8.9.05
A personalidade intempestiva de Caravaggio atingiu proporções dramáticas nos últimos quatro anos da sua vida. Na sequência de uma acalorada querela, o pintor italiano assassinou o seu oponente. Seria o culminar de uma relação difícil com a lei, dos quais são notícia vários episódios de fugas, roubos, etc. Viria a morrer exilado, numa evasão física que, de certa forma, encorpou a sua atitude espiritual ao longo de toda a sua vida. Os aspectos cruéis do mundo, transfigurou-os Caravaggio nos seus trabalhos. A crueldade, todo um imaginário colectivo erigido em torno de mitos trágicos e violentas alegorias, estão patentes nas suas obras. Esses mitos poderão ser entendidos como efeito da realidade (objecto) sobre/dentro do sujeito. Mais tarde dirá Artaud: «Tudo o que é acção é crueldade». Caravaggio encontrava os seus modelos junto das pessoas humildes, em tabernas, nas ruas de Roma, onde a realidade surdia como forma última de uma existência dolorosa, visceral, musculada no seu lado mais (de)cadente. Pôr à prova toda a nossa vitalidade e confrontar-nos com todas as nossas possibilidades, como queria Artaud, foi o que Caravaggio fez 400 anos antes do autor de O Teatro da Crueldade. Não são poucos os trabalhos de Caravaggio onde é atribuída às figuras aparentemente mais frágeis uma força e furor olímpicos. De modo mais ou menos explícito, esse aspecto manifesta-se em múltiplos pormenores. Não se trata apenas de fazer com que certas situações profundamente trágicas, bárbaras, angustiantes, partes de uma história ou mitologia comuns, adquiram uma certa componente estética que acaba sempre por lhes reduzir a sua dimensão aterradora e, de certa maneira, pedagógica. Antes pelo contrário. Nesses aspectos, a obra de Caravaggio como que deu forma ao polémico conceito aristotélico de catarse. Na Poética, quando define tragédia, Aristóteles afirma que tal género «suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções». Independentemente do que queiramos entender por este conceito de purificação, parece-me que, em qualquer dos casos, ele encaixa convenientemente. Há nos trabalhos do pintor italiano um impulso purificador, no sentido de revestimento psíquico por meio do qual se efectiva uma purgação criativa. A função catártica da arte, como motivo e meio e fim expressivos, bastas vezes diminuída e secundada, possui substancial relevância. O mesmo acontece, em certos casos, na poesia. Não me parece legítimo especular sob os aspectos de origem psicanalítica de uma obra, mas já me parece fazer sentido uma interrogação sobre os intentos libertadores da arte – a arte como libertação, expurgação, assassínio, esquecimento, catarse, esvaziamento -, conquanto tais intenções possam ser inerentes à adversidade existencial que funda qualquer obra. Adversidade essa criadora da situação que propicia no âmago do artista a emergência do seu trabalho. |
Henrique Manuel Bento Fialho nasceu em 1974. É licenciado em Filosofia. Publicou, entre outros, os livros antologia do esquecimento (2003), Estórias Domésticas & Outros Problemas (2006) e O Meu Cinzeiro Azul (2007). Tem colaboração dispersa pelas revistas Aullido (Espanha), Big Ode, Saudade e Sulscrito. Está representado em algumas antologias, tais como Cerejas (2004), Canto de Mar (2005), Um Poema Para Fiama (2007) e Contos de Algibeira (Brasil, 2007). Faz parte do corpo editorial da revista on-line «Minguante» (http://minguante.com/). |