BELVEDERE BRUNO
O homem que curava

Fazia um tempão que nem alegria tinha. Tudo que sempre mais gostei, beber, jogar, mulheres, o diabo, agora jogava fora. Pra quê, se aquilo era sempre a mesma coisa? O pessoal resmungava, cadê Diógenes? Onde andará metido aquele cara? Vai ver arrumou alguma nega e se mandou. E eu nada. Era comer, deitar e dormir. Tudo me dava raiva. 

Aí, um dia, não sei como nem por quê, vai ver foi ziquizira, dei pra ler bulas de remédios. Era o meu jornal. E tantas li, que virei doutor de mim mesmo. Eta vida de merda. Mas o que fiz gerou alvoroço. Filas passaram a se formar diante de minha casa para que  eu receitasse.  Baixava um troço em mim e ficava falando um monte de coisa no meu ouvido. Juro. O troço falava sobre a vida dos outros, dizendo o que deviam ou não fazer. Dava pitaco em tudo.  O pior é que sempre acertava.

Então, tive a infelicidade de adaptar um quartinho no fundo da casa para atender o povo. Peguei uma mesa bem comprida, coloquei em cima livros religiosos, ervas, velas, alguns santos e um copo com água,  que eu dizia ser benta.  Acabei virando uma espécie de Salvador. Vizinhos abandonaram médicos, igrejas diminuiram rituais, já que as pessoas encontravam em mim resposta às suas mazelas. 

O bicho pegou quando dois filhos que moravam em outra cidade chegaram de surpresa para passar um feriado comigo e se depararam com a situação. Pai, você virou charlatão. Quer ser preso? Eu, exaltado, perdi a compostura. Vão pro inferno, desgraçados! Tô meses com essa fraqueza dos infernos e nem  telefonaram . Aproveitando a presença deles, padres e pastores foram reclamar da evasão de fiéis. Funcionários dos postos de saúde lamentaram queda nas estatísticas. Eles lhes deram razão. A população revidava as acusações com passeatas e cartazes:  "Queremos Diógenes! Basta  de  perseguição!" 

Dois meses depois, fui levado à força pelos meus filhos a um posto de saúde e de lá, acreditava o povo, para uma clínica psiquiátrica. Os  ingratos voltaram às suas casas, não mais querendo contato comigo.

Jamais se mencionou a tal clínica para onde teria sido levado, embora todos os beneficiados por minhas  curas decerto sonhassem em amenizar a imaginada  solidão em que eu  vivia. Sequer houve clínica psiquiátrica. Saindo do posto de saúde, fui levado para uma cidade do interior da Bahia, onde vivi bem e sozinho durante alguns anos. Nunca mais vi bulas, medicamentos, nem vozes estranhas falavam por mim. Sentia, no entanto, vontade de retornar às  minhas raízes. Soube que a população, mesmo tendo se passado tantos anos, ainda perguntava o que havia ocorrido, mas não havia quem desse  resposta.Na opinião da maioria, fui  um Enviado dos Céus,  incompreendido em minha  Missão Maior.

Há dois anos realizei meu desejo. Voltei. Felizmente, não fui reconhecido, embora more na mesma casa.  Não me interessa perder minha paz. Prefiro ser esse anônimo, um doido, seja lá o que for. Os cabelos e barbas longos, embranquecidos, o corpo curvado, minguado,  e a voz rouca fizeram de mim um estranho. Afinal de contas, muito tempo se passou. Confesso que não  faço cara boa pra ninguém. Minha bengala é a melhor arma quando as crianças tentam brincadeiras de mau gosto. O pessoal da minha época me olha um tanto desconfiado, mas são poucos os que ainda estão vivos. Os jovens dizem que sou mais um louco na cidade. E assim vou vivendo.

Passo grande parte de  meus dias sentado numa  cadeira, que a família denominou  cadeira da  morte. Uma herança de meus avós. Fumando um charuto, cujo cheiro  afasta qualquer aproximação, penso que a Senhora  sempre parecerá surda aos meus apelos.

 
 

Belvedere Bruno nasceu  em Niterói/RJ, onde reside.  Cedo despertou  para as letras, graças  ao incentivo do pai, que sempre presenteou os filhos com livros. Atualmente, dedica-se às prosas, gênero onde mais se identifica. Tem várias antologias publicadas, como diVersos - Scortecci, @teneu.poesi@ - Scortecci, Com licença da palavra - Scortecci, O Conto Brasileiro hoje - Volumes VIII, Volume X e Volume XII - RG Editores. Tem publicações em diversos jornais da cidade, assim como em  outros estados, e mesmo no exterior. Vinho Branco, safra especial de contos e crônicas, seu voo solo, será lançado em maiode 2010.
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E-mail: belbruno@predialnet.com.br