Uma pessoa,
tal como o seu carácter, é mais que a soma dos seus detalhes
psicológicos. Ao dizermos ou sentirmos o nosso eu referimo-nos a algo
definido como se fosse um produto, algo já acabado e não um processo na
realização do ser. O meu eu inclui-me a mim e às minhas circunstâncias.
Estas são eu, tu, o outro, o universo e o mistério. A nossa
personalidade é formada por um eu profundo integral e por um eu
superficial parcial, ou seja um eu luz e um eu treva. O ego é a
sombra do eu integral; é como que a sua crusta, a parte opaca da
transparência, a sombra duma realidade, mais ou menos oculta, a tudo
conectada.
No ego
predominam as forças centrípetas enquanto no eu integral reina a
harmonia dum universo de forças ordenadas. A relação acontece na
tensão entre um eu e um tu para se realizar no nós. No nosso
trajecto vivemos a fugir da anonimidade duma massa despersonalizada para
através do eu personalizado voltarmos à comunidade dum nós pessoal. É a
luta das cores por se diferenciarem do verde da natura para poderem
brotar na flor. Somos com e no universo, todo o mundo, a caminho, na
procura do “Sol”, num mesmo sistema interligado pelas mesmas leis.
Ao sermos
projectados do útero da mãe inicia-se o processo da individuação. No
grito original iniciamos uma nova relação com órbitra própria a
firmar-se numa nova constelação. Ao ser-nos cortado o cordão umbilical,
abandonamos o paraíso na procura de identidade. Começa a marcha a
caminho do eu no sentido de realizarmos a ipseidade no todo. Primeiro de
gatas, depois amparado e por fim só. Quanto ao desenvolvimento
psicológico esse torna-se mais demorado e complicado. Como na
natureza nem toda a planta chega a dar flor, o que não torna o seu verde
menos esplendoroso. Vale a pena o esforço de ver para lá dele.
O
desenvolvimento pressupõe um processo dialéctico exterior numa realidade
que ultrapassa a dialéctica (afirmação-contradição, tese-antítese ou a
mera síntese). A afirmação da parte contra a parte e deste modo o reagir
e a distanciação contra o todo provoca a dor insatisfeita. Doutro modo a
fricção do eu no tu seria integrada no desenvolvimento não se
cristalizando na dor (culpa, medo). O movimento de separação e
aproximação, tal como as ondas e as marés, não são mais que o pulsar do
coração com os seus impulsos e pausas, como a alegria e a tristeza, o
entusiasmo e a frustração; são momentos duma mesma realidade que nos
envolve, define e determina.
A separação
que se dá no desenvolvimento cumula na razão, onde o mundo deixa de ser
uno como antes (Árvore da sabedoria no paraíso!). Aqui surge o perigo de
o intelecto se autonomizar e criar um mundo “ideal” à margem da
realidade com forças que não se deixam reduzir a meras leis. Com a
caminhada da razão, que agora se acentua, dá-se um processo de
diferenciação, de distinção entre um eu e um tu; em função da
individuação afirma-se um sujeito contra um objecto, que na realidade, é
sujeito numa dinâmica de complementaridade; a dialéctica leva o outro a
ser tornado provisoriamente casulo para, assim, o eu se tornar sujeito.
O sujeito, ao atingir o seu verdadeiro desenvolvimento, deveria passar a
ver o resto da realidade como sujeito e relacionar-se de maneira a
reconhecer-lhe tal dignidade (como parte dela/e). (O espírito incarna na
matéria e a matéria ganha asas próprias para voar, tal como procura
demonstrar o mistério da incarnação e ressurreição e a Trindade
realiza). Ao encontrarmo-nos todos num processo de transformação já não
tentaremos destruir ou modificar o outro: a minha mudança já provoca a
mudança do outro porque a transformação pressupõe relação, relação
pessoal mesmo com o mundo inadequadamente considerado “coisa”.
Trata-se de superar um pensar unidimensional só com lugar para a parte
geométrica da vida, de superar o jogo das escondidas no nicho do
intelecto.
Os
distúrbios, de que todos sofremos como adultos, provêm dum mundo do
pensamento paralelo, criado à margem da realidade orgânica e aos
“traumas” que acompanharam o nosso desenvolvimento desde a criança
infantil até ao estado de infantil adulto.
A princípio agarrados às saias
da mãe esperamos dela o amor simbiótico que nos mantinha a ela unidos no
seu ventre, o paraíso terreal (muitas vezes a luta posterior não passa
duma tentativa por restabelecer o estado simbiótico original: é a luta
errada por se satisfazer a “culpa” do “pecado” original). Tal união,
porém, não permitiria o desenvolvimento da própria identidade passando,
naturalmente, a acentuar-se as forças centrífugas para depois culminarem
na ressaca das forças centrípetas (egocêntricas). Segue-se então um
caminho de experiências mais ou menos agradáveis, mais ou menos
traumáticas que nos levam a andar pelo próprio pé ou a andar agarrados
às eternas muletas de situações irreflectidas. A experiência
individual cria frustrações e gratificações que mais tarde se podem
revelar em sentimento de culpa, em sentimento de
inferioridade/superioridade que depois será reafirmado pela vida
fora num rescrito comportamental de arrogância ou de timidez. Nesta
fase dominam os monólogos interiores e arrazoamentos que não permitem
uma descrição adequada da realidade própria nem dos outros. Como não nos
encontramos a nós mesmos continuamos a reduzir o outro à qualidade de
objecto a ser assimilado ou a ser repelido. Muitos agarram-se
desesperadamente ao pescoço da vida na fuga contra o vazio, contra a
solidão. Procuram fora o que já se encontra dentro. As muletas das
ideias revelam-se depois como poluidoras de paisagens emocionais
interiores. É a fase da vida em canteiros de jardim infantil ou no jogo
do gato e do rato.
Na infância a
harmonia é procurada na mãe enquanto na fase adulta se procura na fusão
de dois (polos) sujeitos, na "união conjugal". Aqui encontram-se, a
nível psicológico e comportamental, forças contraditórias em ebulição à
semelhança do que se dá no desenvolvimento do universo com a sua
formação de galáxias e de sistemas como o sistema solar, num jogo
de forças que procuram o equilíbrio para depois seguiram o chamamento
que pressupõe um novo desequilíbrio; este mantem a ordem viva num
sistema de universos a caminho. Egocentrismo (movimento de rotação em
torno de si mesmo) e altrocentrismo (movimento de translação em torno do
outro) tornam-se condicionantes duma realidade maior. O amor que
envolve os dois provoca o movimento aparentemente contraditório. A
fixação extrema no ego ou no outro fecha os olhos para a felicidade
(equilíbrio), para o amor, fixando-a no amor-próprio, na própria
necessidade sem contemplar o sistema. O ego procura então não o outro
mas a própria felicidade no outro contradizendo assim a felicidade, que
é relação, o momento de equilíbrio (de esquecimento) que já traz em si o
momento de desequilíbrio que provoca o desenvolvimento, a vida e não a
estagnação. A vida que engloba o outro e a mim a caminho duma maior
grandeza. A força centrípeta, o egoísmo exige uma relação de
subalternos, quer ter, não quer ser, (ou confunde o ter com o ser) faz
de todos seus satélites desprezando a realidade de que também os astros
pertencem a estrelas e estas a galáxias, ao serviço duma realização
maior. Cada um, tal como o universo, está chamado a seguir um
chamamento; encontramo-nos todos a caminho do mistério na realização do
amor, que é a energia que mantem todo o ser e todo o universo, unindo o
que parece contraditório.
A necessidade
do amor infantil (amor necessidade) domina as relações que se tornam por
isso insatisfatórias. Cada um, criança traída, acusa no outro, sem
saber, a sua mãe que o não acariciou suficientemente ou o considerou
apenas seu satélite. Em vez de cada um se assumir aceitando as dores
do parto de si mesmo (em processo) deixa-se dominar pelos fantasmas do
passado sem reconhecer a realidade das forças próprias e ambientais
na sua interdependência e complementaridade. Pior ainda: projecta no
outro as próprias deficiências querendo torna-lo a mãe que não teve.
Nesta dinâmica, mendigos do amor tornam outros mendigos também. Cada um
gira em torno de si mesmo querendo criar os outros à sua imagem e
semelhança.
Num processo
de desenvolvimento para a maturidade (a nível dos dois) deverá criar-se
um espaço para se fazerem as pazes com os “traidores” da infância para
que estes não nos atraiçoem no outro. Isto deve ser naturalmente
integrado em movimentos consecutivos de ensombramento de si mesmo e de
luminosidade do outro e vice-versa; o mesmo se dá de forma inconsciente
no ciclo do dia e da noite que pressupõe o reconhecimento da existência
dos outros astros na realidade do nós (indivíduos e comunidade). Nesta
realidade sentiremos e integraremos em nós não só a desejada acalmia
primaveril e veraneia mas também as ventanias outonais que purificarão o
nosso ser da folhagem impeditiva da próxima fase de desenvolvimento no
sentido do todo.
Na
constelação relacional do desenvolvimento também se encontram meteoritos
isolados que vivem apenas o sexo à margem do acto criador de interacção.
Esta pressupõe amor e este pressupõe a dor, resultada da tensão entre o
eu e o outro. A dor é o momento de desequilíbrio que possibilita a
evolução. Fugir à dor é negar-se, é negar o outro em si e negar-se a si
no outro; não basta procurar, porque o sentido é encontrar-se,
encontrar-se como universo a dar à luz. A vida inconsciente, além de
viver na fuga e da fuga, luta continuamente com o destino. Falta-lhe a
coragem para a felicidade e abdica permanecendo na contradição; esta
pode, no máximo, produzir o gozo da fricção mas não a felicidade. Para o
egoísta a culpa está nos outros, ele prefere ver a vida passar-lhe ao
lado como os vinhateiros atrasados da parábola. Mas também o altruísmo
pode ser um egoísmo escondido ou indício dum eu fraco (debilitado).
Manter o equilíbrio da balança é a tarefa da vida da pessoa e do
universo sempre em movimento.
Eu e tu,
os dois somos três a caminho do nós. Eu e tu com o universo numa relação
amorosa não dialéctica encontramo-nos num processo de interdependência e
afirmação mútua;
encontramo-nos todos ao serviço uns dos outros, no seguimento duma força
maior: o amor. O momento dialéctico (contradição) é apenas o instante do
desequilíbrio num processo maior pendular de desequilíbrio para o
equilíbrio, do equilíbrio para o desequilíbrio na realização dum
equilíbrio maior. Aqui já não há um com razão e o outro sem ela, agora
já não há um perfeito e outro imperfeito, um culpado e o outro inocente.
Aqui o intelecto e o coração unem-se para possibilitarem uma visão
global integral: a vida toda na própria vida e não uma vida em segunda
mão.
Deixa então
de haver a autonomia do astro rei e a dependência do satélite para na
complementaridade se desenvolver uma nova identidade, a identidade do
nós no eu criativo e criador. A felicidade realiza-se em comunidade
(Filho pródigo). Somos filhos do amor, fomos feitos de graça para
vivermos na graça do amor. Como filhos da terra tornamo-nos no sol da
natureza agradecida a abençoar. Resta-nos o agradecimento e a
paciência. Somos novos mundos a criar um novo mundo, não podemos parar
nem abdicar de nós mesmos nem dos outros.
Para criarmos
uma nova maneira de estar no mundo, uma nova maneira de nos
relacionarmos nele e com ele teremos de criar uma nova relação amorosa
com o outro na realidade do nós numa dinâmica identitária processual do
eu-tu-nós: uma relação já não só de diálogo mas de triálogo, à maneira
da incarnação e ressurreição numa relação pessoal trinitária na unidade
do eu-tu-nós. |
ANTÓNIO da Cunha Duarte JUSTO . Nasceu em Várzea-Arouca (Portugal). E-mail: a.c.justo@t-online.de.
Professor de Língua e Cultura Portuguesas, professor de Ética, delegado da disciplina de português na Universidade de Kassel .
PUBLICAÇÕES
- Chefe Redactor de Gemeinsam, revista trimestral do Conselho de Estrangeiros de Kassel em alemão com secções em português, italiano, turco, françês, grego, editada pela cidade de Kassel, tiragem 5. 000 exemplares.
- Editor da Brochura bilingue: "Pontes Para um Futuro Comum – Brücken in eine gemeinsame Zukunft", editada na Caritas, Kassel
- Editor de "O Farol" , jornal de carácter escolar e social em colaboração com alunos, pais e portugueses das cidades de Bad Wildungen, Hessisch Lichtenau, Kassel, Bad Arolsen e Diemelstadt( de 1981 a 1985)
- Editor de „Boletim da Fracção Portuguesa no Conselho de Estrangeiros de Kassel (1984)
- Autor da Brochura „Kommunalwahlrecht für Ausländer – Argumente“ editada pela Câmara Municipal de Kassel, Fevereiro de 1987.
- Co-autor da Brochura „Ausländerbeiräte in Hessen - Aufgaben und Organisation“, editada pela AGAH e Hessische Landeszentral für politische Bildung, Wiesbaden, 1988.
Colaborador de vários jornais e do programa de rádio semanal de português de Hamburgo.
http://blog.comunidades.net/justo |