2.11.05
Quase a abrir o Livro do Desassossego, Fernando Pessoa – mais propriamente Bernardo Soares – elogia a prosa em detrimento do verso. É preciso algum cuidado quando se fala das pessoas que Pessoa arquitectou (espécie de representação, pelo excesso, das manobras do pensamento). Da boca do poeta saíram imensas ideias contraditórias, paradoxos absurdos, vozes sobrepostas, uma imensidão de personalidades, mais ou menos divergentes, confluindo para o Ser: Pessoa. Há qualquer coisa de tragicamente exagerado nisto tudo. Porém há também a inquietante exemplaridade do excesso. Pensemos, para já, no dualismo inerente às seguintes citações: a poesia é, por certo, qualquer coisa de infantil, de mnemónico, de auxiliar e inicial; a poesia dirige-se à nossa alma profunda; a poesia começa a mentir na sua própria estrutura; o verso é uma passagem da música para a prosa, etc... Prosa e verso aparecem como dois mundos diversos: cada um com a sua função, cada qual com as suas características intrínsecas. O problema hoje reside na falta de sentido dessa distinção. Afirmá-lo não deve ser interpretado como uma negação desse sentido. Vejamos: se grande parte da poesia que se escreve hoje em dia fosse publicada em prosa ninguém daria pela diferença. O verso transformou-se numa espécie de resquício dum mundo quase perdido. É esse resquício que demarca uma linguagem ancestral de uma outra, por certo mais actual e conveniente, com a qual não se pretende deixar confundir. «A linguagem faz-se para que nos sirvamos dela, não para que a sirvamos a ela», disse Fernando Pessoa no ensaio intitulado A Língua Portuguesa. Lemos muitos dos poemas de hoje como se estivéssemos a ler pequenos testemunhos, confissões, fábulas, relatos, desabafos, inquietações, aforismos, mini-histórias, etc. Há um aspecto formal que não deve ser desprezado, é certo. Mas em nome de quê? Podemos falar dessa coisa híbrida - prosa poética. Talvez fizesse mais sentido um outro conceito - poesia prosaica. «A prosódia, já alguém o disse, não é mais que função do estilo» (idem). O segredo, parece-me, está no ritmo. Mais uma vez a respiração. Não sei se isso é explicável ou entendível, mas parece-me fazer sentido a distinção entre prosa e poesia apelando à noção de ritmo. Nota-se frequentemente nos poetas que escrevem prosa uma inclinação para a “cadência poética” que, a bem dizer, é cada vez mais dificilmente destrinçável da “cadência prosaica”. A diferença reside sobretudo na dinâmica que se quer imprimir ao discurso. O aspecto gráfico não determina tanto essa dinâmica, como parece ser o caso de um certo empolgamento. Não é problema de liberdade/contenção, não é questão de gramática, etc. «Cada um tem direito a escrever na ortografia que quiser; que, tecnicamente, pode haver tantas ortografias quantos há escritores» (idem). Eu diria, por exemplo, que a prosa de Bernardo Soares está mais próxima de um empolgamento poético do que daquela serenidade sentimental (do ponto de vista do ritmo) que define a prosa mais esclarecida. Podemos também substituir o termo serenidade por retraimento. Daí que, por razões provavelmente diferentes das de Bernardo Soares, me incline a concordar com ele quando afirma: «Um ritmo ocasional de verso não estorva a prosa; um ritmo ocasional de prosa faz tropeçar o verso». É que um ritmo ocasional de prosa remete a poesia para um corpo adulto, distante da espontaneidade infantil que agrada à poesia. A poesia é, sem dúvida, qualquer coisa de infantil. É nesse lugar iniciático que faz sentido colocarmos a poesia, pois ao mesmo tempo que nos convoca ao excesso ela protege-nos da censura dos tiranos da gramática. Ela liberta-nos da ditadura do sentido e alimenta-se da violência imagética das crianças. É precisamente aí que reside a sua força, a sua essência e diferença. |
Henrique Manuel Bento Fialho nasceu em 1974. É licenciado em Filosofia. Publicou, entre outros, os livros antologia do esquecimento (2003), Estórias Domésticas & Outros Problemas (2006) e O Meu Cinzeiro Azul (2007). Tem colaboração dispersa pelas revistas Aullido (Espanha), Big Ode, Saudade e Sulscrito. Está representado em algumas antologias, tais como Cerejas (2004), Canto de Mar (2005), Um Poema Para Fiama (2007) e Contos de Algibeira (Brasil, 2007). Faz parte do corpo editorial da revista on-line «Minguante» (http://minguante.com/). |