Salvação e Justiça por Joana Ruas

Comunicação apresentada ao filo-café "Salvação e Justiça". Incomunidade, Orfeão do Porto, 28 de Fevereiro de 2009.
Incomunidade: http://incomunidade.blogspot.com/

Os que acreditam que a Lei pode libertar os homens dos constrangimentos que os subjugam, assentam   no Estado de Direito o fundamento do laço social, condição de uma comunidade coesa. No Êxodo, o objectivo do debate entre Moisés e o Faraó,  é o do direito das pessoas e dos povos a disporem de si mesmos. A Lei, dentro do jurídico, utiliza o processo com a finalidade de se impor e de se fazer respeitar. A Humanidade que prescinde da Lei que lhe dá formas,converte-se numa sociedade informe.A integração da população local no sistema imperial, efectuava-se  através de actos da administração colonial e pela incorporação no Exército.Sob domínio colonial, as pessoas  só tinham acesso à Lei como autores de uma infracção ou de uma transgressão pelas quais deveriam ser condenadas e punidas. Entre as que eram  integradas, uma infracção que as colocasse sob a alçada da Lei  podia levar à errância, ao exílio ou à morte. Estar em processo implicava que perante a Lei todos fossem  considerados culpados ou susceptíveis de o ser, tal como no-lo deram nas suas obras Tolstoï e Kafka . O estado de espírito que enformava esse conceito, na ordem clássica, ainda subsiste nos nossos dias em que perante a Lei ainda há, na prática,  distinção entre os cidadãos. Hoje ainda se condena alguém perante a opinião pública desde que, por manipulações processuais, o transformem em arguido. Era esta a ordem jurídica vigente no Império Austro-Húngaro tal como o descreveu Kafka em O Processo, o mesmo se passando nos impérios coloniais em que o edifício social estava fundado sobre a discriminação e a injustiça. Na cultura ocidental, devido ao complexo de culpa, o homem em processo vivia dilacerado entre   a desproporção  do castigo que lhe era aplicado e a impotência em medir a sua falta. Em sociedades regidas pelo interdito e pelos tabus, a noção de sujeito em processo é extremamente penosa para o seu entendimento. No meu livro A Batalha das Lágrimas, Amysse, um Hindu baniano* de Diu, pertencia ao número dos que estavam destinados a não deixar rasto da sua existência. Se aqui o temos hoje, deve-se ao facto de, através de uma infracção cometida em Macau onde prestava serviço no Exército,  ter tido um encontro com o poder. Foram estes  os acontecimentos que  levaram à   prisão  Amysse, o eterno enamorado: embora fosse soldado, não tendo o seu espírito sido domado pela disciplina militar, entendeu que não estando em guerra, nada justificava que não fosse dar um passeio com a namorada. Amysse não se apresentou no quartel na hora que lhe fora marcada. Sendo soldado de infantaria, torno-se réu  por ausência ilegítima mas qualificada de deserção simples em tempo de paz e sentenciado a sofrer a pena de 4 anos de deportação militar na província de Moçambique. Como em Goa e em Moçambique havia revoltas entre os soldados,Amysse foi mandado para Dili onde chegou a 7 de Novembro de 1893. Em  Timor esperou pelo recurso da sentença. O seu nome escrito no papel parecia mais definitivo que a sua pessoa . Era então um homem sem destino certo, suspenso, viajando de papel em papel, de barco em   barco, de juiz em juiz, de tribunal em tribunal, bem longe se estavam decidindo e ele esperando para saber o que havia de ser, se um degredado ou um fugitivo. Tendo-se dado conta que uma vez iniciado o processo, este jamais teria fim , o processo não se destinava já a salvá-lo mas a obter a prorrogação de uma condenação que se queria perpétua, Amysse, em plena guerra,  foge com uma rapariga prisioneira. Tendo fugido, ia sem susto mas também sem destino. A justiça pode  salvar quando devolve ao injustiçado o horizonte da sua vida. Não foi o seu caso. Quem assistiu à morte arbitrária de ambos , entendeu que a Lei já não estava do lado de quem governava  pois a Lei não justifica a perversidade, a lei convida a dar a vida e não a morte. 









A BATALHA DAS LÁGRIMAS

A Pedra e a Folha

Joana Ruas

Calendário de Letras Editora

2008, Vila Nova de Gaia

754 pp.

Joana Ruas. Na Guiné com o PAIGC, reportagem escrita nas zonas libertadas da Guiné em 1974, edição da autora, Lisboa, 1975;no jornal da Guiné-Bissau , Nô Pintcha, redige, em 1975, a página de literatura africana de língua portuguesa. Traduz textos inéditos de Amílcar Cabral escritos em língua francesa e recolhe na aldeia de Eticoga (ilha de Orangozinho, arquipélago dos Bijagós), a lenda da origem das saias de palha; Corpo Colonial, Centelha, Coimbra, 1981 (romance distinguido com uma menção honrosa pelo júri da APE; traduzido em búlgaro); Zona (ficção), edição da autora, Lisboa, 1984 (esgotado); Colaborou no Suplemento Literário do Diário Popular e,  na página literária do Diário de Lisboa, foi publicado  um seu trabalho de análise crítica intitulado O Lado Esquerdo da Noite sobre o romance de Baptista Bastos, Viagem de um Pai e de um Filho pelas Ruas da Amargura; na Revista cultural Algar numa edição da Casa Museu Fernando Namora em Condeixa, apresentou   um estudo sobre o romance Fogo na Noite Escura de Fernando Namora; colaborou com textos na página de Letras e Artes, Alma Nova, do jornal O Mirante, no Notícias de Elvas, no União, Quarto Crescente, Jornal do Sporting com poemas inéditos e com um trabalho de análise crítica sobre a narrativa dramática de Norberto Ávila, As Viagens de Henrique Lusitano; O Claro Vento do Mar(romance)  Bertrand Editora, Lisboa, 1996; Amar a Uma só Voz ( Mariana Alcoforado nas Elegias de Duíno), Colóquio Rilke, organizado pelo Departamento de Estudos Germanísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,  Edições Colibri, Lisboa, 1997 e publicado no nº 59 da  revista electrónica brasileira Agulha (www.revista.agulha.nom.br;  A Amante Judia de Stendhal (ensaio), revista O Escritor,  n.º 11/12, Lisboa, 1998; E Matilde  Dembowski ( ensaio sobre Stendhal), revista O Escritor, nº13/14, 1999 e revista electrónica (www.revista.agulha.nom.br e Triplov; A Guerra Colonial e a Memória do Futuro, comunicação apresentada no Congresso Internacional sobre a Guerra Colonial, organizado pela Universidade Aberta, Lisboa, 2000; A Pele dos Séculos (romance), Editorial Caminho, Lisboa, 2001;.Participou  com comunicações nas Jornadas de Timor da Universidade do Porto sobre cultura timorense e sobre a Língua Portuguesa em Timor na S.L.P. A sua poesia encontra-se dispersa por publicações como NOVA 2 (1975), um magazine dirigido por Herberto Helder; o seu poema Primavera e Sono com música de Paulo Brandão foi incluído por  Jorge Peixinho no 5º Encontro de Música Contemporânea promovido pela Fundação Gulbenkian e mais tarde incluído no ciclo Um Século em Abismo — Poesia do Século XX realizado no C.A.M.;  recentemente  publicou poesia nas seguintes publicações : Antologia da Poesia Erótica, Universitária Editora; Cartas a Ninguém de Lisa Flores e Ingrid Bloser Martins, Vega ; Na Liberdade, antologia poética, Garça Editores; Mulher, uma antologia poética integrada na colecção Afectos da Editora Labirinto; Um Poema para Fiama, uma antologia publicada pela Editora Labirinto; ; tem colaboração nas revistas  Mealibra,  revista de Cultura do Centro Cultural do Alto Minho e na  Foro das Letras revista da Associação Portuguesa de Escritores-Juristas  onde publicou Caderno de Viagem ao Recife . Na revista electrónica Triplov foi publicado um Roteiro sobre a sua obra, A Pele dos Séculos. Em 2008, a Editora Calendário publicou o seu romance histórico A Batalha das Lágrimas. Participou na 8ª Bienal  Internacional do Livro do Ceará onde proferiu uma palestra intitulada Aproximar o Distante, Do Estranho ao Familiar —  duas experiências: Timor-Leste e Guiné-Bissau.