1. O separado das gentes
Um judeu, de certo modo, é como o tempo de Santo Agostinho: algo que todo
mundo sabe o que é, quando não tem de defini-lo, mas não sabe, quando tem.
E isso é, ao mesmo tempo, surpreendente e perigoso. Surpreendente, porque
os judeus têm presença central na história ocidental desde o início.
Perigoso, porque a ignorância alimenta os mitos, que alimentam o
preconceito.
Em termos concretos, após um breve momento de recuo, em função do horror
do Holocausto, seguido da revisão pela Igreja Católica de seu histórico e
profundo antissemitismo, no Concílio Vaticano II (1965), o preconceito
antijudaico volta a crescer em todo o mundo ocidental e médio-oriental. No
Ocidente, com destaque para a Europa, mas sem excluir os EUA e mesmo o
Brasil, o recente recrudescimento do antissemitismo tem três causas
principais: o próprio antissemitismo histórico ocidental, sempre latente;
o particular antissemitismo da esquerda, que identifica judaísmo com
capitalismo e sionismo com colonialismo, e encontrou na condenação
maniqueísta e radical de Israel uma forma de sintetizar e atualizar seu
repúdio aos quatro; o novo antissemitismo árabe-muçulmano, que generaliza
seu anti-israelismo em desconfiança ou ódio aos judeus em geral. No
Brasil, os dois últimos ingredientes são particularmente observáveis no
meio universitário. No Oriente Médio, é o terceiro que centraliza o
fenômeno.
Tudo somado, a questão volta, infelizmente, a ter importância.
Porém ela é tão complexa que exige, em primeiro lugar, considerar se se
trata de fato de uma questão. Pois para muitos, ser judeu é uma condição.
Uma condição, digamos, natural, no sentido de ser parte da natureza dos
que são, justamente, judeus. E se é uma condição, não é uma questão.
Macieiras são macieiras, não cerejeiras. Mas aqui se trata de duas
espécies distintas – e a humanidade é uma espécie única. Pode-se, então,
concluir que a questão é verdadeira: pois ser judeu não é afinal uma
condição natural.
O próprio mito de fundação do judaísmo o explicita. Abraão teve de ser
apartado de seu povo de origem, da cidade de Ur, na Mesopotâmia, para se
iniciar no caminho que o converteria no primeiro judeu. Ser judeu é,
então, ao menos em parte, apartar-se. Separar-se. Primeiro, através de um
Deus duplamente único (único porque solitário, e único porque distinto dos
demais deuses – ao menos até o advento do cristianismo e do islã, ambos,
não por acaso, tributários do judaísmo). Segundo, através da circuncisão,
da Torá, do
shabat, da comida
kasher e da endogamia. Obviamente, só é necessário separar aquilo
que de início está misturado.
2. Espécie, raça, tribo
Mas isso complica a questão e, surpreendentemente, devolve-a ao parágrafo
sobre “macieiras” e “cerejeiras”. Pois hoje se sabe que o principal
mecanismo de surgimento de novas espécies é, justamente, a separação.
Ao contrário do que acredita o senso comum, seguindo certa vulgarização do
darwinismo clássico, não é o mero tempo, ao acumular infindáveis pequenas
modificações, que costuma gerar novas espécies, mas sim o espaço, isto é,
o isolamento geográfico (segundo o darwinismo contemporâneo). Os
descendentes de um subgrupo separado de um grupo maior não têm mais seu
pool genético “diluído” e
homogeneizado com o resto do grupo original, fazendo com que as diferenças
advindas das mutações aleatórias se concentrem. Além disso, elas são agora
selecionadas numa direção particular, em função do novo hábitat. O
resultado é que o pool genético
do novo subgrupo logo se distancia daquele do grupo de origem. Assim,
enquanto o grupo original tende a se manter relativamente inalterado, o
subgrupo dele separado tende a se transformar rapidamente em uma nova
espécie.
O problema é que isso não se aplica aos seres humanos. Por dois bons
motivos. Primeiro, porque o “se transformar rapidamente” é relativo. E
relativo ao tempo biológico, muitíssimo mais lento do que o histórico.
Segundo, e aqui ainda mais determinante, porque grupos humanos
dificilmente ficam totalmente isolados: os mesmos motivos e os mesmos
caminhos que levaram um grupo a uma dada região cedo ou tarde levarão
outro (o que não é verdade para outras espécies, que se dispersam menos e
por menos razões). E quando porventura ficam afinal isolados, não é, por
tudo isso, por períodos biologicamente significativos. Portanto, não houve
tempo nem isolamento verdadeiro para subgrupos humanos se diferenciarem,
desde que o Homo sapiens evoluiu
da espécie ancestral, o Homo erectus,
no continente africano, há apenas 150 mil anos (ao contrário, o
Homo erectus teve tempo suficiente para que subgrupos separados
evoluíssem separadamente: parte de sua população, que saiu da África e
chegou à Europa pelo Oriente Médio há cerca de um milhão de anos, deu ali
origem ao famoso Homem de Neandertal [Homo
neanderthalensis]).
Mas eis que então se esforça por emergir o conceito de
raça. Se não houve tempo nem
isolamento ideal para fazer surgir uma nova espécie humana, desde que a
nossa se tornou a única espécie humana no planeta (pela extinção, entre
outros, do próprio Neandertal, há cerca de 30 mil anos), sendo a raça um
estágio intermediário... Acontece que a raça
não é um estágio intermediário. Por um bom motivo: não existem
raças. E não existem porque a espécie é a menor unidade da biologia. Raça
é apenas um conceito popular. Dito de outro modo, o que diferencia um
poodle de um pastor alemão, em termos genéticos, é nada. Daí ambos
pertencerem à mesma espécie, o Canis
lupus.
Para entender o que seja uma raça de cães (ou o que seria uma “raça”
humana), basta olhar para os vizinhos à época de uma grande festa, quando,
à família nuclear, agregam-se mais parentes. A maioria desses familiares é
parecida entre si. Se forem italianos, terão cara de italianos, se
chineses, cara de chineses, se alemães, cara de alemães. E se por acaso
houver um casal misto, por exemplo, um judeu de origem russa com uma
japonesa de origem, bem, japonesa, sua filha se parecerá com a mistura de
um judeu russo e uma japonesa. Sei disso por causa de um amigo. Do pai,
ruivo, a filha herdou cabelos arruivados, além da altura. Mas os dele são
encaracolados, e os dela, lisos como os da mãe. E seus olhos são
amendoados: mais abertos que os da mãe, menos que os do pai.
O mesmo aconteceria se se cruzasse um são-bernardo e um pastor alemão: os
filhotes teriam características de ambas as... famílias. Em suma, o que
chamamos de “raças” caninas não passam de famílias ampliadas, cujos
casamentos, ou cruzamentos, foram controlados para se manterem internos, a
fim de preservar certas características de alguns antepassados, um dia
isolados do grande grupo dos cães pelos criadores em função dessas mesmas
características. A semelhança com o mito de Abraão não é mera
coincidência.
Famílias humanas ampliadas, quando relativamente isoladas por certo tempo,
a ponto de criarem uma cultura própria, são chamadas de tribos. “Raças”
caninas, enfim, são o equivalente às tribos humanas: entre um pigmeu do
Gabão de pele marrom-escuro e um gigante nórdico de pele leitosa há tanta
distinção aparente quanto entre um pequeno poodle preto e um gigantesco
dinamarquês branco, mas nem por isso “raças” caninas ou tribos humanas
constituem espécies. Na verdade, a única diferença é que as “raças”
caninas são produzidas pelos criadores, e as tribos humanas, por
circunstâncias históricas.
3. Etnia, povo, estado, ventre
Um conjunto de tribos se chama etnia. Em grego, um
ethnos é uma liga, uma
coligação, um conjunto de tribos que habitam uma mesma região, e falam um
mesmo dialeto: a etnia tem,
assim, dimensão geográfica, histórica, cultural e linguística.
Mas eis que a coisa se complica outra vez. Pois se uma etnia é um conjunto
de famílias ampliadas, ou tribos, ou seja, uma família de famílias, uma
superfamília, isso ainda não esclarece o que seja um povo.
O moderno conceito de povo é, na verdade, tributário do moderno conceito
de Estado. E este é a expressão geopolítica de um grupo de indivíduos que
falam a mesma língua. Porque a língua sempre foi tomada como uma metonímia, a
parte que representa o todo: se alguém fala uma dada língua, deve ter
nascido no grupo dos que a falam. Portanto, se você fala grego, é um grego
(e não um persa, um egípcio, um assírio etc.), não importa se dessa ou
daquela tribo grega (ou dialeto grego). Parece simples.
Mas, mais uma vez, não é. Pois se uma etnia está para um dialeto assim
como um povo para uma língua, ninguém sabe ao certo o que diferencia uma
língua de um dialeto. Há os que afirmam, com muitas razões, que uma língua
é um dialeto com exército e bandeira. E aqui voltamos ao Estado moderno.
Como ele se pretendia a expressão geopolítica de um povo, idealmente
deveriam fazer parte dele todas as pessoas que falassem uma mesma língua.
Por exemplo, o italiano. O detalhe de não existir uma língua italiana, que
não passa do conjunto de seus dialetos, não foi considerado um problema
(ou melhor, foi: daí afinal se decretar que o dialeto florentino era a
língua “italiana”). Assim como não existir uma língua francesa (basta
pensar no bretão), ou espanhola (catalão, valenciano), ou chinesa
(pequinês, cantonês), ou mesmo portuguesa (galego). Enfim, povo é um
conceito fundamentalmente político, enquanto etnia é um conceito
histórico-cultural. Além disso, a língua de um povo é, como regra, um
conjunto de dialetos, enquanto a língua de uma etnia é, originalmente, um
dialeto em si.
Os judeus são, afinal, não um povo, mas uma etnia. Uma etnia originária da
região de Israel e falante do hebraico (um dos “dialetos” das antigas
línguas semitas da região, como o aramaico, o moabita etc.), que no ano 70
d. C. foi dali expulsa e dispersa pelo Império Romano, no contexto de se
acabar com dificuldades políticas imperiais na região (vulgo resistência à
ocupação romana).
Portanto, a resposta é, afinal de contas, fácil: ser judeu é nascer dentro
de um grupo de judeus. Como, porém, ninguém nasce dentro de um grupo, mas
sim dentro de um útero, na prática, ser judeu se transformou em ser filho
de uma mãe judia. Caso encerrado. Ou talvez não.
Pois onde ficam os mitzvot, ou
mandamentos? Porque um mandamento é, bem, um mandamento, uma obrigação.
Sendo assim, é possível ser judeu sem circuncisão? Sem seguir a
Torá? Sem observar o
shabat? Muitos diriam que não.
Neste caso, nascer de um ventre judeu se revela uma condição necessária,
mas não suficiente. Um judeu, então, é feito de um nascimento judeu e de
uma vida de respeito aos mandamentos judaicos.
Apoiados, porém, no próprio conceito de etnia, existem muitos que
consideram a religião judaica apenas uma entre as muitas variáveis que
definem a etnia judaica e, portanto, o pertencimento a ela. Eles ganharam
um fortíssimo aliado no trabalho de Luigi Cavalli-Sforza, o maior
geneticista de populações da atualidade.
4. Teoria da conversão versus
narrativa rabínica
Até o trabalho definitivo de Cavalli-Sforza na segunda metade do século
XX, era impossível resolver um antigo e crucial debate. Esse debate
contrapunha, de forma irredutível e insanável, os adeptos da
teoria da conversão e os
seguidores da narrativa rabínica,
todos devidamente judeus.
A narrativa rabínica, defendida majoritariamente por judeus religiosos,
afirma que os judeus, desde a saída de Israel no ano 70 d. C. e sua
dispersão pelo Império Romano, ou seja, Europa, norte da África e Oriente
Médio, mantiveram sua identidade étnica através dos casamentos dentro da
comunidade, além de, assim, também manterem suas principais tradições, sua
religião e sua memória histórica. Já a teoria da conversão, como regra
adotada por judeus assimilados, e além disso de esquerda, dizia que tudo
isso não passava de um mito, pois aqueles judeus israelitas do primeiro
século teriam “necessariamente” se diluído na vasta população gentia logo
em seguida. Para explicar, então, a existência atual de judeus, os adeptos
da teoria da conversão elaboraram uma série de... mitos alternativos, pois
também faltos de comprovação.
O mais sensato afirmava que os que se dizem hoje judeus nada mais têm,
etnicamente, de seus antepassados, sendo apenas os descendentes gentios
que mantiveram as tradições familiares de algum muito remoto ancestral
judeu. O mito menos sensato afirma que todos os judeus atuais são, na verdade, descendentes dos
kazares, um semimítico povo medieval de certa região ao sul da Rússia, mas
não eslavo (talvez de origem turca), que um belo dia, em torno do século
X, converteu-se em massa ao judaísmo, porque seu rei decidiu fazê-lo. A
lenda dos kazares está hoje muito em voga entre os antissemitas em geral e
entre os antissionistas em particular, que a usam como “argumento” para
sua rejeição agressiva do estado de Israel.
Luigi Cavalli-Sforza é um judeu assimilado, ou seja, não-religioso, e como
tal, defendia a teoria da conversão. Para prová-la, elaborou e executou um
grande protocolo científico em sua área de especialização, a genética de
populações, a fim de demonstrar que os judeus são geneticamente
indistinguíveis dos povos modernos em meio aos quais vivem. Porém seu
trabalho, à sua revelia (mas não de sua honestidade intelectual), acabou
provando exatamente o contrário.
Ele afinal demonstrou de forma cientificamente robusta que a narrativa
rabínica estava espetacularmente certa. Os judeus mantiveram sua
identidade étnica através de casamentos dentro da comunidade, e assim
também preservaram suas principais tradições, sua religião e sua memória
histórica: pois os judeus são todos mais próximos entre si do que de
qualquer grupo de seu entorno, em todas as regiões do globo. Além disso,
todos descendem de um mesmo grupo ancestral que viveu no Oriente Médio há
cerca de 2 mil anos. Em termos práticos, Cavalli-Sforza descobriu que um
judeu europeu loiro de olhos azuis (ou
ashkenazi) é mais próximo de um
judeu oriental ou “árabe” de cabelos e olhos pretos (ou
sefaradi) do que de um alemão
loiro de olhos azuis (esta possibilidade é sustentada pelas complexidades
e sutilezas da expressão genética,
termo técnico que se refere aos modos como os genes se “expressam”, ou
seja, geram as várias características corporais através da produção de
proteínas, o que nada tem de simples ou linear, como crê o senso comum).
Ao mesmo tempo, ele também descobriu que todos os judeus são próximos dos
demais grupos semitas do Oriente Médio, como os árabes, e mais exatamente,
de um grupo que habitava a região de Israel há cerca de dois milênios
(isto é possível através do estudo da dispersão do DNA mitocondrial, cuja
taxa de mutação é constante, além de ser transmitido de geração a geração
apenas pela mãe).
Se a genética o demonstra, a história o explica. Pois uma etnia é,
fundamentalmente, a expressão de um passado comum que se estende até o
presente. Daí poder-se mudar mesmo a língua, do hebraico para o iídiche ou
para o ladino, por exemplo, e continuar pertencendo à tribo.
Mas se se pode mudar até a língua, por que não a religião?
5. A religião, enfim
A resposta simplesmente não existe no singular. Pois isso depende... da
religião. Há, por exemplo, árabes cristãos. Na verdade, pode-se dizer,
neste sentido, que há árabes muçulmanos. Porque o islã não é a religião
original dos árabes (e sim o politeísmo tribal). Logo, todos os árabes, em
termos religiosos, são convertidos. Nem por isso deixam de ser árabes. O
mesmo vale para os cristãos, que em sua origem eram, e ainda são, gregos,
italianos, germânicos, egípcios, árabes, chineses... A diferença é que, no
caso judaico, não se trata de uma religião de convertidos, mas de uma que
se confunde com a própria condição étnica (como, por exemplo, os antigos
deuses egípcios, que eram egípcios, ou as atuais divindades indígenas, que
são indígenas). Além disso, tanto em termos míticos quanto históricos, a
adoção do monoteísmo parece ter sido a principal razão da separação de um
grupo de tribos de uma pequena região do Oriente Médio das tribos de seu
entorno. Logo, a religião foi o próprio fator de surgimento dos judeus
como etnia (o mesmo não vale, por exemplo, para os japoneses em relação
aos seus antepassados, comuns aos chineses, dos quais se separaram
primeiro geograficamente, ao migrar para o arquipélago).
Acontece que um fator original é um fator original: ou seja, mesmo ele não
esgota todos os fatores determinantes. Uma religião, por si, mesmo que
étnica, não define uma etnia. Portanto, seguir os mandamentos judaicos não
define a condição judaica.
Já sabemos disso, pois além dos mandamentos, deve haver também o ventre.
Mas se o ventre, ou seja, a ascendência, traduz de fato uma história
familiar comum, religião é cultura, ou seja, certo conjunto de crenças e
práticas. Voltamos à questão da língua: se se pode trocar o hebraico pelo
iídiche ou pelo português e continuar judeu, por que não se pode, do mesmo
modo, trocar a religião judaica pelo protestantismo, por exemplo, e
continuar judeu, como um árabe cristão continua a ser árabe?
A resposta verdadeira é, afinal, apenas uma: por convenção.
Indivíduos não fazem leis. Leis são feitas pela comunidade, para organizar
e regular a própria vida em comunidade. Ser
judeu, afinal, é um direito. Um direito reconhecido por um dado grupo a
certos indivíduos, como todos os direitos (com exceção dos direitos
humanos, que são ou devem ser universais, os demais são particulares).
Mas mesmo isso não responde tudo. Pois a comunidade judaica não é
homogênea. Logo, as convenções judaicas, mesmo as mais básicas, não são
igualmente aceitas por todos. E se é a própria comunidade que define,
necessariamente, suas convenções, o fato de haver partes significativas da
comunidade judaica que questionam certas convenções, por exemplo, as de
pertencimento, torna esse questionamento respeitável.
Ser judeu, em suma, é ser reconhecido como judeu por outros judeus. E como
a maioria, neste caso, adota contemporaneamente apenas a origem materna,
dando menos importância ao respeito aos
mitzvot, ser judeu é ser filho
de mãe judia (segundo a lei israelense, é judeu quem for filho de mãe
judia ou convertido à religião
judaica; para muitos grupos ortodoxos, por outro lado, só é judeu quem,
além de filho de uma judia, segue estritamente a religião).
Mas isso ainda não esclarece se se trata apenas de um direito ou também de
um dever. Ou seja: o filho de uma mãe judia, além de poder se considerar
judeu, pois assim considerado pela maioria dos demais judeus, tem a
obrigação de fazê-lo? Em outras palavras: ele é necessariamente judeu, ou
apenas possivelmente judeu, caso não mais assim se considere?
Ser judeu, enfim, é em parte um “alter-reconhecimento” (para cunhar um
neologismo) e em parte um autorreconhecimento. As duas formas de
reconhecimento são suficientes – e também necessárias.
6. Mestiçagem judaico-gentia
Além de uma importante e perene questão, toda essa discussão também
esclarece uma questão aguda e relevante (ao menos para mim): o que é,
então, o filho de um judeu e de uma não-judia?
Pois se o filho de uma judia é judeu, não importa a origem étnica ou
religiosa do pai (ainda que, em termos religiosos judaicos, os casamentos
mistos sejam todos igualmente condenáveis). Logo, se apenas o pai for
judeu, seu filho não o será.
Portanto, minha filha não é judia. Mas isso não me satisfaz: minha filha
tampouco é ianomâmi, chinesa ou esquimó. Dizer o que ela não é nada diz do
que ela seja. Mas ela deve necessariamente ser algo, particularmente em
relação à origem étnica de seu próprio pai.
Minha conclusão, na verdade, a conclusão lógica, é ela ser uma mestiça.
Pois não é um mestiço o filho de um branco e de um negro? De um ocidental
e de um oriental? De um europeu e de um índio? Se sou membro de uma etnia,
à qual não pertence, porém, a mãe de minha filha, minha filha é e só pode
ser mestiça. Então me dei conta de que isso deveria ser óbvio.
Pois a humanidade é dividida em quatro grandes grupos, bem,
étnico-linguísticos. São eles os indo-europeus, os mongóis, os negros e os
semitas. Os indo-europeus são um grande grupo formado pelos ocidentais e
pelos indianos, que não têm origem oriental, apesar de a Índia ficar na
Ásia, pois para lá migraram milhares de anos atrás, depois de se separar
de seus primos europeus (daí os indianos não terem os olhos puxados dos
demais orientais, mas terem narizes proeminentes e pelos no rosto, à
semelhança dos ocidentais; daí, também, sua língua ancestral, o sânscrito,
ser muito semelhante ao grego antigo). Os “mongóis”, aqui, são os povos
amarelos em geral (e não os naturais da Mongólia em particular). Os negros
são os africanos não-árabes. Os semitas são os judeus, os árabes e outros
povos extintos do Oriente Médio, como os antigos mesopotâmios, os hititas
etc. Portanto, a filha de um semita e de uma indo-europeia só poderia
mesmo ser uma mestiça.
A mestiçagem já foi considerada, pelos racistas de todas as origens,
longitudes e latitudes, uma forma de “degeneração”, pois traria para uma
dada “raça”, que seria obviamente “superior”, as “inferioridades” de outra
qualquer. Mas se não há raças a não ser na cabeça de um racista, não há
nem superioridade nem inferioridade possíveis. Tampouco igualdade ideal:
os seres humanos são, afinal, todos diferentes, todos individuais. Isto
dito, são diferentes inclusive em suas diferenças.
8. Diferenças diferentes
Um de meus sobrinhos estava em dúvida quanto a fazer ou não o
bar-mitzvá. Para surpresa
familiar, aconselhei-o a fazê-lo. A surpresa vinha de meu visceral
ateísmo. Por que um ateu convicto diria para seu sobrinho “submeter-se” a
uma cerimônia religiosa? E por que um garoto descrente deveria participar
dela? Porque não se trata de uma cerimônia religiosa, ou não religiosa
apenas. Como o judaísmo é uma religião “tribal”, ou étnica, fazer o
bar-mitzvá também significa
participar de uma cerimônia “tribal”. No caso de um garoto judeu com
poucas ligações com sua história, seus mitos e sua língua ancestral (o
bar-mitzvá implica na alfabetização em hebraico), é algo a se
pensar. Foi o que eu disse, e ele afinal fez seu
bar-mitzvá. Mas o que eu diria ou direi a minha filha nas mesmas
circunstâncias? Para ela não fazer o
bat-mitzvá (a versão feminina da cerimônia). Afinal, ela não é judia.
Melhor dizendo, ela é uma mestiça.
Isso significa que não faz parte da comunidade judaica do mesmo modo que
seu primo-irmão, filho de pai e principalmente mãe judeus, mesmo que dela
ainda faça parte. Pois há pertencimentos parciais.
Na verdade, baseado no mesmo conceito de etnia, há quem defenda, como o
escritor israelense
A. B. Yehoshua,
que o pertencimento à condição judaica de todos os judeus da diáspora é
parcial. Pois assim como minha filha é menos judia do que seu primo-irmão,
sem porém deixar de sê-lo inteiramente, seu primo-irmão, apesar de sua mãe
judia, seria menos judeu do que um judeu israelense. Pois este agregaria
mais elementos étnicos judaicos, por exemplo, a língua hebraica, as leis
judaicas e a própria presença na terra ancestral de Israel, o que, junto à
religião, resultariam em uma judaicidade mais completa (portanto, o único
judeu por inteiro deve ser o grão-rabino de Jerusalém; eu mesmo, em todo
caso, apesar da inteira ascendência judaica, por minha recusa ativa da
religião e meu casamento misto, entre
otras cositas más, não sou dos
exemplos mais bem acabados).
Por outro lado, isso também significa que minha filha possui mais
pertencimentos parciais do que seu primo (e do que os judeus israelenses,
que além de culturalmente brasileiro, é etnicamente judeu, enquanto ela é
culturalmente brasileira, parcialmente judia e parcialmente indo-europeia.
Seu passado histórico, cultural e familiar é, portanto, maior. Além disso,
ela deve estar mais a salvo dos sectarismos que voltam a assombrar a
humanidade, depois da morte do racionalismo, do humanismo e das utopias
universalistas de esquerda. Pertencer a um grupo não é, em si, ruim. Por
isso mesmo, pertencer a mais de um é ainda melhor.
|