ANTÓNIO NAUD JÚNIOR..
O ANO LITERÁRIO
A literatura que se produz no Brasil reflete os impasses e dilemas vividos por uma cultura massificada, limitada pela mentalidade colonizada dominante, pelo caráter popularesco e flutuante do seu processo histórico. Mesmo assim, embora haja quem diga o contrário, ela não está morta e enterrada, nem vive somente de glórias do passado. A luminosidade e a expressividade verbal que transmite brilharam em 2006 em livros, blogs, sites, saraus, suplementos e revistas literárias. Significante e corajosa, vetora de sensações e fluências, a nossa literatura busca um caminho próprio numa época inglória em que pouca importância se dá ao livro. Ela é farta em elementos, pertinências, alegorias, metáforas, alusões, frêmitos do autor, personagens e narrativas interessantes, que, aliadas às peculiaridades da língua portuguesa, enriquecem o universo da escrita, como também se prestam a variedades de interpretação.
 
ALQUIMIA DAS PALAVRAS
 
Publicado em 2005, “Cinzas do Norte” (Companhia das Letras), foi o mais poderoso livro nacional que li em 2006. Conta a história de dois amigos e tem como pano de fundo a ditadura militar. Seu autor, Milton Hatoum, nascido em Manaus e descendente de libaneses, é talvez o nosso maior escritor vivo, merecedor do Nobel. Com domínio perfeito da escrita e utilizando sabiamente a alquimia das palavras, Hatoum publicou apenas dois outros livros em quase três décadas de ofício literário: “Relato de um Certo Oriente” (Companhia das Letras, 1989) e “Dois Irmãos” (Companhia das Letras, 2000). Outra criação excepcional, “K – O Escuro da Semente” (Ver o Verso), editada em Portugal, confirma a vigilância intelectual e o assombro metafísico da escrita de Vicente Franz Cecim. No coração dos elementos, o escritor paraense narra sempre o mesmo livro sob novos ângulos, sem limites nem fronteiras entre o real e o imaginário. Sua odisséia poética foge dos enquadramentos literários e está ambientada em Andara, uma espécie de Ítaca, com anjos caídos, seres que levitam e assombrações. É um universo peculiar do autor, como Macondo a García Márquez ou Yokonapatawpha a William Faulkner. Ao contrário da trama tradicional que reproduz ações pela linguagem, a linguagem é a única ação.
 
MEMÓRIAS, INDIGNAÇÃO, LIRISMO AGUDO
 
Dentre outros livros lidos em 2006, destaco o visceral “Contos Negreiros” (Record), de Marcelino Freire, prêmio Jabuti na categoria Contos e Crônicas, que revela um autor ousado e cheio de energia; “Estar Sendo, Ter Sido” (Globo), prosa de recordações emocionais e eróticas escrita pela surpreendente Hilda Hilst em 1997; respirando vivências, memórias e indignação, “Resmungos” (Imprensa Oficial), uma seleção de crônicas do genial poeta e escritor Ferreira Gullar; a sensibilidade de João Gilberto Noll em “A Máquina do Ser” (Nova Fronteira); o hipnótico “Cangaceiros” (Terceiro Nome), da historiadora francesa Élise Jasmin, que estuda e ilustra as principais vivências de Lampião e seu bando; prêmio Jabuti de Melhor Livro de Não-Ficção, a história da célebre cantora e comediante luso-brasileira, Carmen Miranda, pode ser lida em “Carmen – Uma Biografia” (Companhia das Letras), de Ruy Castro, não deixando de ser também um passeio encantador pelo Rio de Janeiro dos anos 20 e 30 do século passado; “Ela e Outras Mulheres” (Companhia das Letras), contos de Rubem Fonseca num estilo duro e seco, resvalando em violência e crueldade; o segundo livro da “Trilogia Íntima” da gaúcha Márcia Tiburi, “A Mulher de Costas” (Bertrand Brasil), merece leitura atenta; a divertida homenagem de Aleilton Fonseca a Guimarães Rosa em “Nhô Guimarães” (Bertrand Brasil); as 25 crônicas escritas pelo irreverente João do Rio entre 1905 e 1910, em “Vida Vertiginosa” (Martins Fontes); “Mastigando Humanos” (Nova Fronteira), uma fábula urbana sarcástica e psicodélica de Santiago Nazarian; o cotidiano cruel e patético da periferia em “Ninguém é Inocente em São Paulo ” (Objetiva), de Ferréz; a prosa amadurecida de Lima Trindade na novela “Supermercado da Solidão” (LGE), ambientada em Brasília e marcada por referências pop; “A História de Amor de Fernando e Isaura” (José Olympio), de Ariano Suassuna, uma adaptação da famosa e trágica lenda medieval de Tristão e Isolda; nuances de humor e sagacidade em “Estória de Facão e Chuva (Trinta e Cinco Crônicas e Duas Louvações)” (Editus), do baiano Antônio Lopes; “Pelo Fundo da Agulha” (Record), de Antônio Torres, vagando entre o sono e a vigília; “A Altura e a Largura do Nada” (Jaboticaba), de Ignácio de Loyola Brandão, que retrata Araraquara, a cidade natal do autor; o lirismo agudo do mineiro Lúcio Cardoso relançado em “Maleita” (Civilização Brasileira), seu primeiro romance; um olhar amplo sobre a produção cinematográfica brasileira recente em “Cinema Brasileiro 1995-2005 – Ensaios sobre uma Década” (Azougue), de Daniel Caetano; “Histórias Mal Contadas” (Rocco), de Silviano Santiago, mistura autobiografia e ficção; “Memorial de Outono” (Bertrand Brasil), com o intenso Hélio Pólvora revisitando sua infância e meditando com delicadeza e ironia sobre o tempo; e o desassossego sombrio e amaldiçoado de Chico Lopes em “Dobras da Noite” (Instituto Moreira Salles).
 
PAISAGEM POÉTICA
 
Nos livros de poesia lidos em 2006, lembro com prazer e inquietação: “A Imitação do Amanhecer” (Globo), de Bruno Tolentino, uma reunião de poemas com rima e métrica escritos ao longo de 26 anos; a garra nordestina presente em “O Cão de Olhos Amarelos e Outros Poemas” (Girafa), de Alberto da Cunha Melo, e “Tratado das Veias” (As Letras da Bahia), de Ritinha Santana, que se joga de corpo e alma na memória e no erotismo; todas as letras escritas por Chico Buarque de Holanda desde “Sem mais Samba”, de 1964, em “Tantas Palavras” (Companhia das Letras); a fome confessional e subjetiva de “50 Poemas Escolhidos pelo Autor” (Galo Branco), de Antonio Carlos Secchin; “Melhores Poemas” (Global), um quase manifesto social do cearense Patativa do Assaré; as faces secretas da literatura grapiúna em “Os Becos do Homem” (Via Litterarum), de Jorge de Souza Araújo, e da paraibana em “Guarda-Chuvas Esquecidos” (Lamparina), de Antônio Mariano; “Antologia” (Quasi), uma panorâmica dilacerada e visual de Arnaldo Antunes; e o claro-escuro de “Como no Céu & Livro de Visitas” (Bertrand Brasil), do gaúcho Fabrício Carpinejar.
 
Nem sempre bem-sucedidos comercialmente e muitos deles desprezados pela imprensa, tais livros são exemplos do vigor de uma literatura que se revela no equilíbrio de qualidades opostas ou discordantes: da idéia com a imagem; do individual com o representativo; do sentido de novidade com temas batidos; da imaginação com as paixões. Sendo assim, a literatura nacional continua provando que é universal, não faz feio e causa prazer imediato, driblando inúmeras dificuldades. Não é uma simples e primária ocupação frívola – tem constituído o estudo e o deleite de mentes e corações de um país gigantesco e semi-analfabeto. E se a talentosa literatura brasileira não muda a nossa realidade infeliz é porque já aprendemos que a sabedoria não pode ser captada e congelada em palavras, mas deve ser atuante, no meio das desilusões, enquanto vivermos.
NÃO DEIXE DE LER!
ROMANCE
“Cinzas do Norte” (Companhia das Letras), de Milton Hatoum;
“Estar Sendo, Ter Sido” (Globo), de Hilda Hilst;
“A História de Amor de Fernando e Isaura” (José Olympio), de Ariano Suassuna;
“K – O Escuro da Semente” (Ver o Verso), de Vicente Franz Cecim; “Maleita” (Civilização Brasileira), de Lúcio Cardoso;
“Mastigando Humanos” (Nova Fronteira), de Santiago Nazarian;
“A Mulher de Costas” (Bertrand Brasil), de Márcia Tiburi;
“Nhô Guimarães” (Bertrand Brasil), de Aleilton Fonseca;
 “Pelo Fundo da Agulha” (Record), de Antônio Torres;
“Supermercado da Solidão” (LGE), de Lima Trindade.
 
CONTOS & CRÔNICAS
Contos Negreiros” (Record), de Marcelino Freire;
“Dobras da Noite” (Instituto Moreira Salles), de Chico Lopes;
“Ela e Outras Mulheres” (Companhia das Letras), de Rubem Fonseca;
“Estória de Facão e Chuva (Trinta e Cinco Crônicas e Duas Louvações)” (Editus), de Antônio Lopes;
“Histórias Mal Contadas” (Rocco), de Silviano Santiago;
 “A Máquina do Ser” (Nova Fronteira), de João Gilberto Noll;
“Ninguém é Inocente em São Paulo ” (Objetiva), de Ferréz;
“Resmungos” (Imprensa Oficial), de Ferreira Gullar;
“Vida Vertiginosa” (Martins Fontes), de João do Rio.
 
POESIA
“Antologia” (Quasi), de Arnaldo Antunes;
“Os Becos do Homem” (Via Litterarum), de Jorge de Souza Araújo;
“O Cão de Olhos Amarelos e Outros Poemas” (Girafa), de Alberto da Cunha Melo;
“50 Poemas Escolhidos pelo Autor” (Galo Branco), de Antonio Carlos Secchin;
“Como no Céu & Livro de Visitas” (Bertrand Brasil), de Fabrício Carpinejar;
“Guarda-Chuvas Esquecidos” (Lamparina), de Antônio Mariano;
 “A Imitação do Amanhecer” (Globo), de Bruno Tolentino;
 “Melhores Poemas” (Global), de Patativa do Assaré;
 “Tantas Palavras” (Companhia das Letras), de Chico Buarque de Holanda; “Tratado das Veias” (As Letras da Bahia), de Ritinha Santana.
 
NÃO-FICÇÃO
“A Altura e a Largura do Nada” (Jaboticaba), de Ignácio de Loyola Brandão;
“Cangaceiros” (Terceiro Nome), de Élise Jasmin;
“Carmen – Uma Biografia” (Companhia das Letras), de Ruy Castro;
 “Cinema Brasileiro 1995-2005 – Ensaios sobre uma Década” (Azougue), de Daniel Caetano;
“Memorial de Outono” (Bertrand Brasil), de Hélio Pólvora.
 
(*) Escritor e jornalista. Autor de “Se um Viajante numa Espanha de Lorca” (Pé de Página, 2005, Portugal) e “Suave é o Coração Enamorado” (Via Litterarum, 2006).