A actual discussão no Senado
brasileiro sobre a simplificação da ortografia revela-se
contraprodutiva em relação ao acordo ortográfico. A crença de Ernani
Pimentel e do ‘Movimento Simplificando a Ortografia’ de que "a
simplificação ortográfica é a porta para a eliminação do
analfabetismo”, revela-se como despiste ou desorientação. A
iniciativa pretende inverter o desenvolvimento linguístico ao
copulá-lo com a camada social menos desenvolvida; enfim, uma posição
decadente tendente a que as árvores passem a ter a rama na terra e as
raízes no céu.
Os Diálogos Lusófonos, tal como
outros meios de comunicação brasileiros têm vindo a referir que o
senador Cyro Miranda, presidente da Comissão de Educação, lidera um
projecto da Comissão conducente à simplificação da ortografia da
língua portuguesa. O projeto “propõe a extinção da letra "h" no início
das palavras e a troca de todas as expressões com "ch" pelo "x",
passando palavras, tais como ‘homem e hoje’, a serem escritas com a
grafia ‘omem e oje’ e palavras como ‘macho’ a serem escritas ‘maxo’.
Exemplos das intenções em vista: Flecha Flexa, Analisar Analizar,
Blusa Bluza, Exigente Ezigente, Exame Ezame, Amassar Amasar, Açúcar
Asúcar, Moço Moso, Deuses Deuzes.
Segundo intenções dos mentores do
projecto, este poderia ser aplicado em 2016, após consulta aos países
de língua portuguesa.
É estranho que o Brasil queira
fazer equivaler a língua escrita à língua oral quando escreve dia e
pronuncia dʒja ou dja. A língua não pode ser posta à disposição
arbitrária de ideologias (socialismo mal-entendido) nem de lógicas a
que falta a supervisão racional abrangente. Sem respeito pela
linguística, atacam a ortografia, a etimologia, a conexão entre
palavras cognatas.
Depois do tao discutido acordo
ortográfico da língua portuguesa aprovado em 16 de Dezembro de 1990
que pretende criar uma ortografia unificada e em vigor desde 2009
parecem forças radicais quererem colocar-nos na fase antes dele; na
realidade pretendem o desacordo agora incentivado em nome de uma massa
anónima ‘não consumidora de cultura’.
Ainda o acordo ortográfico não se
encontra aplicado e já surgem novas propostas de tendências
partidárias e nacionalistas a pretender novas mudanças em nome de uma
democracia que quer ver a inclusão social dos seus povos à custa de
simplificações arbitrárias e desaferidas, como se a produção
intelectual, artística e científica se devesse orientar, pelo
princípio do menor esforço, como parece pretender o ‘Movimento
Simplificando a Ortografia’. Pretende um nível simplista que evite o
analfabetismo e que reduza o tempo de ensino da ortografia para
impedir reprovações no currículo de aprendizagem. Esquece que as suas
razões de liberdade, igualdade e economia teriam como consequência
mais lógica a extinção da educação e das escolas ou a emigração de
grupos mais conscientes para o ensino particular. Na sequência
ter-se-ia de acabar com o estudo da História e de muitas coisas mais;
sim, até porque, na realidade, em termos imediatos cultura não enche
barriga.
Querer motivar a mutilação do
português, com argumentos de que grande parte do povo brasileiro tem
dificuldade em “escolher a letra adequada entre x/ch, j/g, s/x/z,
s/ç/c/ss/sc/sç/xc/xç, presença/ausência de h inicial”, seria
desconhecer a história e a lógica da língua e desqualificar o ensino
brasileiro e a capacidade de aprendizagem de um povo que é tão
inteligente como outros países lusófonos que parecem ter menos
dificuldades com a ortografia da língua.
Por trás da problemática em torno
da ortografia, esconde-se também uma falta de sistemática na
aprendizagem da língua e de um ensino que domine os rudimentos da
língua mãe (o latim).
Não é certamente por falta de tinta
mas talvez por protagonismo político de interesses ideológicos que se
equivoca ao qualificar rigor de qualidade intelectual com “alienação
do povo” . Por trás de uma identificação com os interesses da pretensa
massa popular esconde-se a atitude paternalista de que o povo simples
deve ser poupado de elucubrações complexas querendo apresentar a
língua como produto fácil e barato à altura do porta-moedas de um
mercado orientado pelo poder da oferta e do mais barato.
A questão da língua não pode ser
equacionada em perspectivas meramente políticas, geralmente de vistas
reduzidas a mentalidades condicionadas a períodos eleitorais
quatrienais ou quinquenais e a ideologias de massa anónima sem
consideração pelos processos de individuação e diferenciação inerentes
à evolução individual e colectiva.
A evolução da língua também não
pode ser abandonada a pessoas, talvez de boa vontade mas que não têm a
mínima ideia do assunto nem o respeito advindo do conhecimento do
evoluir da língua.
Para trás anda o caranguejo!
A iniciativa é absurda e
prejudicial porque para corresponder às necessidades imediatas de
gente simples, opta por cortar os ramos frondosos da árvore
linguística pelo facto de se estar com o sentido na sua madeira ou
porque se quer fazer da árvore um arbusto para que qualquer gaiato
possa subir a ela sem o mínimo de esforço ou dificuldade. Deixem-na
continuar a ser uma grande árvore, uma casa grande onde todas as
espécies de pássaros, grandes e pequenos, possam fazer o seu ninho,
segundo as suas capacidades e potenciais. Seria disparate cortar as
asas às aves grandes para que todas possam viver nos primeiros ramos
da árvore. Se a natureza e o desenvolvimento se deixassem reger apenas
por princípios de massa ou democráticos não teria produzido a
humanidade, para nos manter na igualdade do estádio das amoebas ou das
medusas.
A estratégia de comunicação
anunciada pelo senador, de tencionar chegar a acordo com os outros
países lusófonos, através de videoconferências, é testemunho de método
manipulador de quem quer forçar a sua ideia de legitimação dúbia fruto
do arbitrário para evitar a discussão nas legítimas instituições
científicas competentes para a língua. Nestas coisas precisa-se tempo,
calma, independência e ponderação para se evitar confundir um
pirilampo com uma estrela. A iniciativa não passa de uma tentativa de
desorganização e de desinformação no sentido de desviar as energias do
último acordo ortográfico.
A reforma da língua é assunto para
linguistas e disciplinas afins atentas às massas e aos diferentes
interesses dos países lusófonos, longe de qualquer interesse
hegemónico ou de estratégica particular. O resto corresponde a uma
perspectiva minimalista e míope de que sofre em grande parte o nosso
sistema democrático. O nivelamento da cultura por baixo tem sido um
facto tendente a desacreditar e banalizar a democracia (de interesse
comum a um capitalismo e a um socialismo radical); a democracia
não deveria merecer tal desconsideração. Imaginemos que, para
acabar com o racismo, os brasileiros determinavam manipular o gene da
sua pele, de modo a todos os brasileiros conseguirem uma cor neutra
para os seus habitantes! A intenção que se encontraria por trás
do objectivo seria boa mas a estratégia e os meios para o alcançar
seria inadequada, indiferenciada e de consequências catastróficos.
A ideologia, por muito potente que seja, não deve desprezar as leis da
evolução nem a variedade da realidade integral. Para trás anda o
caranguejo!
A ignorância e a precaridade não
podem constituir motivo de desenvolvimento cultural e linguístico. Os
programas correctores de língua em via na internet serão um grande
serviço para aqueles que confundem o ‘ch’ com o ‘x’.
A língua portuguesa não existe
isolada no mundo e, também por isso, não deve ser avaliada por
critérios proletários simplistas nem pela dimensão populacional de uma
nação! É óbvio que se mantenham os critérios de qualidade. O seu
desenvolvimento não pode ignorar a riqueza atingida pelas línguas
latinas nem o seu rico contexto. Tão-pouco poderá ser critério da
afirmação de identidade de um país a negação da História nem o estádio
cultural de um grupo social. Tal proposta, como o emprego de energia
unilateral e exagerada na integração do galego no mundo lusófono só
complica e ajuda a desmotivar a reflexão e a aplicação do acordo
ortográfico em via.
O Português não é uma língua
difícil. É uma língua muito rica e como tal complexa, com moradas para
todos os estados do desenvolvimento social e intelectual até hoje
possível e conseguido. Na riqueza de uma língua e na sua complexidade
se reflecte o desenvolvimento de um povo.
Tentar aniquilar as leis da evolução pode ser democrático mas não
natural nem razoável. A existência de favelas e de casas sem jardim
não pode ser o motivo para se destruir os palácios e os jardins. O
objectivo será construir acesso aos jardins e aos palácios para todos.
Sem querer negar a luta de classes
e de interesses, precisamos primeiramente de sociedades adultas que
discutam os problemas do seu desenvolvimento e daquilo que constitui a
sua identidade, com realismo, sem complexos de superioridade nem de
inferioridade.
António da Cunha Duarte Justo