A meio de uma tarde
chuviscosa de meados de Dezembro, batem-me à porta do gabinete. Um casal
de jovens. Apenas uma palavrinha. Como sempre, mandei-os entrar.
Indico-lhes o sofá de napa preta defronte da secretária. Só a rapariga
falou. Além do cumprimento inicial, o rapaz manteve-se mudo durante o
tempo que durou o monólogo da companheira. Antes de principiar, a jovem
colocou-me sobre a secretária um espesso dossiê, preso por argolas.
Pensei: “Deve querer impingir-me alguma enciclopédia, aliciar-me para um
seguro de vida ou de morte, ou então prometer-me o paraíso de uma nova
religião inspirada na Bíblia...” Nada disso. Pertencia a uma organização
humanitária, oficializada no Diário da República. Pude comprová-lo. Era
afinal a primeira página do calhamaço protegida por um transparente,
aliás como todas as outras que constituíam o compacto volume. Já me não
lembra o nome da organização, apesar de ter passado, no final da
entrevista, um cheque à sua ordem. Tratava-se de iniciais que davam
origem a um designação excêntrica. Também pouco há-de interessar neste
instante. Há uns dois, três anos, outro casal da mesma organização tinha
vindo ter comigo. Lembrei-lho. A jovem confirmou a veracidade do facto,
afirmando que havia sido por seu intermédio que soubera do meu endereço
e da minha boa vontade. “Esses já morreram, sabe!” E a Isabel prosseguiu
numa voz viva e comunicativa: “Também sou seropositiva. Apanhei o vírus
através da droga. Deixei-a há seis anos. Tenho vinte e sete. Sou filha
única. Meu pai é tenente-coronel e minha mãe atirou-se de uma ponte de
comboio abaixo, aos trinta e seis, tinha eu dezoito e ainda bem viciada
na droga. Suicidou-se por minha causa. Desestabilizei o ambiente
familiar. Mais severo, meu pai, a dada altura, não quis saber de mais
nada e entrou em conflito com ela, que sempre me apoiou e me deu
carinho. Por fim, e como eu continuava cada vez mais desgraçada,
atirou-se para a morte, já não podia sofrer mais. Os remorsos pesam-me.
Tenho-lhe sentido a falta. Meu pai refez a vida, nasceu-lhe um filho do
novo casamento a quem muito quero. Mas a minha madrasta não consente que
eu viva lá em casa. Visito-os, muito agradáveis comigo, muita festa para
a festa, mas receia que o meu meio-irmão possa vir a ficar infectado.
Não a critico, até a compreendo. Há ainda muita ignorância acerca desta
terrível doença. Tenho aprendido a não levar a mal. E como poderia, se
há médicos que ainda a não entendem? Eu, por exemplo, não consigo tratar
dos dentes. Sempre que vou a um dentista, previno-o por uma questão de
lealdade que estou infectada - a consulta acaba logo. Tenho os dentes
numa desgraça, ora veja, e não encontro ninguém que me queira tratá-los.
Pode perguntar-me a razão por que caí na droga. A resposta é só uma: não
sei. Podia dizer que meu pai, como militar, não me dava grande atenção
nem carinho, o que se costuma ouvir... É muito pouco. Não sou
especialista, mas tenho para mim que deve ser do excesso de liberdade
que a juventude usufrui. No meu caso, deixei-me arrastar na onda. Não
culpo ninguém. Depois, para sair do inferno, penei tanto que nem consigo
sequer... Quando dele me livrei fui logo confrontada com a terrível
realidade - a Sida. Infectada há oito anos. Nunca quis tanto à vida como
desde a hora em que soube que tinha a sentença marcada. A partir daí,
tenho descoberto maravilhas em existir. Já é tarde de mais. Com este
trabalho a que me dedico, até me esqueço. Mas, à noite, confronto-me com
o pesadelo. Vivemos numa casa, no Espinhal, perto de Coimbra. Cinquenta
e um doentes sob o mesmo tecto, uns em estado adiantado de ruína, outros
nem tanto, mas para lá caminham. Um deles teve de ser internado nos
Hospitais da Universidade. Está mesmo no fim. Foi anteontem. Na
segunda-feira, se lá chegar, faz vinte e sete anos. Estamos a
preparar-lhe uma festinha de aniversário. Pensámos em oferecer-lhe um
par de jeans da marca de que ele mais gosta... Aquele livro que tem ali
na estante não é o último diário de Miguel Torga? Disseram-me - ainda
não o li - que, neste volume, ele fala muito da morte, é verdade?
Gostava que me lesse um pedaço, se não fosse muita maçada... O poema que
acaba de nos ler é mesmo um requiem por ele próprio... Ah, então é este
o último poema do livro. Não sabia que Torga principiava e terminava
todos os seus diários com uma poesia! Eu sinto o mesmo, mas não sei
dizer da maneira tão bela e profunda como ele o faz. Está certíssimo:
“aproxima-se o fim, e tenho pena de acabar assim...” Olhe, não o maço
mais, e muito obrigada por me ter atendido de maneira tão simpática. Um
feliz Natal para si e para os seus. Claro que volto, agradeço-lhe a
generosidade. Volto eu ou outra pessoa por mim. Nestas andanças da Sida,
adivinhar é proibido...” |
Cristóvão de Aguiar nasceu na
Ilha de São Miguel - Açores - em Setembro de 1940.
Concluídos os estudos elementares e liceais, matricula-se,
em 1960, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Interrompe o curso para ingressar no Curso de Oficiais
Milicianos. Parte para a Guiné em 1965, onde permanece cerca
de dois anos, sempre em zona de combate. Regressado a
Coimbra, termina o Curso de Filologia Germânica, dedica-se
ao ensino liceal, tendo, depois, sido Leitor de Língua
Inglesa, durante 32 anos, na Faculdade de Ciências e
Tecnologia. As suas principais obras são: Raiz
Comovida, trilogia romanesca;
Marilha, sequência narrativa;
Passageiro em Trânsito, novela em espiral;
A Tabuada do Tempo, a lenta
narrativa dos dias; a trilogia
Relação de Bordo, diário ou nem
tanto ou talvez muito mais.
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