HENRIQUE FIALHO...

Três textos e Três poemas - Index

Dicotomias

17.1.06

Os alicerces do pensamento ocidental são as dicotomias. A dicotomia alma/corpo, a dicotomia bem/mal, a dicotomia amor/ódio, a dicotomia senhor/escravo, a dicotomia regra/excepção, etc. A romaria há muito está montada: dão-nos a infinidade em troca de uns tostões de miséria. Libertar a alma significa, desde logo, obstruir o corpo. Pode-se lá libertar seja o que for pela obstrução do seu oposto? Dois erros: pensar que o corpo pode ser o oriente da alma, julgar que a alma é o oriente do corpo. Tem-se medo de estar ao acaso, de se ser fruto das contingências. Tem-se medo de ser. Por isso, só por isso, tem-se alma. O filósofo dizia que para desencarcerar a alma do corpo é necessário conhecer. Conhecer trazia-nos uma paz que se confundia com liberdade. Hoje em dia, conhecer só traz chatices. Se calhar naquele tempo já era assim. Reza a história que por ser recto foram ao recto do filósofo. Jesus, o Cristo, acabou na cruz. A história encarregou-se de arrumar nos sacos da santidade esses fogachos de gente-corpo. Eles agora são só alma: numa pega, a ética; na outra, a estética. Mais uma dicotomia? Não. Para Cristo, só assim faz sentido, há-de ter sido um prazer terem-no pregado na cruz. E ao filósofo, só assim faz sentido, deve ter dado uma tesão imensa beber a cicuta. Soube-lhe a vinho. O problema hoje é outro: anda tudo muito doído com a dor. Já ninguém tem prazer no sacrifício. Para o bem e para o mal a religião chama-se hoje economia, a santidade metamorfoseou-se em fama, Deus dá pelo nome de dinheiro. No meio disto tudo, a liberdade, estro da indignação, é sonho, é utopia, é poesia. José António Almeida compara os poetas aos forcados: «são sempre amadores e representam a parte «pobre» e mais genuinamente portuguesa do espectáculo». Mas há poetas que não entendem isso, não se conformam. Palhaços pobres, olham para os palhaços ricos com inveja e, diria mesmo, ansiedade. Esquecem-se apenas que ambos são palhaços. Temos assim que a distribuição dos lugares pela assistência não equivale à assunção humilde da nossa incomensurável insignificância. O encómio ambicionado, ainda que efémero, o aplauso elogioso, ainda que sentado, propõe ao corpo o êxtase da alma. Entregam-se então os artistas ao ofício do conflito. A troca de galhardetes será o método ao dispor. Miguel Ângelo já morreu daqui a nada há quinhentos anos. Deixou-nos numa capela a consciência da nossa ilimitada miséria, mesmo a daqueles que ficam a uma unha do divino; outorgou-nos, Miguel Ângelo, um sítio que se inclina para a eternidade até que esta seja esmagada pela morte. Devoto da alienação, ele escapou às dicotomias. Não se deixou estratificar. «Feliz de estar só diante da beleza, sem a forçada companhia dos que lhe eram inferiores, sem ter de lhes ouvir os remoques absurdos, as graças deploráveis».- conta-nos Agostinho da Silva. Isolava-se, pensava-se inferior aos outros, reuniu-se consigo próprio em conflituosas altercações da intimidade. Prossegue o ensaísta português: «tudo quanto era mesquinho, pobre, o fazia sofrer»,«a calúnia, a inveja, a estreiteza de concepções abatiam-no rapidamente». Que pensar de Miguel Ângelo, entregue ao prazer da sua dor, escapado à lógica do poder, alienado, esvaído para dentro duma obra em sacrifício? Nosso consolo derradeiro. Já não há. Sumiu. Evaporou-se. A mística agora é outra. A ironia agora é o que se trava no pulmão. Porque já ninguém está disposto a esculpir a pedra quando à mão de semear tem paus de plasticina. Disse ninguém? Perdoem-se-me os modos de dizer. O que eu queria dizer é que só o Zé-ninguém prefere a plasticina à pedra por esculpir.

Do livro “O meu cinzeiro azul”

Henrique Manuel Bento Fialho nasceu em 1974. É licenciado em Filosofia. Publicou, entre outros, os livros antologia do esquecimento (2003), Estórias Domésticas & Outros Problemas (2006) e O Meu Cinzeiro Azul (2007). Tem colaboração dispersa pelas revistas Aullido (Espanha), Big Ode, Saudade e Sulscrito. Está representado em algumas antologias, tais como Cerejas (2004), Canto de Mar (2005), Um Poema Para Fiama (2007) e Contos de Algibeira (Brasil, 2007). Faz parte do corpo editorial da revista on-line «Minguante» (http://minguante.com/).

Entrada no TriploV: Abril de 2008