Pode parecer pouco “patriótico”aplaudir a passagem do sentimento de Lusitanidade para o de Lusofonia. Obviamente que não, se verificarmos que foram a língua e a cultura da nação portuguesa que ajudaram a criar novos mundos, mantendo com eles,durante séculos, um relacionamento estreito que,como todos os relacionamentos duradouros, tem conhecido momentos tanto positivos como negativos, o que só confirma o seu carácter de autenticidade, tornando possível criar-se uma família linguística.
Vem de bem longe esse relacionamento, pois é de séculos, desde que em 1415 começámos em Ceuta, seguindo-se a Madeira, as Canárias, os Açores, o Cabo Bojador, o Cabo Branco, CVerde, Costa da Guiné, Fernando Pó, S.Tomé e Príncipe, Ano Bom, S Jorge da Mina , Cabo Lobo, Rio Zaire, Congo, Angola, Benim, Cabo Negro, o Preste João, o Cabo da Boa Esperança, o Labrador, a Índia, Moçambique, a Florida, o Brasil, a Terra Nova, Samatra e Malaca, China, Timor, Ceilão, Califórnia, Japão, e parece provado que também as terras Australianas, para referir os pontos mais importantes… E tudo isto aportado até ao final do século XVI !
É que, desde muito cedo, tivemos a ideia fixa de construir um Império, e , na realidade o conseguimos, the first and the last Empire, como disse Toynbee.
Queria Vieira que fosse religioso,que fosse cultural preferia Pessoa, sem Imperador,
sentenciou Agostinho da Silva, porque agora já não fazia sentido um a mandar nos outros, pois as antigas colónias são hoje nações soberanas, sendo, em consequência, preferível, concluímos, pela actual mentalidade e estrutura, chamar-lhe Lusofonia, porque comunidade fundada na língua portuguesa, tornada por vontade de todos sua língua materna ou oficial . E porquê?
Porque em todas as navegações e portos atrás referidos, nas naus dos Vascos, Cabrais, Albuquerques ou Castros, viajaram sempre três passageiros “clandestinos”: a Língua, a Religião, a Cultura. Regressados navegadores, conquistadores, mercadores, eles ficaram até hoje, resistindo, misturando-se, adaptando-se, criando até culturas miscigenadas…
Dos três, o que mais profunda e duradouramente permanece é a Língua, porque ela não obriga a nada e tudo permite, porque falar na mesma língua é poder dialogar, e dialogar é
possibilitar o que os interlocutores quiserem.
Assim, as várias nações lusófonas podem estabelecer entre si acordos linguísticos,
económicos, culturais, religiosos, políticos etc. que quiserem.
Quanto à Língua, pois é dela que nos ocupamos neste Fórum, cada país lusófono a vai afeiçoando à sua cultura, pois são não só legítimas, mas também enriquecedoras as diversas variantes actualmente existentes – a portuguesa, a brasileira, a galega, e futuramente, por certo, a angolana, a moçambicana, etc… -, como”normas cultas”. Normas estas que integram uma mesma “língua de cultura”, assim definida por Celso Cunha e outros linguistas em notáveis “Diretrizes”dirigidas aos professores brasileiros de português, em 1986 : “a que oferece uma feição universalista, aos seus milhões de usuários, cada um do quais pode preservar, ao mesmo tempo, usos nacionais, locais,
regionais, setoriais, profissionais”.
Mas não só as variantes, como tais, enriquecem a língua comum, também as importações e exportações de umas línguas e culturas para as outras, como as estudaram
eruditos como David Lopes, Mons. Sebastião Dalgado, Visconde de Santarém, Georges le Gentil, Alexandre Hamilton, Buchanan, Marius Valkhoff, Sebeock…
Variantes que também enriquecem a língua no modo de a afeiçoar às próprias culturas na pronúncia, no vocabulário, no estilo, como bem o explicou Manuel Ferreira dizendo que os países lusófonos ”partiram do princípio de que a língua é um facto cultural e os factos culturais começam por pertencer a quem os produz, é certo, mas, a partir daí deixam de ter dono: são de quem os quiser ou tiver necessidade de os utilizar.
Reapropriaram-se da língua portuguesa como se deles fosse. Assumiram-na com toda a dignidade e naturalidade, e agora reintroduzem-na por todo o seu espaço nacional, privilegiando-se, difundindo-a, dando-lhe um estatuto nobre, ao tempo que a vão interiorizando, tornando-a totalmente sua. Tão sua que a modificam, a alteram, a adotam ao universo nacional ou regional, e a transformam no plano da oralidade, e no plano da escrita…”
E tão natural e decisiva foi essa apropriação que se deu o paradoxo de a língua portuguesa ter servido para se organizarem os exércitos da Guiné, de Moçambique e
de outras colónias facultando-lhes um idioma comum para que, ultrapassando-se a confusão e desentendimento das suas diversas etnias e línguas, fosse possível uma
língua inteligível para todos possibilitando unidade de comando e acção. Por outras palavras,a língua portuguesa pôs-se do lado do “Império”, contra o” Imperador”. Até por isso, a Lusofonia não é um projecto neo-colonial. Deixou de haver um dono da língua, todos passaram a condóminos dela.
É neste contexto que ganham sentido os acordos ortográficos, maximamente o recente, por ser de unificação, pondo termo à aberração de termos duas ortografias diferentes, a portuguesa e a brasileira, correndo o risco de, no futuro, virem a ser três, quatro ou mais, porque todos os países têm os mesmos direitos.
Para além disso, uma ortografia unificada, como têm as outras Línguas de Cultura, é a única que permite todas as liberdades de pronúncia, de estilo, de criatividade nacionais e regionais, porque ortografia não é a mesma coisa que língua, apenas a sua forma gráfica comum que alberga todas as liberdades. Sobretudo para uma língua como a nossa, usada nas diversas partes do mundo, ao serviço de culturas diversas, sendo a mesma palavra pronunciada de inúmeras maneiras diferentes que muitos não entendem, a não ser quando o texto aparece escrito…
Assim se facilita a circulação dos diversos tipos de textos escritos, num espaço de cerca de cento e quarenta milhões, sem as alfândegas de vigilantes vocabulários,
prontuários, dicionários apontando erros, complicando e encarecendo a edição e a leitura.
E não foi este Acordo de 1990 tão longe como em 1746 queria ir Luís António Verney
no Verdadeiro Método de Estudar, antes mesmo de haver uma Literatura Brasileira organizada, ou estudos gramaticais, pois a primeira gramática brasileira, a Língua Nacional, de António Pereira Coruja é de 1835.
Por exemplo, queria Verney acabar com as inúteis consoantes mudas, acabar com o H
inicial em palavras como Heródoto, Herodes e outras. E quanto ao tão estranhado agora Ato, por Acto, era do seguinte parecer: “Ato é mui boa palavra,e todos a entendem”.
É por isso incompreensível o apego de alguns à ortografia que termina, pois outras a antecederam, e nela não escreveu a maior e mais valiosa parte dos escritores portugueses, durante séculos: Fernão Lopes, Gil Vicente, Camões, Vieira, Camilo, Eça, Garrett, etc. Porquê tal culto?
Importa ainda considerar que se na reflexão sobre a Lusofonia damos tanta importância à língua, é porque nela tudo começa, mas Lusofonia é também a Literatura, a Arte, a Ciência etc que os lusófonos vão construindo, especialmente quando os laços que os unem se transformam em nós de solidariedade e compromisso.
Em suma, a Lusitanidade amadureceu e consolidou-se na Lusofonia, do mesmo modo que uma família se revê nos seus descendentes tornados adultos e iguais. |