A Primavera é a Páscoa da natureza e
na Primavera dá-se a Páscoa humana. Tudo se encontra a caminho em
conjunto, de forma mais ou menos consciente, mais ou menos rápida.
A Páscoa é passagem e transformação;
expressa o caminhar da humanidade e o caminhar da criação com o criador
do ponto alfa para o ponto ómega. Nela os cristãos procuram acordar para
a natureza de Cristo que reúne tudo em todos.
Pessoas em diferentes situações de
vida e nos seus sistemas de pensar e interpretar exprimem Deus e
salvação à medida da sua linguagem e mentalidade. A vivência concreta
predispõe para a ideia de Deus. A experiência da separação de Deus
deu-se de modo traumático na nossa civilização ocidental. Os evangelhos
correspondem a diferentes interpretações, diversas vivências da Vida de
Jesus. O Novo Testamento é uma casa com muitas mansões: “Na minha casa
há muitas mansões”dizia o mestre de Nazaré!
O Deus de Jesus Cristo é o Deus do
filho pródigo, o senhor da vinha e dos vinhateiros. O Deus vivido
para lá do Deus pensado em conceitos demasiadamente gregos. Jesus
procurava abrir os corações do povo para Deus, um Deus familiar e
libertador a quem chamava “paizinho”; por isso as elites políticas,
religiosas e económicas não o podiam suportar e quem perturba a ordem,
estabelecida pelos mais fortes, é oprimido, expulso ou linchado. A
experiência do reino de Deus torna-se, com ele uma realidade, mais ou
menos consciente, no coração de cada um, na comunhão com o irmão e o
samaritano.
Em Cristo consumou-se a salvação.
Ele é o protótipo de todo o ser humano. Ele libertou-se da maldição
e do pecado da natureza humana e da pena de morte da humanidade. Páscoa
é vida na pujança; ela manifesta o processo de libertação dos males da
natureza humana em processo de realização da natureza de Cristo.
A consciência da morte surgiu com o
alvorecer da consciência humana que floriu pela primeira vez em Eva que
ao pecar se separa da unidade natural que antes comparticipava com os
animais. Alcança assim a idade da razão, a capacidade de pecar, isto é
de assumir responsabilidade por si mesma, tal como a criança que uma vez
atingida a idade da razão começa a questionar o paraíso paterno em que
até aí vivia. Na semana pascal celebra-se o expirar da natureza e num
certo sentido a morte de Deus.
Oh félix culpa
que acordaste a humanidade para a responsabilidade em liberdade e que
atingiste a máxima expressão no calvário e resumes a história da
humanidade e da criação no alfa e ómega, protótipo de toda a realidade
em processo, à imagem da economia da Trindade. O nosso caminho é uma
via-sacra de purificação até à reconciliação com tudo em todos, em Deus.
A Páscoa, Jesus Cristo é o exemplo da ponte, da metamorfose
humano-divina, matéria -espírito.
Na transubstanciação da comunhão
destroem-se todas as cancelas entre a substancialidade e o Espírito. O
pão, a terra, o universo tornam-se o corpo e o sangue de Cristo,
tornam-se a divindade. E isto não é só simbologia mas realidade,
realidade da criação e de todos nós. Nele e com ele somos um, em
comunhão com toda a criação. Na comunidade, em comunhão com ele e com o
outro tornamos a Realidade presente.
A Quaresma é o tempo da experiência
da purificação do ego a caminho e ao encontro do verdadeiro eu, da
ipseidade. Durante ela aprende-se a renunciar à carne e ao fazê-lo a
respeitar os animais e a vida digna a que estes têm direito: vivemos
também com eles na complementaridade. Exercita-se a libertação da
inveja, da avareza e da cupidez e deste modo a respeitar e considerar
todos os seres vivos na sua substancialidade e na sua espiritualidade.
Isto leva-nos a purificar-nos de nós mesmos e daquilo que assumimos dos
outros e que nos leva à doença do ter.
O próprio consciente e até o
inconsciente devem ser colocados no cadinho da procura da verdade. Na
renúncia a si mesmo, ao ego aprendemos a ter menos necessidades, a
libertar-nos delas. A liberdade conduz-nos ao amor, à sintonia que se
pode traduzir em compaixão e misericórdia (sintonia e ressonância). A
ausência de necessidades acorda-nos para a realização do Reino de Deus.
O cristianismo recomenda o exercício
das virtudes, a observação dos 10 mandamentos, a oração, a esmola, a
meditação, o jejum corporal e espiritual, o exame de consciência a nível
de pensamentos palavras e obras, como exercícios de purificação a
caminho e na realização da salvação: esta é processo. Trata-se de passar
do tempo cronológico, e mesmo do kairós para o tempo parusia, o tempo
fora do tempo, o “tempo” acção amorosa.
Não há caminho feito, faz-se caminho
andando, e cada um tem o seu caminho pautado pelo do Mestre de Nazaré
que nos antecipou. O ego supera-se no amor ao próximo, no amor a todo o
ser humano, a todos os seres como se pode ver na prática das
bem-aventuranças. O tempo da Quaresma aponta para a reflexão e meditação
desta realidade, o outro lado do viver na procura intensiva da verdade,
da descoberta da ipseidade na ressonância com a ipsidade dos outros e na
vivência e sintonia comum da caritas/ágape. A paz interior que ressalta
das bem-aventurados que reconhecem que tudo lhes foi dado e por isso o
atingir duma consciência de entrega e a compreensão (sintonia) com o
samaritano e o universo.
Jesus queria conduzir a humanidade a
Deus, queria encorajar cada um a libertar-se das cargas da lei e de tudo
o que causa sofrimento e por isso resume toda a sua vida e filosofia no
amor a Deus, a si mesmo e ao próximo, especificando que o próximo é o
estranho, o Samaritano. A sua visão da realidade e do Homem é tão
pacífica e abrangente que exige dos seus seguidores o amor ao inimigo. O
sermão da montanha (bem-aventuranças) pressupõe a libertação do ego
(alcance da perfeição, êxtase), num processo de libertação do ter para
se poder realizar o Reino de Deus já aqui na terra (Mc 1,15). Trata-se
de experimentar a união com tudo, com Deus, da vivência do divino: “Deus
é amar, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele” (1.Jo
4,16).
No processo de salvação (libertação),
através da cruz, os cristãos fizeram a experiência que a vida implica a
morte. O Filho do Homem, o protótipo de toda a criatura, é vida apesar
da morte. A vida é ressurreição. A morte que primeiramente parecia o
verdadeiro inimigo da humanidade revela-se no Homem Adulto já não como
pena mas como parte da vida. No momento da queixa do Homem “Meus Deus,
porque me abandonaste” está já a divindade a irromper tal como o botão
de rosa, a experiência da mãe num esforço de dar à luz, de acordar para
a nova realidade. Deus morre por momentos em Jesus Cristo para a
criatura, com ele ressuscitar em Deus. “Eu vivo e vós vivereis”(Jo.
14,19);”eu estou em meu Pai e vós em mim e eu em vós”. “Deus faz a sua
morada” naquele que se puser a caminho e assim entrar no processo
trinitário.
Deus é a videira e nós as suas varas
(Jo. 15, 4-8). Entre a divindade e a sua criação há uma relação de
complementaridade. A relação divina que tudo sustena é amor; de resto, a
doutrina reduz-se a pedagogia. Cristo está presente nas acções, na
palavra, no indivíduo e na comunidade, em toda a criação.
Jesus dizia muitas vezes: “que te
aconteça como crês”. O mesmo será antes, na e depois da morte. “A tua fé
te salvou”, repetia também. A percepção, seja ela religiosa ou
científica, tem como base a fé como arroteadora da realidade que no
fundo permanece sempre mistério. Em Jesus encontramos a expressão
(modelo), do caminho de Deus connosco até “que Deus seja tudo em todos”
(1 Cor. 15,28) já em processo no mistério da trindade de que fazemos
parte.
É o caminho do despir do eu na
metamorfose até à natureza de Cristo.
No desbravar do mistério da vida,
cada um precisa de símbolos e modelos da realidade, que são ao mesmo
tempo expressão (em imagens e ideias) de vivências individuais e
culturais. |
ANTÓNIO da Cunha Duarte JUSTO . Nasceu em Várzea-Arouca (Portugal). E-mail: a.c.justo@t-online.de.
Professor de Língua e Cultura Portuguesas, professor de Ética, delegado da disciplina de português na Universidade de Kassel .
PUBLICAÇÕES
- Chefe Redactor de Gemeinsam, revista trimestral do Conselho de Estrangeiros de Kassel em alemão com secções em português, italiano, turco, françês, grego, editada pela cidade de Kassel, tiragem 5. 000 exemplares.
- Editor da Brochura bilingue: "Pontes Para um Futuro Comum – Brücken in eine gemeinsame Zukunft", editada na Caritas, Kassel
- Editor de "O Farol" , jornal de carácter escolar e social em colaboração com alunos, pais e portugueses das cidades de Bad Wildungen, Hessisch Lichtenau, Kassel, Bad Arolsen e Diemelstadt( de 1981 a 1985)
- Editor de „Boletim da Fracção Portuguesa no Conselho de Estrangeiros de Kassel (1984)
- Autor da Brochura „Kommunalwahlrecht für Ausländer – Argumente“ editada pela Câmara Municipal de Kassel, Fevereiro de 1987.
- Co-autor da Brochura „Ausländerbeiräte in Hessen - Aufgaben und Organisation“, editada pela AGAH e Hessische Landeszentral für politische Bildung, Wiesbaden, 1988.
Colaborador de vários jornais e do programa de rádio semanal de português de Hamburgo.
http://blog.comunidades.net/justo
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