Quando
era pequenino quem trazia as prendas de natal era o Menino Jesus; de
24 para 25 de Dezembro, pela calada da noite, ele colocava-as na
lareira junto aos sapatos.
Com a comercialização da sociedade foi-se impondo o Pai-Natal (Papai
Noel), vindo do Polo Norte num trenó; um homem rechonchudo, alegre e
de barba branca vestido de vermelho e com um gorro caído virado para a
terra. Os americanos protestantes (USA e Canadá - não inclinados para
o culto dos santos) e propensos ao capitalismo, em vez de importarem
da Europa a tradição católica do Menino Jesus e do sapatinho à lareira
ou do São Nicolau, criaram a figura do Pai-Natal, em 1860, à imagem da
tradição nórdica do S. Nicolau. A substituição do bispo, que oferecera
a sua grande herança aos pobres, pela figura do Pai-Natal, foi
comercializada nos meados do século XIX pela empresa Coca-Cola. Pai
Natal é a substituição secular do “Menino Jesus”.
“Menino Jesus”, São Nicolau (Santa Claus), Pai-Natal, são nomes que se
dão à personagem que traz os presentes na Véspera de Natal, (24 de
dezembro), ou no dia de São Nicolau (6 de Dezembro). No Natal
faziam-se prendas para lembrar a oferta de Cristo à humanidade; como
fomos prendados continuamos a prendar os outros.
É
interessante verificar, duma perspectiva sociológica, como cada época
e povo cria/transforma as suas tradições à medida da sua alma e do seu
ideário central. Este torna-se como que a estrela de Belém atrás da
qual todo o mundo corre. As exterioridades folclóricas permanecem as
mesmas; muda apenas o seu conteúdo cada vez mais feito de
superficialidades, a nível de massas.
Se observamos a natureza tudo se desenvolve do interior para o
exterior. O exterior chama a atenção para a vida interior a ser
transmitir. Nos tempos em que a preocupação do ser humano com suas
instituições se centrava mais nos bens interiores e na comunidade, as
suas instituições preocupavam-se com a integração do novo na sua
alma.
A
Igreja Católica, no seu contacto com os povos bárbaros, respeitava o
cerne das suas crenças procurando integrá-las no seu firmamento
metafísico. Assim, num processo de aculturação e de inculturação dava
profundidade e resposta aos mitos de povos e culturas, integrando num
conceito global diferentes arquétipos da sociedade e do Homem. Nos
mitos (arquétipos) encontra-se a simbologia plastificada da realidade
humana para além do momento histórico. Por isso a verdade mitológica é
mais real/verdadeira que a verdade histórica; esta é apenas o
resultado do agir no sentido da concretização dos mitos.
Uma
cultura a gerar filhos de ninguém
Com a acentuação da modernidade e do secularismo tem-se dado o
processo inverso, iniciando-se assim a exoneração da cultura
ocidental. O comércio apodera-se dos mitos cristãos para os desmiolar
num processo de secularização desespiritualizadora para os
instrumentalizar em seu benefício. Neste processo, em vez de um
procedimento de enriquecimento e de interiorização no sentido da
continuidade comunitária dá-se o contrário, a mera exteriorização sem
ligação ao interior, apenas centrada no sentido da parcela e do
momento. Só conta o embrulho que deslumbra o mundo. Tal como o
protestantismo expressou o início do fim da cultura medieval agrária
(fim do domínio dos países latinos) e o início do domínio nórdico
baseado mais no fomento do capitalismo (do direito do indivíduo contra
a comunidade), observa-se hoje o início da destruição da cultura
ocidental através do globalismo financeiro. É preocupante dar-se conta
dos paralelos entre a relação protestantismo-catolicismo como
indicadoras do início de uma nova era no século XVI e a relação
cristianismo-secularismo da actualidade, como início do abdicar da
civilização ocidental e o início de uma sociedade anónima orientada
pela pseudo-ética de um utilitarismo universal. Encontramo-nos no
início do fim.
Os símbolos religiosos são substituídos por símbolos comerciais
centrados no negócio e já não no ideário cristão. Deixam de ser
arquétipos (modelos da alma e da civilização) para se tornarem
símbolos do capital e do comércio ao serviço de necessidades
artificiais. A relação humanista dá lugar à relação comercial. Ao
ignorar a sua bondade inicial interior, o Homem torna-se a sua própria
fera.
Na análise que aqui faço apenas me limito a referir um pequeno aspecto
cultural, um sintoma limitado mas sintomático da autodestruição
sistemática duma grande civilização que parece odiar-se a si mesma.
Quem melhor quiser conhecer a alma das civilizações e das culturas
observa-lhes os seus mitos, a sua alma. A autodestruição da
civilização ocidental é imparável ao reduzi-la ao seu aspecto de
permuta económico-comercial e que se torna patente na substituição do
Nicolau pelo Pai-Natal. O São Nicolau tinha uma mitra com a ponta a
indicar para o céu e a ponta da barba a apontar para a terra; tinha o
corpo em posição direita a indicar respeito e relação com a
transcendência e o bastão da autoridade. Nicolau é o símbolo da
autoridade não autoritária que proporciona lugar para o crescimento
dos outros de modo a tornarem-se adultos.
Sem o poder e a influência que representa a propaganda Coca-Cola, o
Pai Natal não teria transferido tão depressa os países protestantes.
Hoje ele tornou-se na expressão da sociedade de consumo em que
vivemos. O Pai-Natal, não vem do céu, vem dos países frios do norte e
é expressão dos valores da nossa sociedade. Em vez da tiara
simbolizadora da espiritualidade e do alto, o Pai Noel traz um gorro
vermelho virado para o chão. Tem as proporções corporais de uma
criança de três anos e um nariz grosseiro batatudo a puxar para baixo;
é infantil, com um saco aos ombros pronto a distribuir o seu conteúdo.
Deixou de ser um arquétipo da alma para se tornar a documentação duma
sociedade de consumo em regressão.
A
Vida do Presépio é Espírito ainda não materializado
Uma sociedade sem mitos empobrece e é abafada; uma sociedade sem natal
é escura e sem perspectiva transcendente; natal é o tempo do dar à
luz, é o tempo dos símbolos e dos contos de fadas e das crianças. (“Se
não mudardes e não vos tornardes como crianças, de modo algum
entrareis no reino dos céus” (Mat.18.3).)
Não se trata de recordar apenas algo que aconteceu no passado. O mito
é uma verdade e não uma fantasia (Na linguagem coloquial a palavra
mito é usada como algo fruto da fantasia). Mais importante do que o
acontecido no passado é a verdade do que está sempre a acontecer,
ontem, hoje e amanhã, em diferentes dimensões. Mito é teologicamente
algo/verdade sempre a acontecer em nós e na comunidade.
O
Evangelho fala apenas do nascimento de Jesus na “manjedoura de um
curral” em Belém e de pastores e magos (três reis) que o visitam. Na
descrição da infância de Jesus mistura-se a realidade da História com
a realidade das metáforas.
A
procura de um lugar para a criança divina, longe da terra natal, é
naturalmente uma metáfora. A alma não é oriunda da terra, nós vimos de
outro lugar e não somos deste mundo. O mundo não é um albergue afável
e quente. No nascimento virginal acontece algo completamente novo e
inexplicável (Também aparece no budismo e no taoismo). Jesus é também
o nosso arquétipo e como tal mostra que também nós temos uma mãe
terrestre e ao mesmo tempo temos origem celeste, somos seres
espirituais. Esta origem espiritual foi por nós esquecida. No
nascimento virginal o pai é espiritual e como tal desconhecido. Jesus
conhecia o seu Pai. O pai de todos nós é em certa medida o grande
desconhecido. Somos todos filhos de Deus e a nossa vida é uma busca do
grande desconhecido! A pessoa de fé vive da ressonância da presença
divina em si e no mundo, ela tem a consciência de a ter presente no
seu interior.
Há a verdade histórica e a verdade da alma e espiritual. A criança
divina no presépio não se relaciona apenas à realidade histórica do
seu nascimento (Belém/Nazaré) mas é também símbolo e garantia da
criança interior em nós.
A
criança não nasceu em casa, na própria terra; foi nascer em terra
distante. Para que nasça algo novo em nós teremos de abandonar os
velhos hábitos, teremos de abandonar a nossa casa, a segurança do
dia-a-dia que não é albergue nem lar definitivo. Na pobreza do
espírito, depois de despidos do nosso saber, das certezas e opiniões,
depois de nos tornarmos pequeninos e depois de ter morrido o poder e a
violência de Herodes em nós, então seremos o presépio onde a criança
surgirá. A criança divina não ameaça nem usa poder. Não podemos
continuar a esconder Jesus como fizeram os seus pais a caminho do
Egipto (metáfora), numa fuga contínua ao perigo. Possuímos o sangue
real. Jesus provém dos tronos de David e de Deus.
Em cada um de nós dorme uma criança, o eu original. A verdadeira
realidade é invisível e só acessível pelo coração. O caminho é
estreito. Para se chegar ao fundo da gruta, ao reino da criança divina
em nós, vale a pena tentar ultrapassar a barreira do medo em nós,
deixar o estresse, para chegar onde tudo é bom, onde nos sentimos bem
e como feitos e envolvidos em muitas realidades. A nossa criança
interior encontra-se atafegada em nós por medos e certezas, por fugas
e corridas, vive amedrontada pelo barulho das nossas razões e
opiniões. Jesus, o divino infante, encontra-se na concha do nosso
interior, ele é a natureza da nossa ipseidade à espera de ser ouvida.
Do fundo do reino da verdade, a divindade quer falar, quer ser ouvida,
já não através da cabeça mas no silêncio do coração. Em cada um de nós
encontra-se prisioneira a outra parte de nós, a nossa parte divina,
onde a criança definha à espera de ser ouvida.
António da Cunha Duarte Justo
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