Tomei de empréstimo a Shakespeare o título de uma das suas mais
hilariantes comédias. Penso que retrata bem a situação criada à volta
da última obra de José Saramago, o romance Caim. O muito barulho
continua a furar-nos os tímpanos, e há-de continuar até à náusea,
tanto na imprensa escrita como na difundida: artigos, entrevistas,
opiniões públicas na rádio e televisão, em que ouvintes e
telespectadores opinam sobre o que sabem e não sabem, maneira muito
portuguesa de ser mestre em toda a arte, ou burro em qualquer parte,
enfim, tudo quanto imaginar se possa: até teólogos, politólogos e
outros pedagogos de alto coturno foram igualmente convocados… A origem
de tal alvoroço na capoeira da paróquia reside nas declarações,
estratégicas ou não, do autor do livro, no dia do seu lançamento, em
Penafiel. O nada de toda esta lagariça será o romance que, na minha
modestíssima opinião, está longe de merecer tamanho alarido.
Segundo o primeiro prémio Nobel português da Literatura, a Bíblia mais
não será mais do que um “manual de maus costumes, horrores, atrocidades,
violências,” e que “é preciso ter muito cuidado quando se lê a Bíblia”…
Esta última afirmação fez-me viajar através do tempo, como a
personagem Caim do romance do mesmo nome, e ouvir de novo, quietinho
para não levar um beliscão da catequista, o padre da minha freguesia, aí
por volta de 1949, na altura em que lá chegaram pastores de credos
evangélicos, que iam tentar a sorte com o sentido de pescar algumas
almas para o seu grémio. A leitura da Bíblia constituía o seu
principal argumento, uma vez que o catolicismo pouco ou nada ligava ao
Livro: quem não lia a Bíblia, sustentavam os pastores, não poderia
compreender a palavra de Deus nem a doutrina de Jesus, nem muito menos
as inovações e falsidades do Romanismo perpetradas pela Igreja
Católica…
No Domingo seguinte, o padre, na homilia: “A Bíblia é de facto o livro
sagrado dos cristãos, mas, caríssimos irmãos em Cristo, não deveis
lê-lo, porque, além de difícil, não tendes luzes nem letras para
compreender o verdadeiro alcance das palavras lá escritas quase sempre
em parábolas; contentai-vos, irmãos, com as explicações das homilias
dominicais, e não aceiteis a oferta desse livro, que sei que andam a
dá-lo a quem quiser, pois, e caso aceitardes, entrará em vossas casas
um livro do diabo…”
Saramago não é católico, muito menos sacerdote,
mas, as palavras por ele proferidas, numa entrevista ao Jornal de
Notícias, de 19 de Outubro, deram-me, por instantes, a sensação de estar
ouvindo o pároco da minha freguesia, nos meados do século passado. As
palavras pouco se diferençam, e os argumentos são mesmo os mesmos… Não
sei se isto abona ou não a favor do escritor, que tem procurado, sem
êxito, destruir alguns mitos do Velho e do Novo Testamento…
O escritor pode e deve destruir mitos. Mas, para derrubá-los, é mester
saber em profundidade o que quer destruir. Lembro James Joyce que, com o
seu romance Ulysses, destruiu a cultura clássica, porque era um
grande conhecedor e especialista nessa matéria. O próprio José Saramago
afirma que “Nunca fui um leitor assíduo da Bíblia, mas penso que a
conheço bastante bem”… Será que basta? Será assim tão fácil destruir um
conjunto de livros de estilos e géneros literários diferentes que
serviram de base e inspiração à Literatura e Cultura Ocidental:
poesia, teatro, narrativa, música, pintura, escultura e até ao cinema?
Na Faculdade de Letras que frequentei, um dos professores de Literatura
avisava logo no início do ano: “Quem não leu a Bíblia não pode
compreender a Literatura Alemã, Inglesa, Portuguesa, Americana…
Portanto, quem ainda o não fez, trate de colmatar essa grave lacuna…”
Tão ateu como Saramago seria esse professor, o que dá que pensar,
sobretudo porque o Nobel Português afirma, com a segurança de quem
acaba de inventar a roda, que a Bíblia devia estar escondida, num canto
esconso da casa, fora do alcance das crianças, como se se tratasse de um
medicamento perigoso…
Sabendo-se pouco, isto é, sem se possuir a profundidade necessária sobre
o que se quer destruir, distorcer ou criticar, pode-se entrar num
jacobinismo sem consequência, apenas para chocar o burguês, ou num anticlericalismo primário, como aconteceu durante o século XIX. Nesse
tempo, já o Deus do Velho Testamento era considerado cruel,
sangrento, bruto, tudo quanto dele diz agora, em segunda mão, o nosso
Nobel da Literatura. Nada de novo, portanto! Dou como exemplo o poeta
Guerra Junqueiro e o seu livro A Velhice do Padre Eterno. Quem o lê
hoje? Quem se incomoda com as suas diatribes? Ouçamos Guerra
Junqueiro:
As crianças têm medo à noite, às horas mortas,
Do papão que as espera, hediondo, atrás das portas (…)
Não te rias da infância, ó velha humanidade,
Que tu também tens medo do bárbaro papão,
Que ruge pela boca enorme de um trovão,
Que abençoa os punhais sangrentos dos tiranos,
Um papão que não faz a barba há seis mil anos,
E que mora, segundo os bonzos têm escrito,
Lá em cima, detrás da porta do infinito!
Tudo isto é fogo-de-artifício, bem escrito, com ritmo e versos certos,
mas que pouco adianta, porque não se desce aí aos infernos da dúvida…
É tempo de citar o Eclesiastes: “Não há nada de novo neste mundo.
Aparece qualquer coisa e alguém diz: ‘Olha, isto é novo!’ Mas tudo
aquilo já existiu noutros tempos, muito antes de nós. Já ninguém se
lembra das coisas passadas e o mesmo acontecerá com as do futuro; não
se recordarão delas os que vierem mais tarde” […]. É muito difícil ser
original. E Saramago não o é. Pelo menos neste seu último romance,
Caim, que se situa no Velho Testamento, nem muito menos no Evangelho
Segundo Jesus Cristo, que tem como campo de confronto o Novo
Testamento.
Escrevi acima que este livro não merecia o alarido que dele está sendo
feito. Por duas razões: Primeira, porque o barulho não se deve à
leitura do livro; segunda, porque não se trata de uma obra maior do
escritor. Foram sopradas as trombetas de Jericó, não cuido nem
interessa se intencionalmente, e derrubaram-se os muros da nossa
cidade ou paróquia provinciana, que mostrou à saciedade que milhares
dos seus habitantes ainda não saíram da idade da pedra no tocante à
literatura, mas correram às livrarias para se abastecerem do romance e
grande parte deles também da Bíblia. Afinal, Saramago está a ser
colaborante ou então o aviso grave que fez sobre a perigosidade da
Bíblia deu efeito contrário. Não conseguiu apear o mito!
José Saramago, quanto a mim, atingiu o apogeu em No Ano da Morte de
Ricardo Reis, embora os dois primeiros romances, Levantado do Chão e
Memorial do Convento, sejam duas obras de grande valor. É humano e
natural que um escritor tenha curvas ascendentes e descendentes.
Alcançado, porém, o cume, segue-se a descida inexorável. O necessário é
saber sair a tempo, sem dramas, a fim de se não estragar o bom que para
trás ficou. Saramago, com Caim, continua em linha descendente. Há por
lá muitos lugares-comuns e expressões infelizes, impróprios de um
escritor da sua importância. Escrever um livro em quatro/ cinco meses,
como confessou numa entrevista televisiva, se bem que o assunto lhe
estivesse a latejar há muitos anos, não será bem avisado. Pouco depois
da publicação de A Viagem do Elefante, logo se apressaram alguns dos
críticos maldizentes da sua obra anterior ao beija-mão e ao panegírico
fúnebre: “Trata-se de um hino à Língua Portuguesa”, cantaram em coro bem
ensaiado… É que o título os deve ter induzido a uma interpretação
figurada, qual seja a do percurso de um grande escritor (o elefante),
que, com esse livro, iria terminar a sua carreira literária. Nessa
altura fica bem o elogio fúnebre, um hino à Língua Portuguesa… Do
romance Caim foi escrito pela Mulher no próprio blogue do escritor:
literatura pura… Quem há-de gabar o noivo senão a sempre-noiva?
Em continuação do santo Evangelho segundo José Saramago, é bom não
esquecer que o tema do pecado de Caim, o primeiro assassino da
humanidade, a tomar como verídicas as palavras do Génesis, não foi uma
novidade trazida pelo nosso Nobel à Literatura. Já antes dele, Byron,
Baudelaire, Victor Hugo e Tournier trataram do assunto com outra
elevação. O que irrita em Saramago, neste seu último romance, é a
leviandade e a pobreza de ideias e a falta de argúcia interpretativa
com que maneja os textos bíblicos, não raro lançando mão de uma
linguagem escabrosa, que pouco dignifica quem a utiliza.
Exemplifique-se: “O lógico, o natural, o simplesmente humano, seria que
abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim...”; ou, na
mesma página: “Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor,
abraão era um refinado mentiroso...”; mais adiante, na página 106,
escreve o Nobel: “Lúcifer sabia o que fazia quando se rebelou contra
deus, há quem diga que o fez por inveja e não é certo, o que ele
conhecia era a maligna natureza do sujeito”... Linguinha de prata, como
se diz na Ilha! Saramago já veio pedir desculpa por ter chamado filho
da puta ao senhor. Mas, como bom teólogo que está provando ser, logo
acrescentou: “Ele não é filho da puta, porque não tem pai nem mãe!”
Nada disto me choca no sentido religioso, crente não sou, apenas assíduo
leitor do Grande Romance da Bíblia, para utilizar o título do livro da
escritora americana, Pearl Buck, também Prémio Nobel da Literatura.
Convenhamos, porém, que em Caim, de Saramago, existe um vazio de ideias
e uma escrita paupérrima, palavrosa, que têm o condão de escandalizar
quem quer que seja, crente, ateu ou agnóstico, sobretudo quem ama a boa
escrita e detesta mentes distorcidas com problemas religiosos muito
mal resolvidos!
Saramago analisa o texto bíblico ao pé da letra. Atente-se nesta
invectiva do Nobel a um teólogo, numa entrevista televisiva:
“Que autoridade têm os senhores para pôr na Bíblia o que lá não está
escrito?” Que me desculpe o ilustre escritor, mas a sua interpretação
bíblica pede meças à das Testemunhas de Jeová e à dos Adventistas do
Sétimo Dia, que esperam Cristo desde 22 de Outubro de 1844, pelas
contas feitas, e bem feitas, pelo seu fundador, William Miller, que
antes pertencia à igreja Baptista. Depois, fundou o que veio a ser o
Adventismo, por ter interpretado a Bíblia de modo diferente do dos
Baptistas. Nas suas contas baseou-se nas profecias de Daniel. Está
escrito! E o que está escrito é a palavra de Deus... e a ela não se
pode mudar um til! Deu no que deu: em 22 de Outubro de 1844, toda a
gente, olhos pregados no céu, à espera, e Jesus não desceu... Grande
desilusão – ficou para a História como o Dia do Grande Desapontamento.
Houve debandada quase geral dos fiéis que se sentiram defraudados na
sua crença, e foram enfileirar-se noutros credos já existentes ou
erigindo outros, que a Bíblia contenta a todos que queiram inaugurar
novas religiões... Os poucos que restaram fiéis à igreja, agora
dirigida por Helen White, a profetisa que o Adventismo ergueu à altura
dos Profetas bíblicos, o que tem provocado dissidências no grémio
adventista, escreveu anunciou que Cristo realmente principiou a viagem
de descida à Terra, mas ficou a meio, em quarentena, num lugar entre o
céu e a terra, esperando por melhor ocasião para aterrar no Planeta
Azul...
Não abona muito em favor de um romancista da envergadura de Saramago
ser tão estrito na interpretação de um livro polissémico. E tanto assim
é que há centenas e centenas de igrejas cristãs, todas elas baseadas
no mesmo livro, a Bíblia, cujos textos, pelo visto, podem ser
interpretados de milhentas maneiras, ao gosto da imaginação de cada
qual. Cada uma religião cristã de per si (e todos os dias nasce uma nova
agremiação) são, segundo os seus pastores e teólogos, as únicas
verdadeiras, as que melhor interpretam a palavra inspirada de Deus...
Façamos um exercício com dois romances de José Saramago: Jangada de
Pedra e O Ano da Morte de Ricardo Reis. Se os interpretarmos como
Saramago faz em relação à Bíblia, temos que, na Jangada de Pedra, a
Península Ibérica se desarreiga do resto da Europa e vai pelos mares
afora em forma de jangada... Assim está escrito, assim se deve
interpretar, caso contrário ainda podemos ter Saramago de dedo em
riste a ameaçar: “Com que autoridade pões nos meus livros o que lá não
está?” O mesmo em relação ao outro romance, em que o seu autor traz
Ricardo Reis (heterónimo de Pessoa) do Brasil, onde se encontrava homiziado, para Lisboa, via marítima, ressuscita-o, fá-lo viver na
capital durante algum tempo, morrendo-o mais tarde e enterrando-o no
cemitério do Alto de São João. Quem poderá acreditar nisso, se tomado à
letra? Duas ricas metáforas serão as dos dois romances, que como tal
devem ser interpretadas, mas Saramago não consente... A avaliar pela
sua exegese bíblica, tem a razão do seu lado, como sempre... Até quando
discursou, em Lisboa, nas comemorações do 25.º aniversário da
Revolução de Abril, proclamou do alto do seu pedestal: Se não tivesse
havido revolução, o país estava como está!
Só de um Nobel, na altura ainda a cheirar a novo, poderia sair tal
pesporrência. Pôs aquele ovo na sessão comemorativa e logo abandonou
a sala, para ir dizer missa em outra freguesia, que o dia era de missas
e homilias... Ninguém objectou. Porquê? Temor reverencial ou medo do
politicamente incorrecto? E por lá havia escritores e jornalistas…
Mas, no dia seguinte, nem uma palavra!
Nada há de novo debaixo da rosa do Sol! Nem tão-pouco o tema de Jesus
Cristo, que Saramago, no seu Evangelho, e apesar de páginas sublimes,
não conseguiu desmistificar o emaranhado que se teceu à volta da figura
de Jesus e seus discípulos, sendo por vezes mais fácil acreditar no Novo
Testamento do que na versão saramaguiana (coteje-se os dois textos
sobre o milagre das Bodas de Caná, o da Bíblia e o do Evangelho), e
ficar-se-á elucidado. Essa tarefa desmistificadora coube, porém, entre
outros, a Renan, em A Vida de Jesus), a Gèrard Messadié, em Um Homem que
se tornou Deus, que o autor transformou em romance (edição
esgotadíssima da Difusão Cultural, que esteve ao lado do Evangelho,
nas livrarias, et pour cause). Trata-se de um estudo profundo sobre o
primeiro século da nossa era, em que o autor é especialista. Lido e
relido na altura em que foi posto à venda em Portugal, menos de um ano
antes de o Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago, fez com que este
último me tivesse sido uma desilusão. Primeiro, pela fragilidade de
argumentos que Saramago esgrimiu no seu romance, demonstrando uma falta
confrangedora de conhecimentos históricos; segundo, pela algazarra
que levantou por causa do então secretário da cultura, que fez o jeito
de proibir que concorresse a um certame internacional; terceiro, pelo
consequente exílio dourado de Saramago, em Lanzarote, embezerrado com
a pátria e seus governantes, evidenciando, com essa atitude, um
provincianismo de virgem ofendida.
Além dos livros citados que foram ao fundo da questão, encontram-se
dois livros de uma teóloga alemã, Uta Ranke-Heinemann, professora de
teologia católica na Universidade de Essen: Eunuchs for the Kingdom of
Heaven (Eunucos para o Reino dos Céus) e, sobretudo, Putting Away
Childish Things (Deixando de Criancices, tradução livre, minha), ed.
HarperSanFrancisco, 1992, que lhe valeu a irradiação da cadeira de
Teologia, passando a leccionar História das Religiões. Os assuntos doutrinais-chave de que trata e se desmistifica neste livro são: The
divinity of Christ; the Virgin Birth; the Empty Tomb (o sepulcro vazio),
e muitos outros, que a autora considera que distorceram a mensagem do
Jesus autêntico e genuíno...
Tem sido de resto o PSD um grande adjuvante na promoção da obra saramaguiana: no século passado, o secretário da cultura; neste, o
inefável deputado europeu... A juntar às declarações explosivas de
Saramago, em Penafiel, que tanta balbúrdia tem causado, fica o
ramalhete publicitário bem florido e rematado. Saramago não acredita,
mas tem anjos da guarda a zelar pelo êxito comercial de algumas das suas
obras mais polémicas... O autor do romance Caim deve ser dos homens mais
tementes a Deus em todo o universo...
No JL, de 3 de Novembro, Miguel Real, entre muitas outras coisas,
escreve: “Em Caim permanece o estilo tradicional de Saramago (já amiúde
analisado), tanto barroquizante (…) (uma floresta de palavras
(sublinhado meu) ilustradora de uma ideia) e anarquizante (uma espécie
de everything goes), isto é, a confluência de um léxico antigo e vernacular – avonde (pp.16 – com um vocabulário moderno, desenhando
um melting pot semântico, aparentemente espontâneo, pelo qual a
lógica do texto cria as suas próprias hierarquias gramaticais e
ideológicas (...).
O estilo enxuto, descarnado, nunca foi dom de Saramago. O escritor
explica tudo até à exaustão, o que não raro se torna enfadonho.
Dir-se-ia que há uma inundação de palavras, grande parte delas inúteis,
como se tivesse ocorrido uma séria avaria na canalização provinda da
nascente criadora. Por esta e outras razões, muita boa gente letrada costuma(va) afirmar, em surdina (o politicamente correcto vigora com
força), que se a certos livros de Saramago fossem retiradas cem ou
cento e cinquenta páginas, não perderiam nada: pelo contrário,
ficariam mais claros, exactos, sucintos…
Quando assim acontece, alguma coisa está podre no reino da literatura. A
arte de dizer muito em poucas palavras é difícil, dura, requer muito
esforço, muita lima, muita monda… Escrever é cortar! Veja-se Miguel
Torga, um dos mais elevados expoentes de concisão de escrita! Se lhe
fosse retirada uma só palavra de uma frase ou de um verso, logo
ficariam mancos…
Não posso acreditar numa arte literária em que palavra menos palavra vai
tudo dar ao mesmo…
Os lugares-comuns sempre ocuparam uma posição de relevo na obra
romanesca de Saramago. Só do romance Caim extraí uma caterva deles:
máquinas de encher chouriços; do pé para a mão; dar tempo ao tempo;
para aí virado; fazendo das tripas coração; carta branca; mal se podia
ter nas pernas; dois coelhos de uma cajadada; a carne é supinamente
fraca (genial, o acrescento do advérbio); chorar o leite derramado
(expressão traduzida, à letra, do inglês: em português de lei seria:
depois de o mal feito, chorar não é proveito; mas, veja-se a frase
completa, para aquilatarmos da genialidade de quem a engendrou:
“Chorar o leite derramado não é tão inútil quanto se diz, é de alguma
maneira instrutivo porque nos mostra a verdadeira dimensão da
frivolidade de certos procedimentos humanos, porquanto se o leite se
derramou, derramado está e só há que limpá-lo, e se abel foi morto de
morte malvada é porque alguém lhe tirou a vida […]” (Lili Caneças não
diria melhor!) …
E por aqui me quedo, que agora me não apetece fustigar mais. Uma nota
ainda: durante a leitura do livro, ouvi dezenas de vezes, a
matraquear-me no pensamento, o diálogo do Ambrósio com a Senhora, tantos
são os algos que o escritor utiliza ao longo do livro: “O que eu queria
era algo, Ambrósio, algo de bom, entende, Ambrósio?!” “Entendo, sim, Mylady”...
Analise-se alguma da tão autoproclamada ironia saramaguiana, associada
a um humor do mais fino recorte. Examinemo-los, contextualizados, em
alguns passos de Caim:
“Falaste como um livro aberto, disse o querubim, e adão ficou contente
por ter falado como um livro aberto, ele que nunca tinha feito estudos.
(…)”, pp. 30;
“(…) Esta espada de fogo, para alguma coisa servirá finalmente, basta
chegar-lhe a ponta em brasa aos cardos secos e à palha e tereis aí uma
fogueira capaz de ser vista desde a lua (…) acabaria por pegar fogo ao
jardim do éden, e eu ficaria sem emprego (…)”, pp.31;
“O velho das ovelhas não estava ali, o senhor, se era ele, dava-lhe
carta-branca (hífen da minha responsabilidade), mas nem mapa de
estradas, nem passaporte, nem recomendações de hotéis e restaurantes
(…)”, pp. 78;
“Há que levar em consideração o facto de caim estar mal informado
sobre questões cartográficas (…)”, pp. 80;
Acerca do jerico em que caim percorria o mundo através do espaço e do
tempo: “Pena não haver ali alguém que soubesse interpretar os
movimentos das suas orelhas, essa espécie de telégrafo de bandeiras
com que a natureza o dotara, sem pensar o afortunado bicho que
chegaria o dia em que quereria expressar o inefável, e o inefável,
como sabemos, é precisamente o que está para lá de qualquer
possibilidade de expressão (…), pp.81 (uma das mais profundas
definições de inefável jamais proferidas);
“O anjo fez cara de contrição, Sinto muito ter chegado atrasado, mas a
culpa não foi minha, quando vinha para cá surgiu-me um problema
mecânico na asa direita, não sincronizava com a esquerda, o resultado
foram contínuas mudanças de rumo que me desorientavam, na verdade
vi-me em papos-de-aranha (?) para chegar aqui (…)”, pp.88… etc., etc. A conjugação verbal da segunda pessoa do plural é tão vulgar no Norte do
País e em Trás-os-Montes, que toda a gente a sabe utilizar de olhos
fechados. Ao invés, no romance Caim, as misturadas são frequentes. Do
mesmo modo, o descaso votado à diferenciação de tempos verbais não é
despicienda. Apenas um exemplo dos muitos que poderiam ser dados “[…]
Ia, como alguém dirá, decentezinha [referência a Eva], embora não
pudesse evitar que os seios, soltos, sem amparo, se movessem ao ritmo
dos passos. Não podia impedi-los, nem em tal pensou (pensara, tinha ou
havia pensado), pp. 26.
No tocante à conjugação verbal da segunda pessoa do plural, analisemos
apenas algumas em que o autor se ensarilha e ninguém dos seus acólitos
lhe acudiu: “(…) Depois é convosco, aí já não posso nada, arranjem
(arranjai) maneira de se juntarem (vos juntardes) à caravana, peçam
(pedi) que os contratem (vos contratem) só pela comida, estou
convencido de que quatro braços por um prato de lentilhas será bom
negócio para todos, tanto para a parte contratada, quando isso
acontecer não se esqueçam (vos esqueçais) de apagar a fogueira, assim
saberei que já se foram (vos fostes) (…)”, pp. 31.
Poderia continuar o massacre, mas não vale a pena: a um Nobel todos os
pecados lhe são perdoados. Os estudiosos que o dissecam, como as beatas
o Missal Romano, lá se encarregam de lhe transformar os erros em
virtudes e em novas regras… Querem continuar sentados ao redor da
fogueira, soprando em sustenido as trombetas da louvaminhice, rindo às
gargalhadas quando o patrono conta ou escreve uma frase humorística, sem
piada nenhuma, na esperança de conseguir, pela devoção que lhe
dedicam, a sua migalhinha de fama e prestígio, no universo globalizado
da literatura! É tempo de proclamar: O rei vai mesmo nu… Nuinho em
folha!
Outra das pechas que enxameiam o livro e a Língua Portuguesa: não tenho
a menor dúvida, a menor ideia! Menor do que quê? Trata-se de um
comparativo de inferioridade. Melhor seria escrever ou dizer não tenho
a mais pequena dúvida ou a mínima ideia!
Sobre o tempo dos verbos, no discurso indirecto, há também pouca
segurança ou mesmo ignorância: em pano nobelizado também chovem nódoas
negras… Que dizer desta frase de Eva, no Éden, em resposta a Deus
passeando pela brisa da tarde (título do livro do mesmo nome, de Mário
de Carvalho, retirado do Génesis: “A serpente enganou-me e eu comi,
Falsa, mentirosa, não há serpentes no paraíso, Senhor, eu não disse que
haja serpentes no paraíso (…)”, pp.19.
Haja Deus! Nem um simples discurso indirecto Eva consegue encarreirar…
“Não disse que haja. Não disse que havia”, assim é que está certo, D.
Eva Saramago del Rio! A mesma sábia que escreveu: “Se Deus existisse,
já tinha vindo falar com Voltaire e Saramago”. Ó prosápia das
prosápias, tudo é prosápia e vaidade!
Tempo de fechar a tenda desta escrita. Vou já arrumar o livro na
estante, junto dos irmãos colaços. Tenho a esperança de que no futuro um
dos meus trinetos ou tetranetos o tire da prateleira para o ler e possa,
depois, atestar, com a segurança que o tempo costuma reiterar, ou
retirar, às grandiosidades fabricadas no presente, nessa altura já
pretérito muito perfeito: “Foi este o primeiro Nobel da Literatura de
Portugal? De certeza?
Quanto a mim, não insisto: desisto. Não sei se perdi ou ganhei tempo.
Quando o embaixador de Espanha, Porras & Porras, apresentou as
credenciais ao Rei D. Carlos para encetar as suas funções diplomáticas
no nosso País, El-Rei terá comentado com um dos ministros do reino: “Não
é pelo nome, é pela insistência”… Eu também não insisto mais. Nem que me
caiam pedaços de céu velho em cima da cabeça. Mais não ponho na carta,
já vai mui longa. |