|
Revista TriploV
de
Artes, Religiões e Ciências |
Nova Série |
|
|
|
|
Luís Dolhnikoff |
|
Cultura-espuma, hofdware e outras
questões contemporâneas |
|
No século
XIX, Karl Marx, ante as mudanças incessantes e aceleradas que o modo de
produção capitalista impunha e imporia ao mundo, não poupando nada e
ninguém, das relações de trabalho às relações familiares, das posições
sociais aos valores morais, da distribuição da população à atividades
cotidianas, das ideias às paisagens, resumiu tudo numa frase que, ao
contrário, perduraria: “Tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Há alguns
anos, o filósofo e sociólogo Zygmunt Balman resumiu e atualizou Marx ao
falar em “sociedade líquida”. Agora chegamos, enfim, à
cultura-espuma – segundo eu
mesmo.
Cultura é
memória. Memória pessoal de ideias, crenças, práticas e hábitos que uma
geração transmite à seguinte, memória grupal que as criações culturais
transmitem. Não por acaso, na mitologia grega as artes são filhas da
Memória (Mnemóssine), mãe das
musas. Sem memória, não há arte. Sem ela, não há cultura, pois ao
contrário das formas de vida, que são darwinianas, e não transmitem os
caracteres adquiridos em vida, a cultura é lamarckista: não apenas depende
totalmente do que se faça em vida, como o que se faz é transmissível às
novas gerações. Se não o for, morre.
Muitas
culturas morreram quando morreram as sociedades que as criaram e
transmitiram. Mas se seus registros mnemônicos sobrevivessem na memória de
outras culturas, poderiam manter viva a cultura dessa sociedade extinta. A
cultura é como um vírus, que pode sobreviver à morte do primeiro
hospedeiro.
O que
acontece hoje na cultura contemporânea é novo e diferente. Uma sociedade
que se mantém viva, mas cuja cultura vai se perdendo em vida. Uma
sociedade com Alzheimer. Uma cultura desmemoriada. Uma cultura zumbi. Ou
de zumbidos, cheia de sons e movimentos, que significam cada vez menos.
Voltemos
um pouco para tempos mais lentos. Velhas mas ainda assim já então modernas
questões filosófico-ideológicas levaram, no século XVIII, ao conceito de
“tábula rasa”. Para os homens serem iguais, eles tinham de ser, isto é, de
nascer, igualmente vazios. Um
nobre não era nobre porque nascia com virtudes da nobreza, mas porque
criado na nobreza. As virtudes nobres e também as ignóbeis estavam ao
alcance de todos, desde que a sociedade cuidasse devidamente de sua
formação (e informação). Os homens não nasciam bons, como pretendia
Rousseau, mas tampouco maus, como acreditava a Igreja. Nasciam vazios. A
sociedade, isto é, a cultura que recebessem, fariam deles o que fossem, o
que pudessem ser.
A “tábula
rasa” foi quebrada pela ciência contemporânea, a partir, entre outros, da
linguística de Chomsky, da neurologia embrionária e da etologia, a ciência
do comportamento animal. Nascemos com
estruturas informacionais
inatas, para as quais nem o
hardware nem o software
servem como metáforas. É algo como um
hofdware, que parece um
neologismo alemão, mas é a fusão das duas palavras-chave da computação,
que criei para indicar um sistema, o cerebral humano, em que a estrutura e
as informações básicas de seu funcionamento são inextricáveis, porque
imbricadas na sua própria “fabricação”.
O exemplo
clássico é a língua. Se ninguém nasce sabendo uma língua, todos nascem com
uma estrutura gramatical geral e universal impressa no
hofdware cerebral, que não
somente permite o aprendizado de qualquer língua, como explica o rápido e
natural aprendizado da língua
materna pelos bebês humanos. Para um humano, falar uma língua é tão
natural quanto um pássaro canoro cantar. A cultura, por sua vez, não está
no falar em si, mas naquilo que afinal se fala, incluindo o código, a
língua (mas não a linguagem verbal, que é inata).
Assim
como a ciência contemporânea acabou com a “tábula rasa”, a filosofia
acabou com outro mito mais antigo, o Ideal platônico. Formas ideais e
perenes existiriam numa dimensão perene e ideal, onde nasceria a alma
humana, conhecedora, portanto, de tais formas, de que as coisas do mundo
seriam projeções imperfeitas. Ao sofrer certo “trauma” quando de sua
incorporação a um novo ser
humano, a alma se esqueceria de seu conhecimento profundo das coisas do
mundo. Mas o recordaria através da experiência, do “recontato” com as
coisas. Daí que, para Platão e os platônicos, aprender era recordar. Ao
contrário da “tábula rasa”, os homens nasceriam, na verdade, repletos de
memória do mundo. Mas o mito platônico da alma individual imortal (depois
apropriado pelo cristianismo) morreu com a morte da metafísica.
Homens e
mulheres não nascem vazios (apesar de não repletos de conhecimento
esquecido da alma platônica). Mas sua memória, sim.
Tanto a
memória individual quanto a memória cultural tem de ser adquiridas. Mas
além de adquiridas, devem ser mantidas, porque uma memória perdida é uma
bolha de nada vagando no oceano escuro do passado. A perda da memória
individual resulta em algumas síndromes associadas à demência,
literalmente, à perda da mente, ao seu desfazimento. A memória e a mente
se constroem juntas, como um novo
hofdware sobre o hofdware
do cérebro-estruturas-informacionais-inatas dos bebês. A perda da memória
cultural, síndrome contemporânea por excelência, resulta não em demência,
mas em zumbificação cultural. Como um zumbi, a cultura desmemoriada se
move, parece viva, porque seu “corpo”, a sociedade que antes a
incorporava, desenvolvia e mantinha viva, mantém-se viva e em movimento,
apesar de desmemoriada.
Por
coincidência ou não, a computação em nuvem surge paralela à
cultura-espuma, uma névoa de informação difusa, cujo espalhamento é
inversamente proporcional à sua densidade. Se a computação em nuvem existe
“dentro” da rede, flutuando no ciberespaço, a informação-névoa existe fora
da rede, e se espalha através do tecido da cultura. Esse tecido, que se
tece, se esgarça e se retece através da história, e que através da
história é tingido, destingido e retingido, é agora apenas umedecido pela
informação-névoa, incapaz de impregná-lo com o pigmento da memória e o
fixador do hábito. A informação-névoa parece impregná-lo, mas é apenas uma
mancha de umidade, que aparece assim como desaparece. O próprio tecido da
cultura se desfaz, pois não mais mantido, fixado, sedimentado, e se torna,
por fim, a cultura-espuma.
Por que
não mais se sedimenta é outra questão complexa. Mas a resposta é simples:
por excesso, mas também por falta. Excesso de informação acessível, falta
de linhas de sedimentação.
A areia
de um mar sempre revolto jamais se sedimentaria, e esse seria um mar sem
fundo, portanto, impossível. Se nenhum mar é um lago de águas paradas,
tampouco é um redemoinho perpétuo. Movimento e estase, correntes e
sedimentação têm de existir e coexistir, para que o próprio mar exista. O
fundo do mar o embasa, mas também o permeia. Os solutos do mar o permeiam,
mas também o embasam. Fundo e solutos, memória sedimentada e informação
nova, formam um sistema que se impregna e se realimenta. Assim como há
caminhos para a chegada de informações novas, também deve haver caminhos
para a sedimentação de parte delas. Essas linhas de sedimentação formam
(ou formavam) o próprio tecido da cultura. Mas a informação-névoa não se
sedimenta em um fundo de memória. O excesso de informação resulta em
diminuição paradoxal de informação. Porque é informação “espuma”: está lá,
mas não dura, porque não tem densidade, e logo é substituída por mais
“espuma”. A quantidade total de espuma que passa pela praia por dia é
grande, mas é afinal sempre pouca e sempre efêmera: a franja frágil que
está à tona a cada momento.
|
|
|
Luís Dolhnikoff (São Paulo, 1961)
estudou Medicina e Letras Clássicas na USP. É autor de Pãnico
(poesia), São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski;
Impressões digitais (poesia, 1990); Microcosmo (poesia, 1991), Os
homens de ferro (contos, 1992), os três pela editora Olavobrás (São
Paulo), que criou em 1989 com Marcelo Tápia, e de Lodo (poesia), São
Paulo, Ateliê, 2009, além do livro infantil A menina que media as
palavras (Mirabilia, 2008) e do inédito As rugosidades do caos
(poesia, 2012). Tem poemas publicados em Atlas Almanak 88, São Paulo,
Kraft, 1988, organização Arnaldo Antunes; Tsé=tsé 7/8 (número especial
com 30 poetas brasileiros contemporâneos), Buenos Aires, outono 2000;
Medusa 10, Curitiba, abr.-mai. 2000; “Moradas provisórias (antologia
de poesia brasileira contemporânea)”, in Hipnerotomaquia, Cidade do
México, Aldus, 2001, organização Josely V. Baptista; Folhinha, Folha
de S. Paulo, 27/07/2002; e nas revistas Cult 61, SP, out. 2002; Sibila
3, SP, out. 2002; 18 IV, SP, Centro de Cultura Judaica, jun.-ago.
2003; Coyote 5, Londrina, outono 2003; Babel 6, Campinas, dez. 2003;
Ciência & Cultura 56, SP, Imprensa Oficial, abri.-jun. 2004;
Ratapallax 11, New York, spring 2004; Mandorla – New writing from
Américas 8, Illinois, Illinois State University, 2005; Mnemozine 3
(revista online, www.cronopios.com.br/mnemozine, 2006), além dos sites
www.sibila.com.br,
www.jornaldepoesia.jor.br,www.germinaliteratura.com.br,
www.bestiario.com.br/maquinadomundo, www.cronopios.com.br e ablogando
(ab-logando.blogspot.com). Integrou a exposição de poesia visual A
Palavra Extrapolada, São Paulo, SESC Pompeia, ago.-set. 2003,
curadoria Inês Raphaelian, e a mostra Desenhos, de Francisco Faria, ao
lado de Josely V. Baptista, Curitiba, Museu Oscar Niemeyer, mar. 2005
/ SP, Instituto Tomie Ohtake, set.-dez. 2005. Traduziu Arquíloco
(Fragmentos, São Paulo, Expressão, 1987), Joyce (Poemas, São Paulo,
Olavobrás, 1992, colaboração Marcelo Tápia), Auden, (Mais!, Folha de
S. Paulo, 06/07/2003), Cervantes (Mais!, Folha de S. Paulo,
14/11/2004, colaboração Josely V. Baptista), Yeats (Etc, Curitiba,
jan. 2005), William Carlos Williams (Sibila, www.sibila.com.br, 2011)
e Ginsberg (Uivo, São Paulo, Globo, 2012). Entre 1991 e 1994,
coorganizou, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday de São Paulo
(homenagem anual a James Joyce). Como crítico literário, colaborou, a
partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário
Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e Folha de S. Paulo, além das
revistas Sibila e Babel e dos sites Cronópios e Sibila. Recebeu, em
2005, uma Bolsa Vitae de Artes para desenvolver estudo crítico sobre a
obra de Pedro Xisto. Entre 2003 e 2008, foi colaborador de política
internacional, com destaque para as relações entre política e
religião, da Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo.
luisdkf@uol.com.br
|
|
|