Nova Série

 
 

 

 

Luís Dolhnikoff
A lista de Sendler

uma mulher entra no gueto

de varsóvia

cercado por muros de pedra

e pelas botas de chumbo

da gestapo

erra por ruas sombrias

e pelos mortos adiados

arrastados

no lodo espesso do medo

e leva com ela

escondida e esquiva

uma criança pequena

pequeno pedaço de carne e pavor

dando-lhe o valor da vida

que arrisca

cercada por muros de medo

e o peso denso do chumbo

 

uma mulher entrou no gueto

de varsóvia

cercado por muros de chumbo

e pelas botas de pedra

da gestapo

vezes sem conta

mas a soma das vidas

que roubou do inferno

é conhecida:

duas mil e quinhentas crianças

arrancadas da boca da morte

 

seu nome

também é conhecido:

irena sendler

 

era polonesa

e morreu em 2008

 

situações extremas

não exigem apenas soluções extremas

mas também pessoas extraordinárias

 

escrevo este poema

então, em homenagem a irena sendler

e em derrisão ao mundo ordinário

de agora

 

fodam-se todos os juntadores de dinheiro

e compradores de gadjets e entretenimento

todos os longevos tomadores de vitaminas

as roupas sexy-putas das meninas

os novos softwares e a computação em nuvem

a previsão do tempo e a privação de calorias

os novos carros e a nova velhice

os paus duros e o tesão mole movido a viagra

os peitos de plástico e as plásticas na cara

o dinheiro elástico dos cartões de crédito

a crença vazia a crise de azia a viagem à ásia

a banalização do sexo anal

a popularização do sexo grupal

os grupos de apoio as novas próteses

o futuro aberto como uma boceta fria

 

houve gente neste mundo

 

não é a velha história

de que tudo era melhor

quando uma imensa

merda sangrenta

 

mas da imensa merda sangrenta

que o mundo fora

brotava gente de primeira

além de multidões deprimentes

 

onde é a próxima rave?

quando sai o próximo iPhone?

quantos apps fazem um androide?

o google glass vai me ligar à vida?

o novo mac vai me matar a fome?

como está minha cara no “face”?

qual o novo tipo de alface?

é melhor comer couve ou espinafre?

um novo aparelho na academia?

preciso me prevenir de uma anemia?

é melhor um menino ou uma menina?

parto na água ou viajo de barco?

praga é a nova paris?

a gripe aviária é uma nova praga?

silicone na bunda fecha as pregas do cu?

há cursos para facilitar engolir porra?

a porra da bolsa não vai subir?

o elevador não vai descer?

o trânsito não vai transitar?

o transe não vai terminar?

o lance não vai me esperar?

ela vai aprender a chupar?

o u do i nin plintz dum shutzpá?

 

uma mulher entra no gueto

de varsóvia

cercado por muros de medo

e pelas botas de aço

da gestapo

erra por ruas mortas

entre cadáveres adiados

arrastados

no lodo denso do horror

e leva com ela

esquiva e escondida

uma criança muda

pequeno pedaço de carne e terror

oferecendo-lhe

o risco de vida

que aposta

cercada por muros de ossos

e o peso negro da morte

 

bela bosta:

tudo isso é passado

deslugar cheio de gente grandiosa

mulheres difíceis de serem comidas

comidas gordurosas

casamentos ensebados

rendas e babados

pais bêbados empoderados

poesia empoeirada

bebês em fraldas de pano

bebês mortos uma vez por ano

cidades miseráveis

miséria heroica

e nazistas à porta

 

o terror islâmico

é apenas um esporte muito radical

 

quem ainda precisa

de heroínas esquivas

de guetos extintos?

 

qual, afinal, o melhor vinho tinto?

 
Luís Dolhnikoff (São Paulo, 1961) estudou Medicina e Letras Clássicas na USP. É autor de Pãnico (poesia), São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski; Impressões digitais (poesia, 1990); Microcosmo (poesia, 1991), Os homens de ferro (contos, 1992), os três pela editora Olavobrás (São Paulo), que criou em 1989 com Marcelo Tápia, e de Lodo (poesia), São Paulo, Ateliê, 2009, além do livro infantil A menina que media as palavras (Mirabilia, 2008) e do inédito As rugosidades do caos (poesia, 2012). Tem poemas publicados em Atlas Almanak 88, São Paulo, Kraft, 1988, organização Arnaldo Antunes; Tsé=tsé 7/8 (número especial com 30 poetas brasileiros contemporâneos), Buenos Aires, outono 2000; Medusa 10, Curitiba, abr.-mai. 2000; “Moradas provisórias (antologia de poesia brasileira contemporânea)”, in Hipnerotomaquia, Cidade do México, Aldus, 2001, organização Josely V. Baptista; Folhinha, Folha de S. Paulo, 27/07/2002; e nas revistas Cult 61, SP, out. 2002; Sibila 3, SP, out. 2002; 18 IV, SP, Centro de Cultura Judaica, jun.-ago. 2003; Coyote 5, Londrina, outono 2003; Babel 6, Campinas, dez. 2003; Ciência & Cultura 56, SP, Imprensa Oficial, abri.-jun. 2004; Ratapallax 11, New York, spring 2004; Mandorla – New writing from Américas 8, Illinois, Illinois State University, 2005; Mnemozine 3 (revista online, www.cronopios.com.br/mnemozine, 2006), além dos sites www.sibila.com.br, www.jornaldepoesia.jor.br,www.germinaliteratura.com.br,
www.bestiario.com.br/maquinadomundo, www.cronopios.com.br e ablogando (ab-logando.blogspot.com). Integrou a exposição de poesia visual A Palavra Extrapolada, São Paulo, SESC Pompeia, ago.-set. 2003, curadoria Inês Raphaelian, e a mostra Desenhos, de Francisco Faria, ao lado de Josely V. Baptista, Curitiba, Museu Oscar Niemeyer, mar. 2005 / SP, Instituto Tomie Ohtake, set.-dez. 2005. Traduziu Arquíloco (Fragmentos, São Paulo, Expressão, 1987), Joyce (Poemas, São Paulo, Olavobrás, 1992, colaboração Marcelo Tápia), Auden, (Mais!, Folha de S. Paulo, 06/07/2003), Cervantes (Mais!, Folha de S. Paulo, 14/11/2004, colaboração Josely V. Baptista), Yeats (Etc, Curitiba, jan. 2005), William Carlos Williams (Sibila, www.sibila.com.br, 2011) e Ginsberg (Uivo, São Paulo, Globo, 2012). Entre 1991 e 1994, coorganizou, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday de São Paulo (homenagem anual a James Joyce). Como crítico literário, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e Folha de S. Paulo, além das revistas Sibila e Babel e dos sites Cronópios e Sibila. Recebeu, em 2005, uma Bolsa Vitae de Artes para desenvolver estudo crítico sobre a obra de Pedro Xisto. Entre 2003 e 2008, foi colaborador de política internacional, com destaque para as relações entre política e religião, da Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo.

luisdkf@uol.com.br