Quando morava na cidade,
sempre que acordava,
a primeira coisa que fazia
era apagar todos os sonhos da pele.
Tomava umas vitaminas,
aplicava-se na adequação
do corpo à combustão.
Ameaçado pelo ruído, pelos gases,
pelos rostos contraídos, circunspectos,
punha-se a salvo num sorriso encenado.
Depois, concentrava-se nesse sorriso
até ao final do dia.
Era muito talentoso
na forma como fazia valer
as suas proposições.
Alguns exercícios de relaxação
facilitavam-lhe, em grande medida,
o sucesso. Era um sucesso
de pasta na mão, transportes públicos,
passado em fuga, futuro à vista.
Era sucesso de economista.
Quando morava na cidade,
tinha sempre de prevenção
um airbag enfiado no peito.
Uma vez, no metropolitano,
aconteceu-lhe ser insultado
por um desses falhados na vida.
Embateu contra o insulto,
accionando o balão da indiferença.
Regressou a casa sem mazelas no corpo,
à excepção de um buraco na língua.
Cantava canções e ria e corria,
estava sempre pronto para mais um dia.
Às vezes julgava-se cobarde,
mas depois sentava-se a escrever
e crescia dentro de si
um senso de heroísmo quase histérico.
Tinha a sensação de que
quando morava na cidade,
os sentimentos estavam
mais devidamente engarrafados
nos músculos, nos nervos, nas articulações.
Isto foi antes de olhar para os pés
como quem olha para o céu,
antes da coluna se ter quebrado
de modo irreversível.
Isto foi antes dum muro de cansaço
se erguer à sua volta.
Antes da dor lhe ter obstruído
a vista para o rio, antes de ter escorregado
no mais glorioso dos seus dias.
Isto foi antes do dia em que a sorte
lhe bateu à porta da fome.
Hoje, mora numa espécie de dança
parada. Numa queda sem fim.
Olha para trás do corpo e vê:
um coração acelerado num homem lento,
um pulmão com setenta vezes sete
metros de fundura. Vê um poço vazio.
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Henrique Manuel Bento Fialho nasceu em 1974. É licenciado em Filosofia. Publicou, entre outros, os livros antologia do esquecimento (2003), Estórias Domésticas & Outros Problemas (2006) e O Meu Cinzeiro Azul (2007). Tem colaboração dispersa pelas revistas Aullido (Espanha), Big Ode, Saudade e Sulscrito. Está representado em algumas antologias, tais como Cerejas (2004), Canto de Mar (2005), Um Poema Para Fiama (2007) e Contos de Algibeira (Brasil, 2007). Faz parte do corpo editorial da revista on-line «Minguante» (http://minguante.com/). |