Observando a movimentação em torno do último dia
deste ano, decidi iniciar o que vinha adiando há tempos, desde que
Rodolfo se foi, me deixando em meio a livros, filmes antigos e uma série
de fotos em tom sépia.
Minha lembrança mais antiga é de uma rua erma, com
luzes nos postes, e eu caminhando de mãos dadas com meus pais. Nunca
consegui saber aonde queríamos chegar, por mais que remexesse em minha
memória, indagasse aos meus pais e irmãos. Quantos anos eu teria? A
primeira lembrança permanece envolta em brumas .
Dos cinco filhos, sempre fui a sem-mimos, talvez pela
impetuosidade e destemor que demostrava e me fazia mergulhar nas coisas
como se vivesse com olhos vendados .
Hoje, me perguntam por que continuo cercada pelas
lembranças de Rodolfo. Dizem que eu poderia vender este apartamento
imenso, comprar algo menor e viver mais tranquilamente. Nunca entendi a
necessidade de se aquietar em vida.
A multidão na orla ainda me encanta, apesar de já
passados tantos anos e os cenários se repetirem.
Bendigo a disposição de sempre celebrar a vida e
nunca me cansar de seus flashbacks. Admiro a fé daqueles que se vestem
de branco, pulam sete ondas e jogam flores para Iemanjá.
Casei-me com Rodolfo aos dezesseis anos. Logo tivemos
filhos. Ana Maria era vivaz, gostava de cantar, tocar piano, brincar.
Ronaldo era calado e tímido. Escrevia contos desde os sete anos. Diziam
que era precoce . Partiram prematuramente. Ronaldo, aos nove, Ana Maria,
aos treze.
Rodolfo e eu vivemos em vários estados, e mudamos de
país três vezes, por conta de suas atividades. Trabalhava muito, é fato.
Com a mesma intensidade com que esquecia seus deveres conjugais. Aliás,
isso de deveres conjugais não está de acordo com a linguagem atual. O
fato é que fui sendo relegada a segundo, ou, quem sabe, a terceiro
plano, mas sempre levando a vida com leveza.
Talvez tenha desenvolvido, por defesa, essa força de
viver em plenitude. Tudo me deslumbra. O mar, as montanhas, o céu azul,
as chuvas torrenciais, o cheiro de terra molhada, as cascatas, os
pássaros, a lua e as estrelas...
Mas sei que é chegada a hora de meu inventário .
Gosto de minha casa de praia. Agora, desfruto mais dela do que na época
de Rodolfo, que sempre inventava motivos para poluir os momentos que
podiam ser felizes. Tinha uma frieza em relação às coisas, que me
causava espanto . Sol o queimava, chuva estragava seus prazeres,
pássaros cantando irritavam seus ouvidos. No fundo, o problema era eu,
um entrave em sua vida. O bom foi ele ter se aquietado cedo, pois, a
partir dos cinquenta, fiquei livre para amar, viver em harmonia com a
natureza, ser feliz. Saudade? Talvez do que não vivi, o que chega a ser
melancólico, confesso,mas não fico elaborando tristezas.
Conservo os livros, as fotos, os filmes dele, mas há
muito ele não faz parte de minhas memórias . Meus filhos, sim. Eles se
foram, mas ficaram na lembrança. E muito bem guardados. Lembro-me,
sorrindo, de cada etapa de suas vidas.
Não me preocupo com a morte. O dia em que ela vier,
será recebida com naturalidade. Já fiz testamento em cartório. Sei que o
legado será um transtorno para alguns e grande alegria para outros.
Manifestei o desejo de ser cremada, dispensei velório e flores.
Quanto às cinzas, tive uma ideia: lançarem aqui na
praia , diante do prédio. Quem sabe existe mesmo esse negócio de
espírito? Nunca consegui acreditar em vida além da morte, mas, de uns
tempos pra cá, ando preferindo o "quem sabe". No entanto, nada me
inquieta, simples especulações.
Enquanto estiver por aqui, faço questão de beber meu
uísque, sair com amigas, me divertir bastante! Quando me aquietar, acho
que sentirei muita saudade da alegria com que vivi . Porém, após o
último suspiro, não sei o que me espera.
Meia-noite! Os fogos dão um show! Verdadeiro bailado
de cores no ar. Da janela, sorrio feito criança. Deixo por algum tempo
meu inventário de lado, e retorno às alegrias do agora. Com uma taça de
vinho, brindo ao Ano Novo! |