A vida é feita de luz e sombra; a
morte é a sombra da vida; a matéria é a sombra do espírito. Afirmar a
sombra sem a luz, defender a cultura da morte sem ter em conta a cultura
da vida, corresponderia a um reducionismo da vida à sua sombra,
significaria a negação da vida, porque, a que temos é polar, é um todo
feito de dor e alegria. Se nos preocupamos só com a sombra perdemo-nos no
abismo do ser, esquecendo que a sombra é apenas uma ilação da luz e que a
paixão inclui a ressurreição!
A discussão sobre a eutanásia oferece
a oportunidade de se reflectir sobre a existência nas suas componentes,
vida e morte.
Hoje, a pressão de ligas e
organizações internacionais (organizações da ONU, Bruxelas, certas
Faculdades universitárias, etc.), sobre a opinião pública e os
parlamentos, é de tal ordem que se cria, nas opiniões públicas nacionais e
parlamentos, a ideia de que seguir aquelas é moderno e sinal de
desenvolvimento. Fatal para o desenvolvimento
qualitativo é que o povo não pensa, segue a moda.
Prática na
Alemanha
A Alemanha, antes de publicar a lei
sobre a Eutanásia, teve uma discussão pública alargada e sem cólicas sobre
o assunto; a ela seguiu-se o debate parlamentar com muita profundidade e
dignidade, deixando fora o discurso ideológico e político-partidário, cada
deputado decidiu apenas à luz da sua consciência. O parlamento proibiu
o suicídio assistido e criminalizou o comércio com a eutanásia.
Concretamente: nem indivíduos nem
empresas podem funcionar como serviços de apoio à eutanásia. Quem fizer
negócio com um medicamento mortífero que entregue a uma pessoa com
cancro/doença incurável, é ameaçando com 3 anos de prisão. O suicídio em
si não é penalizado. Na Alemanha a ortotanásia (abreviação da morte
desligando aparelhos e renunciando ao emprego de medicamentação de
prolongamento da vida) é permitida desde que o moribundo o tenha declarado
em estado consciente. Neste aspecto a Alemanha pronunciou-se no
sentido de uma sociedade de valores cristãos.
Prática na Holanda
Na Holanda, na Bélgica e no
Luxemburgo a eutanásia é legal mas mete medo a muitos idosos que, com
receio que os familiares disponham sobre eles, preferem emigrar:
http://www.dw.com/pt/idosos-fogem-da-holanda-com-medo-da-eutan%C3%A1sia/a-1050812
A ética secular
serve-se do relativismo como doutrina
Platão defendia a eutanásia para a
pessoa inútil à economia e à sociedade. Na antiguidade era comum a
prática do homicídio contra as crianças deficientes. Hitler procedia de
igual modo, desde que a doença fosse atestada por três médicos.
Nalgumas sociedades ocidentais e em
sociedades materialistas comunistas regista-se uma tendência para a
elaboração de leis (pena de morte, aborto, eutanásia e outras) que se
baseiam apenas numa filosofia utilitária e pragmatista, muitas
vezes elaboradas contra os próprios ideais da Constituição. Parte-se de um
princípio de liberdade como posse e de vida como produto na praça do
mercado.
De uma maneira geral, os defensores
da eutanásia fundamentam a sua opinião no materialismo que relativiza a
vida humana, não a aceitando como valor máximo e negam-lhe qualquer
sentido metafísico, reduzindo a existência a mero processo de forças
biológicas naturais. Pretendem um diagnóstico e uma decisão sem a análise
das suas consequências.
Na sequência de uma ética secular
(laica) a “eutanásia selecionadora ou eugénica” será aplicada a
recém-nascidos no sentido da selecção social. Como se fala hoje da
eutanásia falar-se-á amanhã da purificação da família, do povo ou da raça.
Querem uma ética pragmática servidora
do momento e da ocasião, chegando até a contestar o imperativo categórico
de Kant: a fórmula sumula do desenvolvimento da ética e do conviver humano
("Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua
vontade, uma lei universal.").
O reducionismo relativista e
materialista, de que pecam muitos defensores da eutanásia, é alérgico
ao pensamento integral e complexo; refugiam-se na ilusão de querer
construir uma realidade semelhante a um rio com a água mas sem o leito.
Ética religiosa
A ética cristã bem como a moral das
religiões em geral (budismo, induísmo, judaísmo e islão) é contra a
eutanásia e contra o matar. O valor ético e moral da integridade e
dignidade humana tem prioridade sobre princípios económico-políticos
subsidiários.
A ética cristã, uma ética da
excelência, que se aperfeiçoou, crivando as vivências dos diferentes povos
e culturas ao longo dos séculos, considera a vida como bem maior e, como
tal, a promover e defender e, consequentemente, não a interromper.
Na Bíblia o rei Saul (Samuel 31, 1 a 13) pediu a morte e, como o
escudeiro o não matasse, Saul atirou o corpo sobre a espada para se matar
mas os desígnios divinos revelaram-se mais fortes, tendo ele sido
finalmente morto por um filisteu. Jesus até recusou, livremente, o
hissope.
A Encíclica Evangelium Vitae indica:
a eutanásia é crime contra a vida e contra a dignidade humana pois a vida,
e em especial a humana, é sagrada (inviolável). Uma coisa é causar a morte
(eutanásia activa) e outra coisa é deixar morrer; o cristianismo não quer
a dor mas reconhece também na aceitação da dor, em estado consciente, a
oportunidade para crescer espiritualmente, dado a vida ter vários estádios
e continuar depois da morte. Consequentemente a compaixão comporta o
prolongamento da vida e não da agonia. Os analgésicos e a ortotanásia,
desde que não tenham como causa directa a morte, são meios importantes em
muitas situações, também na possibilitação de uma expressão mais condigna
com a pessoa no estado moribundo. Neste sentido ainda há muito a
fazer!
Controvérsia
O facto de os cuidados paliativos não
impedirem “por inteiro a degradação física e psicológica”, como argumentam
os que querem a antecipação da morte por suicídio assistido ou por
eutanásia activa (um terceiro mata), não é suficientemente fundamentado,
como medida geral, contra a morte natural ou contra a eutanásia passiva
(suspensão de terapias de prolongamento da vida determinada por testamento
vital – distanásia - previsto na lei desde 2001).
Em Portugal a recomendação da
eutanásia torna-se cínica quando mais de 50% pacientes terminais morrem
sem poderem ter acesso aos Cuidados Paliativos,
consignados na Lei nº 52/2012 de 5 de setembro: cf.
http://cdn.impresa.pt/efe/684/8198872/Posicao_da_APCP_-sobre-manifesto-PEut-vfinal.pdf
A controvérsia é boa para o
apuramento de conclusões elevadas e para o crescimento humano intelectual
e espiritual. A controvérsia é perniciosa quando enquadrada em posições
estanques que querem ver tudo regulado pela lei.
Um direito implica a liberdade de
escolha e esta não é plausível no nascer e no morrer.
Fala-se do direito à morte como se fala de um direito adquirido ou um
poder outorgado a executar em plena liberdade e como se uma pessoa em
estádio terminal que dá trabalhos estivesse isenta de qualquer coibição
psíquica ou social sendo-lhe indiferente o peso e o encargo que a sua
situação representa para os familiares e para o próximo. Não é lógico, em
nome da liberdade, recomendar uma decisão que exclui definitivamente uma
outra alternativa posterior. O problema da liberdade para a eutanásia vem
da irreversibilidade do acto. Os actos livres implicam sempre uma
alternativa possibilitadora de continuidade. A vida é um dom, a morte é
problema e não solução… O medo da dor, mais que da morte, leva à conclusão
falaciosa de que o morrer é que dá dignidade à vida e não a vida que dá
sentido e dignidade à morte.
Muitos adeptos da eutanásia activa,
contraditoriamente ao seu argumento de liberdade humana, recusam ao Homem
a sua capacidade de liberdade negando a validade da sua subjectividade, ao
alegar que o ser humano não pode preservar a subjetividade que o assiste.
Com o argumento de que a vida nos foi
imposta e da formação que nos foi dada, consideram-nos seres condicionados
que, realmente, também somos, mas não só; este condicionamento não lhes
dá o direito de nos condicionar e formatar segundo os seus princípios
modelares, querendo-nos, para tal, reduzidos à animalidade inicial,
negando-nos uma obediência orgânica para nos outorgar uma obediência de
lógica ideológica. Este reducionismo é consequência de um reducionismo
maior que consta de elaborar e conceber a vida em termos só racionais,
esquecendo que a pessoa é feita de Razão e Coração e a razão pode ser
enganada ou confundida por diferentes lógicas tal como o coração por
diferentes emoções ou sentimentos. Nem o princípio coração nem o
princípio razão têm o senhorio sobre a vida ou sobre a realidade; o Homem
completo consta de Razão e Coração numa relação de complementaridade.
Se houve tempos em que as elites das sociedades menosprezavam as
faculdades da razão hoje menosprezam as faculdades do coração.
A pessoa não pode ser reduzida à
biologia, aos padrões de uma dada sociedade ou época nem tão-pouco à
jurisprudência; nem sequer pode ser considerada como mero objecto, dado
este conceito delimitar o cidadão a um objecto de direitos e deveres, na
perspectiva da polis.
Quem se legitima nisto como juiz? O
facto de a constituição reconhecer ao Homem o direito à vida não é ela que
a dá ou a tira nem a lei criada por um parlamento pode ter poder de
deliberar sobre existência ou não existência de uma pessoa. O apoio humano
limita-se ao calor humano e à diminuição da dor. A pessoa tem “direito” a
ser feliz na vida independentemente de esta ser considerada no além e no
aquém; nem sempre a saúde é um pressuposto de felicidade como prova a
existência de muitos deficientes.
O moribundo tem direito a uma morte
digna e tranquila, o que não inclui o direito ao abuso nem ao homicídio
por compaixão. É dolorosa a situação de familiares que assistem a
moribundos ou pessoas em estado vegetativo. A sociedade deveria
acarinha-los e assisti-los não os deixando sós na responsabilidade e na
dor. Esta pode ser uma oportunidade para se optar mais qualidade de vida.
A assistência a moribundos é um
assunto muito delicado e controverso que não deveria provocar posições
radicais. É insuficiente ficar-se por propostas que pretendem uma ética
temporal meramente pragmática sem ter em conta a experiência secular da
ética religiosa e sem a deontologia médica. Este é um assunto que não se
pode solucionar com uma simples “receita”. É louvável o facto de esta
matéria, ao contrário de outras, estar a ser objecto de uma discussão na
opinião pública antes de chegar ao parlamento.
A existência seria chata se não
fosse o movimento; nela também a controvérsia é um passo no sentido da
vida.
Reflectindo
O direito de morrer com dignidade
deveria constituir um dado geral aceite, o que não implica
desresponsabilizar a pessoa pelos actos que faz, ou tirar por lei a
responsabilidade a quem mata como se estes fossem privados de consciência
e não houvesse meios de evitar não matar.
Enquanto as pessoas de moral
responsável discutem a defesa da vida, as pessoas tendentes ao poder agem
contra ela, caindo no equívoco de que na vida se pode ter tudo na mão e de
graça. A despenalização da eutanásia revela-se um mau caminho que abre
espaço aos negociantes da morte e a uma vida mais leviana e irreflectida.
A defesa da cultura da morte, do
aborto, da eutanásia parte de um princípio hedonista e materialista da
existência. Evita a reflexão e a controvérsia séria, preferindo uma
receita que embote a consciência popular. Ao falarem do direito a decidir
sobre o próprio destino esquecem que o ser humano é influenciável sendo
difícil poder fixar o limite entre o objectivo e o subjectivo. A vontade
também está sujeita a medos… Faz-se da liberdade tabu esquecendo que
esta é apenas um factor importante de vida mas a vida tem muitos outros
reguladores sem os quais seria impossível a sua expressão.
A religião transmitiu valores
construtivos, optimistas e positivos contrariados agora pelo niilismo que
não pára perante a destruição pessoal como se a pessoa se reduzisse a uma
ideia abstracta ou a uma nostalgia passageira ao serviço de interesses e
ideias fortemente encaixilhadas. Em nome da terra, da “realidade”,
negam a sua atmosfera ou consideram-na como algo distante e pesado como se
a transcendência não tivesse sido o oxigénio que mantem e desenvolve o ser
humano. Mataram Deus e na sequência querem a morte do Homem
espiritual. Desiludidos de Deus e do espírito viram-se agora para a terra
embrutecida – materialismo- querem a população prisioneira da “caverna
platónica” sem luz, a viver da escuridão e da tanatofilia, como se a
perspectiva da luz fosse algo contra a vida e iludisse a realidade da
morte.
Culpabilizam a religião de se opor a
soluções simplicistas ou de surgir como obstáculo ao exigir reflexão.
Querem a dignidade vinculada à circunstância e não à pessoa para a porem à
disposição da ideologia em favor de um poder ad hoc. Demonizam, por
vezes, a religião cristã pelo facto de esta ver no Homem um absoluto. O
poder ideológico secular encontra-se em rivalidade com o religioso quando,
no sentido do Homem, se deveriam complementar; aquele constrói a sua
força na aquisição de seguidores quando a força motivante e movente
deveria ser o bem integral e integrante.
Muitos não vêem com bons olhos a
renúncia que apela à metafísica, à imagem do esforço da natureza ao tentar
erguer-se na procura do Sol; não basta a ilusão de que a natureza do
Homem se reduz à procura de um lugar soalheiro mas sem Sol; de facto,
equivaleria a exigir do Homem uma outra renúncia: a renúncia a si mesmo
para, na qualidade de mero elemento, se colocar à disposição da matéria
que, com o seu poder inerente, seria reduzido ao poder do mais forte,
contradizendo a herança cultural e ética judaico-cristã e dos povos que
levou a civilização ocidental ao nível em que se encontra nos seus
aspectos positivos e negativos.
Muitos militantes da eutanásia
revelam-se, na consequência, contra a consciência humana que é uma
percepção dinâmica de luta pela liberdade, uma luta das forças escuras
contra a luz que ilumina a “caverna” platónica.
Consequentes na sua negação de Deus e
da ordem criada tornam-se tão imateriais na sua especulação chegam a
defender o direito de nunca se ter nascido! Esta posição que
consequentemente legitimaria a prática da selecção darwinista social que
motivou Hitler a mandar matar deficientes e a mandar castrar pessoas com
certas doenças hereditárias: tudo isto em nome de uma liberdade e de uma
felicidade que veria em cada deficiente um infeliz a quem seria dado o
direito de se antecipar à dor e assim voltar ao estado do não criado e
assim, à sua custa, a sociedade tivesse mais disposição de bens materiais.
A liberdade individual é uma
consequência da espiritualidade e do desenvolvimento humano; a liberdade
humana revelou-se como força inclusiva e não exclusiva, possibilitando
assim a arquitectura cultural e social a que chegamos. É interessante
verificar-se pela arqueologia que o desenvolvimento da sociedade começou
em torno da morte (lugares de culto). A vida não nega a morte nem a morte
nega a vida; ambas são duas formas de estar da existência.
O desejo da morte assistida
(eutanásia) surge, por vezes, da falta de assistência e solidariedade por
parte da sociedade e do próximo, que não se querem responsabilizar porque
consideram a existência reduzida aos seus aspectos de luta primitiva e
individual pela vida. Desvinculam o ser individual do ser social (zoon
politikon) para que a sociedade se possa desenvencilhar, sem dores de
pensamento nem custos, do que se torna incómodo e daquilo que a poderia
comprometer.
Nestas coisas não chega uma política
do levantar a mão no parlamento. Também não é bom fomentar-se a má
consciência, nem tão-pouco estimular a consciência leviana, mas sim
possibilitar discussões públicas sérias e reflectidas para que, cada
cidadão se levante da massa e possa tornar-se mais consciente para se
orientar e decidir com o máximo de conhecimento e liberdade: só então pode
ser responsável e tomado a sério nas decisões que toma. A discussão
sobre a eutanásia - matéria muito complexa - não pode ser encurtada por
uma política ou ideologia qualquer, até porque as massas abdicam da
reflexão e da própria responsabilidade julgando como matéria segura o que
se encontra legislado e dado a vida e o seu sentido implicarem uma
reflexão das diferentes disciplinas complementares, desde a bioética, à
medicina e à teologia. A pessoa e a vida não devem ser relativizadas,
devem ser reconhecidas como bens absolutos que, na modelação da própria
vida segundo o imperativo categórico kantiano, superam o poder dos Estados
(A pena de morte, para um cristão significa a usurpação do estado que
exerce o poder sobre algo que o supera).
O direito de decisão é conferido por
Deus ao indivíduo (a religião apenas o formaliza); nenhuma ideologia ou
lei poderá assumir-se o direito de o manipular ou de se livrar dele mesmo
quando sob o pretexto de ajuda. A lei e a norma tendem a fazer de um caso
todos os casos embora a consciência de cada um seja inalienável.
É fácil apregoar-se como filantrópico
a oferecer às pessoas o direito de acabarem com a sua vida ou com a vida
do outro em seu nome ou das circunstâncias.
O cristianismo acentua a
assistência solidária e caritativa na morte, também com o emprego de
paliativos, respeitando sobretudo a consciência individual e a
responsabilidade da decisão reflectida de cada um.
Não chega ver as ondas da superfície; é preciso criar-se espaço para se
poder perscrutar e sentir o que elas encobrem das profundezas do mar.
Esta é a advertência necessária mas sem coibir!
A vida é o positivo da existência, é
optimista não se deixando perder em qualquer beco pessimista sem saída nem
tão-pouco reduzir-se ao seu negativo. A vida chama e tem um sentido e este
é infinito; a existência inclui nela o Sol que dia-a-dia convida a
natureza ao esforço do levantar-se para a luz. Que seria da borboleta se
no seu estádio de casulo, em nome do direito e da liberdade, fosse
impedido o seu desenvolvimento!
A alma treme perante o vazio, mas
entre os calafrios pressente, no extremo do túnel da existência, uma luz
quente que sempre brilha e a espera!
António da Cunha Duarte
Justo
Teólogo e Pedagogo
Pegadas do Tempo:
http://antonio-justo.eu/?p=3488
Nota: Literatura sobre o
assunto:
https://www.passeidireto.com/arquivo/2271425/eutanasia/5;
http://antonio-justo.eu/?p=3112;
http://www.palopnews.com/index.php/cronistas/antoniojusto/1828-a-eutanasia-e-a-morte-organizada
;
http://antonio-justo.eu/?p=2690;
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