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Timor, pelos olhos de Joana Ruas
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A propósito da edição de
A Batalha das Lágrimas, romance histórico de grande fôlego e estudo
sobre Timor Leste, falámos com Joana Ruas, sua autora, que se prestou a
fornecer alguma informação sobre si e sobre a sua a obra. |
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Joana Ruas, ao tempo em que viveu em Timor Leste |
Estela Guedes -
Joana, queres falar do título escolhido para o teu livro? A que batalha
se refere ele?
Joana Ruas - Colhi o título A Batalha das Lágrimas de um dos
livros que li, creio que teria sido o do coronel José Martinho que,
tendo registado com este nome um episódio de guerra, não o interpretou,
bastando-lhe ter referido que nesse episódio perdeu a vida o alferes
Francisco Duarte, um homem controverso, amado por portugueses e por
timorenses, fossem estes seus aliados ou seus inimigos.
Ruy Cinatti, que tive o privilégio de
conhecer em Timor, dizia-me que Francisco Duarte fazia já parte da
tradição oral timorense, havendo mesmo alguns poemas sobre ele.
Estela Guedes - Tenho estado a ler, seguindo nele
alguém que de certeza esteve em Timor no período escolhido por ti:
Francisco Newton, um naturalista muito subversivo, um espião que
trabalhou para Barbosa du Bocage, um dos fundadores e um dos presidentes
da Sociedade de Geografia de Lisboa. E isso leva-me a perguntar-te sobre
os pesos da História e da ficção n' A Batalha das Lágrimas. Achas
que estão equilibrados? Até onde foste na historicidade? Por exemplo,
Francisco Newton não figura no teu livro, mas pode andar por lá com nome
falso, manobra que ele aliás praticou regularmente. Chega a aparecer nos
textos científicos com o nome de um diplomata inglês que viveu em
Luanda, Frank Newton.
Joana Ruas - Não me lembro de ter encontrado, nos milhares de páginas
que li, o naturalista Francisco Newton, pois ter-me-ia desde logo
interessado pela sua personalidade. No entanto, na Quarta Parte deste
meu romance, intitulada Operações de Guerra, logo no capítulo I, página
410, se pode ler o seguinte trecho: «O médico, Dr. Gomes da Silva, que
havia muito tentava em vão aliciar Belarmino Lobo para a criação de um
Jardim Botânico em Dili, mesmo não sabendo do seu paradeiro, contava com
a ajuda de João Maurício para o convencer. Em vão. Belarmino Lobo não
queria ultrapassar o indeferimento do Governo da Metrópole em relação a
essa questão. Facultativo do quadro de Macau e Timor, o Dr. José Gomes
da Silva era conhecido pela sua defesa, baseado no estudo dos simples,
da terapêutica indígena. Nos finais dos anos 80 desse século, foi muito
comentada a representação feita ao Governo pelo presidente da Sociedade
de Geografia, Dr. Barbosa Du Bocage, para que o Dr. Gomes da Silva fosse
dispensado dos trabalhos médicos do quadro de saúde para se dedicar
exclusivamente ao estudo da flora colonial. O Governo indeferiu o
pedido, mas exemplares da flora de Macau e Timor foram por ele doados ao
Jardim Botânico de Coimbra. Nesse fim de tarde, o médico, lastimando a
ausência do brasileiro, aproveitava a ocasião para trocar com os
presentes alguns dados sobre a flora local».
Estela Guedes - Sim,
Bocage promoveu o estudo da flora e também da fauna local. E o peso da
História na ficção?
Joana Ruas - Quanto aos pesos entre a
História e a ficção, o que posso dizer é que antes da ficção eu tive
alguns anos de pesquisa. Foi à medida que li todas aquelas páginas que
os personagens se me foram impondo, quer porque estes autores os
consideravam heróis nacionais, fossem portugueses, goeses ou timorenses,
quer porque sendo gente obscura acedeu à História por infracção, isto é,
as suas vidas cruzaram-se com o Poder, passando a fazer parte dessa
pluralidade de vozes que se perdem no tempo, nos «sem nome» de que nos
fala Elias Canetti, nos vastos e anónimos como os definiu Rilke ou os
infames como os descreveu Michel Foucault quando os encontrou. «Vidas
breves, achadas a esmo em livros e documentos», como ele as define em
La Vie des Hommes Infâmes.
Não me limitei a dar a correlação de poder
e das forças de resistência, como procurei dar o clima moral e social da
época através de escritores como Conrad, Rimbaud, Venceslau de Moraes,
Camilo Pessanha, Stevenson, sem esquecer a referência à Campanha de
Canudos que terminou em 1897, e que nos foi relatada em Sertões
por Euclides da Cunha, um escritor que o Brasil projectou para o século
XXI com toda a justiça.
Estela Guedes - Foi
fácil a reconstituição histórica?
Joana Ruas - Não, reconstituir a história
dos vencidos através dos relatos dos seus vencedores é um
quebra-cabeças. Os nomes têm por vezes 3 e 4 grafias diferentes,
surgem-nos ao acaso ou de relance num episódio de guerra, o que acontece
com as mulheres a quem raramente são fixados os nomes. Com uma excepção
de vulto: a rainha de Cová, D. Margarida Ribeiro Pires. Uma vida para
ser lida, como diria João Guimarães Rosa.
Não te posso dizer se o meu texto está ou
não equilibrado. Tenho a noção de que fui até onde me era possível e
alegrar-me-ei muito se depois de mim, alguém, excedendo-se, me
ultrapasse. E volto a Rilke para, como ele, afirmar que crescer é ser
profundamente vencido por uma força sempre maior. |
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Joana Ruas em Timor Leste |
Estela Guedes - O teu
relato é muito pormenorizado, quer do ponto de vista histórico, quer da
recriação de lugares, o que pressupõe muita bibliografia, de um lado, e
conhecimento pessoal, de outro. Queres falar das tuas viagens?
Joana Ruas - Eu vivi em Timor-Leste durante três anos. Deste modo não
posso deixar de sentir que, fazendo parte das minhas viagens, a terra e
as suas gentes também fazem parte da minha vida. Para bem e para mal,
possuo uma consciência sentimental, como Stendhal.
Rui Cinatti, sempre que viajava para a
Ponta Leste, visitava-me e era para mim motivo de grande alegria tomar
chá com ele na messe de oficiais ou na minha casa. Eu tive uma casa em
Viqueque e, mais tarde, em Ossú, perto do monte conhecido como Mundo
Perdido.
Estela Guedes - Em princípio, o romance não
precisa de se pôr à prova, apresentando referências bibliográficas.
Porém o teu livro é um romance muito particular, que solicita a atenção
do leitor para esses bastidores. Que leituras fizeste e onde?
Joana Ruas - Posso afirmar que li quase tudo o que os nossos arquivos se
guarda sobre a presença portuguesa em Timor-Leste, no que se refere ao
período que vai de 1875 a 1910, desde a Revista Militar à Revista do
Exército e da Armada, aos Boletins Militares, da Sociedade de Geografia
e os das Colónias, os Annaes da Sociedade de Geografia, os Annaes do
Conselho Ultramarino, o Arquivo da Marinha, o Arquivo Histórico
Ultramarino, enfim as obras do coronel José Martinho, de Gonçalo Pimenta
de Castro, de Armando Pinto Correia, de Hélio Felgas, de António Metelo,
de Frazão de Vasconcelos, de Luna de Oliveira, de Teófilo Duarte, de
Jaime do Inso, presentes na Biblioteca Nacional, os Annaes das Missões e
os jornais como o Diário de Notícias e o Diário Popular, pois seguiam
com atenção o que se desenrolava então nessa possessão portuguesa.
Estela Guedes - Joana, sei, porque o disseste, que
este é o primeiro volume de uma trilogia. O que tens então preparado
para a completar?
Joana Ruas - Este ano será publicado o segundo volume desta trilogia
A Pedra e a Folha: Crónicas Timorenses. Crónicas Timorenses
-- estas crónicas abrangem um período que vai de 1910 a 1965. Dei à
progressão dessa realidade complexa a forma de contos por se basearem
em documentação escrita e oral. São estas as crónicas: D. Manuel dos
Remédios; O Cofre e a Espada; Folhas soltas no bosque e Fulan-Mutin (Branca-
Flor).
Estela Guedes - É
portanto Timor o espaço privilegiado do teu livro, mas também já
escreveste sobre a Guiné-Bissau. Que relação tens tido com as nossas
antigas possessões ultramarinas, para usar uma expressão - possessões
- em vigor no Portugal das grandes empresas movidas pela Sociedade de
Geografia de Lisboa?
Joana Ruas - Eu vivi em Angola até aos 15 anos, altura em que vim para
Portugal estudar, como era norma nas famílias burguesas. Fiz amizades
nas escolas e colégios que frequentei e foi para resgatar parte da
memória da minha infância que fui à Guiné-Bissau.
Agradeço-te, querida Maria Estela, toda a
atenção que tens dado no Triplov ao que escrevo. |
A BATALHA DAS LÁGRIMAS
A Pedra e a Folha
Joana Ruas
Calendário de Letras
Editora
2008, Vila Nova de
Gaia
754 pp. |
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Joana Ruas. Na Guiné com o PAIGC, reportagem escrita nas zonas libertadas da Guiné em 1974, edição da autora, Lisboa, 1975;no jornal da Guiné-Bissau , Nô Pintcha, redige, em 1975, a página de literatura africana de língua portuguesa. Traduz textos inéditos de Amílcar Cabral escritos em língua francesa e recolhe na aldeia de Eticoga (ilha de Orangozinho, arquipélago dos Bijagós), a lenda da origem das saias de palha; Corpo Colonial, Centelha, Coimbra, 1981 (romance distinguido com uma menção honrosa pelo júri da APE; traduzido em búlgaro); Zona (ficção), edição da autora, Lisboa, 1984 (esgotado); Colaborou no Suplemento Literário do Diário Popular e, na página literária do Diário de Lisboa, foi publicado um seu trabalho de análise crítica intitulado O Lado Esquerdo da Noite sobre o romance de Baptista Bastos, Viagem de um Pai e de um Filho pelas Ruas da Amargura; na Revista cultural Algar numa edição da Casa Museu Fernando Namora em Condeixa, apresentou um estudo sobre o romance Fogo na Noite Escura de Fernando Namora; colaborou com textos na página de Letras e Artes, Alma Nova, do jornal O Mirante, no Notícias de Elvas, no União, Quarto Crescente, Jornal do Sporting com poemas inéditos e com um trabalho de análise crítica sobre a narrativa dramática de Norberto Ávila, As Viagens de Henrique Lusitano; O Claro Vento do Mar(romance) Bertrand Editora, Lisboa, 1996; Amar a Uma só Voz ( Mariana Alcoforado nas Elegias de Duíno), Colóquio Rilke, organizado pelo Departamento de Estudos Germanísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1997 e publicado no nº 59 da revista electrónica brasileira Agulha (www.revista.agulha.nom.br; A Amante Judia de Stendhal (ensaio), revista O Escritor, n.º 11/12, Lisboa, 1998; E Matilde Dembowski ( ensaio sobre Stendhal), revista O Escritor, nº13/14, 1999 e revista electrónica (www.revista.agulha.nom.br e Triplov; A Guerra Colonial e a Memória do Futuro, comunicação apresentada no Congresso Internacional sobre a Guerra Colonial, organizado pela Universidade Aberta, Lisboa, 2000; A Pele dos Séculos (romance), Editorial Caminho, Lisboa, 2001;.Participou com comunicações nas Jornadas de Timor da Universidade do Porto sobre cultura timorense e sobre a Língua Portuguesa em Timor na S.L.P. A sua poesia encontra-se dispersa por publicações como NOVA 2 (1975), um magazine dirigido por Herberto Helder; o seu poema Primavera e Sono com música de Paulo Brandão foi incluído por Jorge Peixinho no 5º Encontro de Música Contemporânea promovido pela Fundação Gulbenkian e mais tarde incluído no ciclo Um Século em Abismo — Poesia do Século XX realizado no C.A.M.; recentemente publicou poesia nas seguintes publicações : Antologia da Poesia Erótica, Universitária Editora; Cartas a Ninguém de Lisa Flores e Ingrid Bloser Martins, Vega ; Na Liberdade, antologia poética, Garça Editores; Mulher, uma antologia poética integrada na colecção Afectos da Editora Labirinto; Um Poema para Fiama, uma antologia publicada pela Editora Labirinto; ; tem colaboração nas revistas Mealibra, revista de Cultura do Centro Cultural do Alto Minho e na Foro das Letras revista da Associação Portuguesa de Escritores-Juristas onde publicou Caderno de Viagem ao Recife . Na revista electrónica Triplov foi publicado um Roteiro sobre a sua obra, A Pele dos Séculos. Em 2008, a Editora Calendário publicou o seu romance histórico A Batalha das Lágrimas. Participou na 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará onde proferiu uma palestra intitulada Aproximar o Distante, Do Estranho ao Familiar — duas experiências: Timor-Leste e Guiné-Bissau. |
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