:::

DOIS AMORES DE STENDHAL

A amante judia

«Tocar o sítio onde o ébano
 começa  a sombrear o lírio».
Stendhal- Oeuvres Intimes

No crepúsculo da sua vida, ao inventariar os seus amores, Stendhal sentia que tinha conquistado o coração de quase todas as mulheres que amou á excepção de Ângela Pietragrua, Clementine Curial e Matilde Dembowski. O romancista nutriu um afecto real por todas as mulheres com quem se relacionou intimamente e, embora as amasse a cada uma de forma diferenciada, apenas amou de forma sublime e dolorosa, Matilde Dembowski. Apesar de constante nos seus sentimentos, Stendhal só foi fiel, mas por pouco tempo, a Matilde e  só foi amado exclusiva e incondicionalmente pela submissa Angéline. A amante judia de Henri-Marie Beyle, a cantora de ópera cómica, Angéline Bereyter (1786-1841) , a quem ele também chamava Anjinho, amou-o com evidente aflição e veemente delicadeza. Conservamos  dela  o retrato que o seu amado registou escrupulosamente no seu Diário: a resignada tristeza do seu semblante e o caudal de lágrimas apaixonadas  que ela verteu quando se despediram no carro que o levaria para a pátria da sua eleição – a Itália. Embora o entusiasmasse a aventura da viagem, Beyle, que a ia já esquecendo, não foi indiferente a essas lágrimas pois, mais tarde, ao reler as páginas do seu Diário onde as anotara, referiu-se de novo a esta despedida  pois a recordação dela, até então soterrada na sua memória pelo pó de longos anos de esquecimento e pelo tumulto de novos amores, reavivara-se-lhe,  erguendo-a de novo no seu coração. Foi em Paris, em 1810, que Henri-Marie a conheceu tendo os seus amores durado de 1811 a 1814. A sua  coabitação com Angéline, tendo-se tornado estável e conhecida  na corte de Bonaparte, muitas das pessoas que como ele a frequentavam, mostravam-lhe  frieza para o punir de viver com uma actriz. Angéline teve ainda a desvantagem de se relacionar com Beyle quando neste a recordação de Mélanie Guilbert ainda não se havia sequer esbatido. O futuro autor das Crónicas Italianas, segundo deixou escrito no seu Diário, era, no tempo do seu envolvimento sentimental com Angéline, «um homem cuja existência estava o menos possível entregue ao acaso pois estava dominado por uma paixão excessiva pela glória». Tendo consagrado a sua vida ao esforço para alcançar a glória,Stendhal  era o oposto de Casanova que tinha  encarnado no século XVIII a opção pela via do prazer . Ao contrário de Casanova, a paixão pela glória perseguida por Stendhal pressupunha um espírito novo em que se impunha já a exigência de vencer o destino. Segundo o ensaísta Georges Poulet, o abandono ao impulso do desejo a que se entregava Casanova  e que o lançava para a frente sem olhar a obstáculos ou perigos, se era sem reserva  alguma, também era, pela dissipação que lhe era  própria, sem amanhã. A paixão  obsessiva pela glória do futuro escritor, só casava bem com a obstinação de Mélanie em progredir na sua carreira de actriz, não achando ele estímulo no temperamento afectuoso e pouco expansivo de Angéline nem na  sua fraca combatividade e ambição. Stendhal precisava de alimentar com emoções fortes a sua actividade mental sobretudo quando, nas intermitências do coração, o invadia o tédio e o aborrecimento. Foi em Marselha, para onde foi com a intenção de acompanhar o esforço de Mélanie, até então simples comediante, em tornar-se actriz dramática, que, tendo de lançar mão para sobreviverem a um emprego de marçano, teve a intuição de que a ambição da actriz exigia que ele se esquecesse da sua. A ambição exige movimento e não quietude. A felicidade é repouso e toda a  amante anela pelo repouso da felicidade, repouso que não se coaduna com a necessidade permanente de estímulos. A quietude existente na relação de Angéline e Henri-Marie Beyle  era perturbada pelo  eco das  tensões mundanas e pelas intrigas urdidas contra o casal quer por antigos pretendentes dela quer por amigos e parentes dele. Apesar de indiferentes às intrigas,  influía negativamente nesta relação amorosa, a sensibilidade do escritor para com os rigores que moldavam a existência de Mélanie, o que contribuía para  a manter viva no seu coração. Mélanie, que  tentava sair  da escuridão que moldava de incerteza o seu destino, ia a mal ou a bem derrubando os obstáculos que bloqueavam o seu progresso no mundo. Não sendo feliz, Angéline submetia-se ao amor que lhe tinha por razões que ele não estava apto a entender porque  Beyle ainda não era Stendhal, não escrevera de L´Amour pois não amara ainda Matilde Dembowski, e,  não tendo ainda amado, não se  tinha  revelado a si mesmo.

Seguindo  o exemplo de Milan (nome com que no seu Diário se refere a Bonaparte), Beyle cedo manifestou o mesmo apaixonado interesse pelo teatro, buscando ali  «uma espécie de instrução para quem quer viver e vencer em sociedade, devido á pintura dos caracteres própria das comédias e á pintura das paixões própria das tragédias». O  Diário de Stendhal está repleto de dissertações e de apreciações sobre as peças de teatro, os seus autores e, sobretudo, sobre o trabalho dos actores, e nele está registado  que era  tal o gosto do jovem Napoleão pelo teatro que  constava que nele entrava grátis pela mão de Talma, actor de tragédias. O gosto pelo teatro triunfou sempre no escritor sobre todos os outros divertimentos nobres talvez porque lhe trazia à lembrança as lições de declamação que recebeu de vários mestres entre os quais Bernadille, pseudónimo dado pelo escritor ao famoso Dugazon (Jean-Baptiste-Henri Gourgaud), comediante e professor de arte dramática e também porque foi nos cursos dados por este actor que Stendhal conheceu Mélanie Guilbert. Mélanie, que se tornaria mais tarde, em 1810, senhora Barkov com domicílio em Moscovo, era  conhecida, como actriz, por Louason e também  por Saint-Albe. A complexa personalidade desta actriz viria a inspirar-lhe um conto, Lamiel, em que  numa progressão temporal, moral e psicológica, nos dá a versão realista de uma personalidade vacilante nos seus contornos e em contraponto com outras ainda moldadas por comportamentos sociais naturalistas . De Louason, da sua vida aventurosa de rapariga pobre que por necessidade de sobrevivência se repartia entre os casamentos e o teatro, num momento de excesso de saudade, deixou escrito que tinha querido estar próximo do seu coração, o que poderia querer significar que Mélanie Guilbert —  tal como Lamiel, a personagem do conto com esse título — , se havia proibido o amor, apostada como estava em dominar uma situação crítica ou adquirir uma posição social. Foi a terna compaixão pela condição social desta amiga que tornou  Stendhal próximo de seres humanos que como ela viviam  domados pela dureza com que o infortúnio os fustigava e tentando, tenazmente, e por todos os meios, vencê-lo. Tratava-se, neste caso, de vencer o infortúnio e a precariedade e não de tentar, a todo o custo, escapar-lhes. Henri-Marie vivia por essa altura no arriscado país dos comediantes, como Paul Arbelet, seu biógrafo, chamou a este período da vida do então candidato a romancista.  Em Outubro de 1810, já separado da actriz, para Beyle, « a felicidade consistia em amar e ser amado, pelo que se sentia quase feliz pois tinha roupas distintas, dinheiro, Angéline e o mal de ser… “ verme nato a divenir angelica farfalla»*. Angéline cantava para ele, para que ele as aprendesse,  árias  de Mozart e de Cimarosa. Nessa época dos seus amores, ele anotava no seu Diário que «enfim, quanto ao amor, estou perfeitamente contente. Ela escreve como um anjo». Beyle  não havia no entanto logrado, no refúgio do amor de Angéline, a exaltada paixão de amar . Sendo amado por Angéline, Beyle acreditava que não a amava a ela, antes pensava que amava a dama do Val-de-Grâce, Alexandrine-Thérèse Nardot, mãe de cinco encantadoras crianças e esposa de seu primo Pierre Daru, conde do Império e par de França. Alexandrine Daru, no entanto, não correspondia à sua paixão pois Stendhal deixou escrito que ela «manifestava-lhe uma doce amizade  mas os encontros que tinham a sós eram sempre frios». Castigado pela amável frieza  com que Alexandrine o tratava, Beyle depreciava o seu sentimento para com Angéline,  anotando no seu Diário: «Já quase não tenho sensibilidade para a ópera buffa e para a amável rapariga com a qual me deito todas as noites».Angéline Bereyter, mantinha-o a seu lado satisfeito com o amor que recebia mas despreocupado em relação a ela a cujo amor não correspondia. Ela era pertença sua sem que ele, no entanto, lhe pertencesse, pois em  1813 ,  anotava que tinha sob observação quatro  mulheres,  acrescentando «não falo da minha Angéline».Em 1813, o seu envolvimento com Angéline sofreu outro obscurecimento pois reacendeu-se nele a sua antiga paixão pela condessa Ângela Pietragrua que conhecera em 1801, quando permanecera  em  Itália como alferes de cavalaria afecto ao 6º regimento de dragões. Stendhal, que anos volvidos ainda a recordava com exaltada ansiedade, não tirou destes amores com que enfeitar a sua vaidade embora tivesse suplantado os anteriores amantes da caprichosa Ângela beneficiando de mais quatro meses de intimidade. Ao referir-se  aos acidentes sentimentais ocorridos nesta relação amorosa que acabou em 1816,  o escritor, frustrado e amargurado, ousa gabar-se, ainda que discretamente, de ter cometido com Ângela uma proeza física. Foi este estado de satisfação despreocupada que Angéline lhe proporcionou sem que ele se desse bem conta, que a eclipsou no seu coração e por muitos anos, obscurecendo igualmente  a avaliação  da real importância dela na sua vida. Numa dessas ocasiões em que o escritor, possuído pela vivacidade do sentimento evocado, elevava a mulher que o suscitara acima da real importância que tivera na sua vida e, sem que interviesse o sentimento de justiça na avaliação dos factos e das pessoas (para o romancista, a mulher que o favorecera com uma emoção mais intensa ou por ele ainda não experimentada, prevalecia nesse momento sobre todas as outras), referindo-se a Angéline, que o amara exclusivamente a ele e com um amor terno, com uma sinceridade cruel, confessou-nos  que nunca a amara. Angéline havia cometido um  erro que se revelou fatal para a sua pretensão: o de não haver excitado a imaginação do escritor, preocupada que estava em construir a felicidade do homem que amava. Empenhada em construir a sua própria felicidade também estava Mélanie que incansavelmente, mas em vão, tentava  conciliar o seu papel de mãe com a sua carreira artística e com a sua vida amorosa. Muitos anos depois, quando se voltaram a encontrar, analisando os respectivos insucessos, apenas restava a Mélanie e a Stendhal, uma peculiar e rara forma de felicidade: a de num objectivo haverem perseguido uma forma de perfeição que ele genialmente viria a sintetizar nestas palavras: «tornarmo-nos nós próprios é uma longa paciência!».

Stendhal, que  nasceu em 1783, teve uma carreira agitada : foi dragão de cavalaria em 1800, estudante de 1803 a 1806 ( em 1805 esteve em Marselha com Melanie), em 1806 foi adjunto aos comissários das guerras e intendente em Brunswick; em 1809 cumpriu missões ao longo do Danúbio, Linz e Passau  e resgatou os feridos em Essling e  em Wagram onde morreu um dos raros homens que admirou, o general Lasalle (1775-1809), de quem falou na sua obra De L’Amour. Lasalle, quando entrou com as suas tropas em Toledo, acorreu às masmorras da Inquisição para libertar os prisioneiros. O escritor americano, Edgar Poe (1813-1849) presta-lhe a sua homenagem no conto O Poço e o Pêndulo. Em 2008, registo o meu testemunho neste texto sobre Stendhal para que a sua memória, tão cara a estes dois escritores, se perpetue na posteridade. Voltando a Stendhal, em 1810, com a ajuda de Alexandrine Daru, foi nomeado auditor ao Conselho de Estado. Em Vie de Henry Brulard, escreveu:«Tombei com Napoleão em abril de 1814», acrescentando:« Depois da abdicação de Napoleão fiz viagens, tive amores terríveis e consolei-me  escrevendo livros de 1814 a 1830». De facto, Henri-Marie trabalhou afincadamente, perseguindo «a felicidade da paixão da glória» que ele pensava vir a alcançar através das suas obras e, quando as suas finanças o permitiam, entregando-se a um prazer que lhe era particularmente caro: deleitar-se no esquecimento de si mesmo com o que aprendia numa viagem. Tendo amado loucamente a liberdade e a alegria concluiu, já no fim da sua vida, que os seus únicos gostos duráveis haviam sido,  Saint-Simon, os espinafres, além de outro que sem jamais o conseguir realizar, sempre almejara : o de poder viver em Paris com cem luíses de rendimento e fazendo livros e comédias. Mas já em 1804 se dava conta que « a felicidade da paixão da glória defende-nos da solidão, mas todas as outras paixões se perdem nela, de modo que a felicidade desta paixão torna-se bem mais difícil.» Para tornar viável essa paixão pela glória, na época da sua relação amorosa com Angéline, Beyle, desgostoso da canalha, fechava-se em casa e nem queria mesmo ouvir tocar a campainha. Nesta fase da sua vida de escritor, o que o ligava a ela era  a necessidade de uma protecção contra a solidão e, simultaneamente, contra o mundo exterior. Angéline pairava na sua vida como uma sombra maternal e, caso raro na vida de Stendhal, exprimira-lhe o seu amor oferecendo-lhe um relógio em que  mandara gravar a frase: « amo-te em todos os momentos ». Ele, apesar de se entregar ao prazer das novidades, manteve-se durante bastante tempo fiel à adoração dela. Não a tendo amado com paixão, confessou que tinha gostado dela o suficiente para se afastar de outras mulheres mais novas que ela, sobretudo porque temia  o aborrecimento que  poderia vir a sentir junto delas. Embora Henri Beyle preterisse sempre a mulher que o amava á mulher que ele requestava, Angéline foi, como ele próprio disse, uma fonte para a sua sede. Angéline, que o queria ver feliz, apressava-se em mitigá-la. Stendhal escreve no seu Diário que essa sede depressa se saciava. Tendo sido cantora, Stendhal, que elogiara outras  cantoras, nomeadamente a cantora portuguesa Lourença Correa, em Março de 1811, sobre Angéline, escreveu: «ela é doce, atraente, mas fria na sua arte». Sugerindo que ela tinha pouca consideração pelo talento que possuía, Beyle não  lamentava o que o talento lhe poderia  trazer  em vantagem social ou económica mas, pelo contrário, lamentava  que ela não  fizesse mais pelo talento que possuía estimulando-o a progredir, como fizera Mélanie, menos dotada do que ela. Mais dada ao amor que à ambição, Angéline desvalorizou-se aos olhos do seu amado que apreciava a ambição como uma forma de energia capaz de dinamizar a sociedade dotando-a de valores necessários ao seu engrandecimento. Para este liberal, a noção de valor tinha implícita a de virtude política que, segundo Del Litto, em linguagem stendhaliana, quer dizer, « a coragem de permanecer fiel ao sentimento de independência, o único capaz de salvaguardar o indivíduo de toda a tentativa de manipulação exterior». Stendhal viria a admirar esta virtude em Matilde pois  Angéline era uma mulher terna que, vivendo de forma obscura todos os sacrifícios impostos por um amor violento que subsistia sem ser correspondido, parecia ter colocado a sua Arte abaixo do seu amor por ele. Para Angéline, o Amor talvez fosse a suprema finalidade do ser humano e que por esse facto deveria ser vivido como uma Arte, a mesma Arte do belo de que o canto constituía uma das formas de expressão, mas não a realidade do mesmo Amor. No entanto, ó ironia, pelo Diário de Stendhal se constata que ela poderia ter conquistado o seu coração se tivesse crescido na sua Arte, mesmo que a ela sacrificasse a sua paixão por ele. Angéline proporcionava-lhe uma tão grande serenidade que lhe permitia, quando se não viam, encontrar distracção no trabalho. Com Matilde, pelo contrário, só as mulheres o podiam distrair e não o trabalho! A ausência de perigo em perdê-la foi um grande inconveniente para o amor comovido de Angéline. Não há no mundo nada mais difícil do que o juízo sobre o que convém à felicidade dos outros. Seria Angéline feliz se o não amasse no  seu modo honesto e puro? Tentar conquistá-lo através de outras aparências  não teria como consequência inevitável a destruição violenta do seu amor-próprio? É uma natureza pacífica a que verte tais lágrimas ao despedir-se dele. São lágrimas demasiado copiosas e silenciosamente dramáticas para não significarem apenas a mágoa imensa de uma despedida que ela pressentia como definitiva pois  Angéline parece despedir-se ali, igualmente, das suas legítimas ambições em relação a ele, e, pior ainda, da mais vasta das ambições: a da  sua entrega total ao amor que nela nascera e que tão emocionadamente a arrastava para fora de si mesma.

Em 1836, em Vie de Henry Brulard, Stendhal afirma que percebia que era outro homem e que os erros daquele de 1800 eram descobertas que ele fazia, a maior parte das vezes, enquanto escrevia. Que a sua memória não lhe correspondia inteiramente e que não se lembrava, ao fim de tantos anos e de tantos acontecimentos, senão do sorriso da mulher que ele amava. O amor apaixonado de Angéline, vivido em dor e exclusividade, levou-a a conhecer mais cedo do que ele a violência própria  do amor. E uma violência para a qual a sua arte não a havia preparado pois na ópera cómica os amores são felizes porque são capazes de tocar o mundo exterior com  a mágica  leveza da graça e do riso. No entanto, também ele viveu para amar só que nenhum amor foi definitivo e exclusivo, nenhum deles se sobrepôs à sua Arte, pelo contrário, a Arte, colocada ao serviço do Amor fez mais pelo Amor que todos os sentimentos dos apaixonados. A paixão com que escreveu foi a mesma com que amou e essa paixão também o arrastou numa grande mas lúcida ambição que o levou a negligenciar a fama a que tinha direito e que ele sabia que lhe era devida por mérito próprio. Exprimindo a sua decepção com a sociedade do seu tempo, o autor d’ O Vermelho e o Negro, tendo examinado minuciosamente as impressões que as paixões sociais lhe deixavam, concluiu que não reconhecia nelas quaisquer recompensas ou prazeres! Tinha-a frequentado e conhecido, fingira ter prazer no seu convívio (condição muitas vezes necessária para se não ser perseguido) e verificara que ninguém obtinha uma posição social proeminente à custa do mérito ou do estudo, que essa posição tinha de ser conquistada pela astúcia, pela hipocrisia e pela violência de cada um para consigo mesmo e, sobretudo, para com os outros. Stendhal conclui ainda  que nessa época, também  no plano literário, o ideal de fraternidade fora substituído pelo de compadrio e que seria essa uma das causas da falta de reputação literária de que o acusavam. Del Litto, em nota apensa às Oeuvres Intimes,  sobre a sociedade que se organizava à volta de 1825, definia-a, segundo  o Larousse do século XIX, como «formada por uma multidão de jovens inchados de orgulho e de pretensões ambiciosas, que pretendiam invadir todos os lugares, forçar a aquisição de reputações, violentar o sucesso em seu favor, com a condição de mutuamente se favorecerem». Reagindo ao pouco sucesso obtido pelo pintor Joseph-Desiré Court, Stendhal escreve em Memórias de um Turista que com M. Court isso se deve ao facto de ele não pertencer a nenhuma paróquia. A propósito do periódico genovês, Bibliothèque Britannique, o escritor declara que «este periódico nunca caiu num certo compadrio, essa chaga mortal da literatura e dos jornais de Paris». Sobre a imprensa parisiense, afirma que «mais cedo ou mais tarde os provincianos e os estrangeiros aperceber-se-ão que todos os seus artigos são ditados pelo compadrio». Na notícia autobiográfica que escreveu em Paris, no Hotel Favart, a 30 de Abril de 1837, e que constituía uma resposta ao jornalista  Jules Janin que lhe havia dito:«— Ah! que belo artigo faríamos sobre vós se estivésseis morto!», é com amarga ironia que o escritor confessa: «Henri Beyle, mais louco que nunca, pôs-se a estudar para se tornar num grande homem!» .Sobre Jules Janin, romancista e jornalista no Journal des Débats,  Stendhal tem este desabafo : «Em 1841 cultiva-se o estilo e não as ideias e são as ideias pobres que inventam o estilo». Mais explicito ainda, Stendhal, numa anotação feita a 18 de Janeiro de 1842, aproximadamente dois meses antes de morrer e assinando-a como Henri Beyle, aborda o espinhoso problema da falta de reputação adquirida com a sua obra e escreve no seu Diário: «Em 1842 não tenho reputação; além da grande razão que salta aos olhos e responde a esta censura que os meus amigos me fazem muitas vezes, eu descubro uma razão determinante que me fez, sem que eu o soubesse, caminhar: a vida literária tal como existe em 1840 é uma vida miserável. Ela desperta os mais desprezíveis instintos da nossa natureza e os mais férteis em infelicidades mesquinhas». Uma das  razão da amargura  do escritor devia-se em parte à cólera de Metternich por causa da sua obra Rome, Naples et Florence e que recusando-lhe o exequatur o impediu de tomar posse do cargo de cônsul em Trieste.

Reclamemos para nós a qualidade que o escritor considerava própria dos autores e dos poetas —  “a comprehensive soul” — , para relançarmos um breve olhar sobre a infeliz infância de Henri-Marie, uma das causas da sua prolífica vida sentimental. Os seus amores nasciam e cresciam lado a lado, apoiados uns nos outros, misturados como árvores que não tendo horizonte se agregam formando uma floresta inextricável. Ao lermos nas suas Oeuvres Intimes as impressões da sua infância, sobretudo a da fase que se seguiu à morte da sua adorada mãe, quase sufocamos ao darmo-nos conta que, sob essa catedral imensa de folhagem sempre renovada e florescente, uma criança busca incessantemente um eco, um simples eco já que a única voz de amor que lhe fora dado  conhecer se lhe havia tornado inaudível – a voz da senhora Henriette Gagnon, sua encantadora e muito amada mãe e leitora assídua e entusiasta de Dante, como nunca se esquece de assinalar. Stendhal afirma que com a morte dela, na flor da juventude e da beleza, começou para ele a sua vida moral. Em Vie de Henry Brulard escreve que «ao amá-la aos seis anos, eu tinha absolutamente o mesmo carácter que em 1828 ao amar furiosamente Alberthe de Rubempré». Esta confissão revela-nos que embora outros amores se tivessem enxertado nas primeiras forças amantes, jamais  destruíram a prioridade histórica do seu  primeiro sentimento amoroso .

O escritor define essa fase da sua vida como a da caça à felicidade. Stendhal inspirou-se em Madame Azur (Alberthe era prima de Delacroix e vivia na rue Bleue) para o personagem de Matilde de la Mole no Vermelho e Negro. A relação amorosa que se estabelecera entre os dois durou apenas seis meses mas Sanscrit, outro dos nomes dados por Stendhal a Alberthe devido ao gosto desta pelas ciências ocultas, foi adorada por ele apenas durante um único mês. Numa época em que lhe era tão necessária uma caminhada rumo à felicidade, sem que ela se tenha dado conta, a vida, que o privara da mãe em tenra idade, serviu-se de Sanscrit — que posteriormente o viria a trocar por Merimée e depois pelo seu conterrâneo Mareste — , para lhe oferecer uma emoção rara e tão intensa como a que ele havia sentido outrora ao beijar o rosto fresco e de uma perfeita serenidade de sua mãe a quem amou mais que tudo no mundo.
* Dante, A Divina Comédia – Purgatório. 

JOANA RUAS. Escritora portuguesa. Obras:

Na Guiné com o PAIGC, reportagem escrita nas zonas libertadas da Guiné em 1974, edição da autora, Lisboa, 1975;no jornal da Guiné-Bissau , Nô Pintcha, redige, em 1975, a página de literatura africana de língua portuguesa. Traduz textos inéditos de Amílcar Cabral escritos em língua francesa e recolhe na aldeia de Eticoga (ilha de Orangozinho, arquipélago dos Bijagós), a lenda da origem das saias de palha; Corpo Colonial, Centelha, Coimbra, 1981 (romance distinguido com uma menção honrosa pelo júri da APE; traduzido em búlgaro); Zona (ficção), edição da autora, Lisboa, 1984 (esgotado); Colaborou no Suplemento Literário do Diário Popular e,  na página literária do Diário de Lisboa, foi publicado  um seu trabalho de análise crítica intitulado O Lado Esquerdo da Noite sobre o romance de Baptista Bastos, Viagem de um Pai e de um Filho pelas Ruas da Amargura; na Revista cultural Algar numa edição da Casa Museu Fernando Namora em Condeixa, apresentou   um estudo sobre o romance Fogo na Noite Escura de Fernando Namora; colaborou com textos na página de Letras e Artes, Alma Nova, do jornal O Mirante, no Notícias de Elvas, no União, Quarto Crescente, Jornal do Sporting com poemas inéditos e com um trabalho de análise crítica sobre a narrativa dramática de Norberto Ávila, As Viagens de Henrique Lusitano; O Claro Vento do Mar(romance)  Bertrand Editora, Lisboa, 1996; Amar a Uma só Voz ( Mariana Alcoforado nas Elegias de Duíno), Colóquio Rilke, organizado pelo Departamento de Estudos Germanísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,  Edições Colibri, Lisboa, 1997 e publicado no nº 59 da  revista electrónica brasileira Agulha (www.revista.agulha.nom.br;  A Amante Judia de Stendhal (ensaio), revista O Escritor,  n.º 11/12, Lisboa, 1998; E Matilde  Dembowski ( ensaio sobre Stendhal), revista O Escritor, nº13/14, 1999 e revista electrónica (www.revista.agulha.nom.br e Triplov; A Guerra Colonial e a Memória do Futuro, comunicação apresentada no Congresso Internacional sobre a Guerra Colonial, organizado pela Universidade Aberta, Lisboa, 2000; A Pele dos Séculos (romance), Editorial Caminho, Lisboa, 2001;.Participou  com comunicações nas Jornadas de Timor da Universidade do Porto sobre cultura timorense e sobre a Língua Portuguesa em Timor na S.L.P. A sua poesia encontra-se dispersa por publicações como NOVA 2 (1975), um magazine dirigido por Herberto Helder; o seu poema Primavera e Sono com música de Paulo Brandão foi incluído por  Jorge Peixinho no 5º Encontro de Música Contemporânea promovido pela Fundação Gulbenkian e mais tarde incluído no ciclo Um Século em Abismo — Poesia do Século XX realizado no C.A.M.;  recentemente  publicou poesia nas seguintes publicações : Antologia da Poesia Erótica, Universitária Editora; Cartas a Ninguém de Lisa Flores e Ingrid Bloser Martins, Vega ; Na Liberdade, antologia poética, Garça Editores; Mulher, uma antologia poética integrada na colecção Afectos da Editora Labirinto; Um Poema para Fiama, uma antologia publicada pela Editora Labirinto; ; tem colaboração nas revistas  Mealibra,  revista de Cultura do Centro Cultural do Alto Minho e na  Foro das Letras revista da Associação Portuguesa de Escritores-Juristas  onde publicou Caderno de Viagem ao Recife . Na revista electrónica Triplov foi publicado um Roteiro sobre a sua obra, A Pele dos Séculos. Em 2008, a Editora Calendário publicou o seu romance histórico A Batalha das Lágrimas. Participou na 8ª Bienal  Internacional do Livro do Ceará onde proferiu uma palestra intitulada Aproximar o Distante, Do Estranho ao Familiar —  duas experiências: Timor-Leste e Guiné-Bissau.