A emancipação continua um problema não
resolvido na época moderna. A história da mulher é, em muitas culturas e
subculturas, enquadrada num ambiente de culpa e vergonha.
Nos últimos 150 anos tem havido,
epidermicamente, a preocupação de se criar mais justiça no trato da
mulher. A nova sociedade do trabalho precisava de mão-de-obra para
satisfazer as suas necessidades. A mulher foi mobilizada também
adquirindo assim, para lá da família, um lugar na sociedade. A
emancipação da mulher tem-se processado numa forma de servir o
trabalho.
A sociedade industrial capitalista e
socialista equaciona o ser humano em termos de trabalho e de dinheiro,
sem outros horizontes mitigantes possíveis.
Nesta sociedade de concorrência, também a
mulher se vê obrigada a equacionar o seu sentido, a sua emancipação, em
termos de trabalho, em perspectivas meramente funcionais. Assim também
ela luta por um lugar, uma função na sociedade.
Relegada, na grande maioria para trabalhos
considerados “inferiores” sente que a feminidade é explorada pelo
virilismo. Magoada no âmago do seu ser opõe-se a ser reduzida à função
de servir e por isso luta pela igualdade de oportunidades.
No princípio “Deus criou o Homem como
homem e mulher”, à sua “imagem e semelhança”. O ser do homem e do seu
estar social ultrapassa a masculinidade e a feminidade. Encontrando-se
embora mulher e homem numa relação polar não é legítimo reduzir a mulher
a um papel social sexual ou laboral à medida duma forma de Estado criado
à imagem do homem. Deus criou-os diferentes mas iguais; iguais também no
serviço mútuo do matrimónio. A mulher não é só mulher nem o homem é só
homem, os dois juntos são a imagem de Deus.
O seu ser pessoal, não suporta a redução a
mero indivíduo em interdependência. Seria machismo reduzir a emancipação
da mulher apenas a uma igualdade funcional de direitos. Um e outro têm a
mesma dignidade humana sem qualquer prioridade de um sobre o outro, pelo
que não pode haver reservados limitadores da acção feminina: também a
exclusão da ordenação sacerdotal para mulheres não pode ser legitimada
com pretextos do sexo, ou pretextos culturais, já que estes são
premissas provenientes da sociedade masculina, premissas dum Estado
regido pela masculinidade. Estados e religiões roubam algo à igualdade
da mulher, defraudando-a na sua dignidade humana. A equivalência de
homem e mulher na dignidade é estrutural não podendo esta ser reduzida a
uma igualdade meramente funcional deduzida do carácter sexual, duma
forma de estar do Homem. Daí que também a Igreja Católica se encontra a
nível prático em contradição com a sua própria doutrina ao considerar a
mulher apenas sob o carácter funcional ao não lhe permitir o acesso à
ordem sacerdotal.
Na polaridade própria do ser terreno não
se podem reduzir a vocação do Homem (Mulher e Homem) a uma profissão
como se os dois tivessem apenas uma relação funcional.
Não seria hoje, uma das tarefas da mulher,
o momento de repetir o gesto de Eva, chamando o homem à atenção de olhar
para cima, para a árvore da liberdade? Acordar, de novo o companheiro
para a vida. Se na cena bíblica a mulher o acordou da animalidade para a
racionalidade, hoje ela terá de o acordar do seu viver em segunda mão,
da sua cama da cultura, não permitindo que ele continue a ser cuco a pôr
ovos em ninho alheio!
Emancipação não se reduz apenas ao querer
participar na competição organizada pelo homem; nesse caso seria um
mal-entendido da libertação.. Emancipação começaria por questionar a
corrida e pretender investigar para onde vai a corrida. Doutro modo a
mulher apenas fortalecerá o sistema masculino, um sistema de corrida em
que todos ficam pelo caminho, estafados, sem saberem para onde corriam.
Não chega fazer do caminho sentido. Isso é masculino. O especificamente
feminino será preocupar-se com o produto, com o processo na perspectiva
final do parto!...
A emancipação implica um processo de
libertação das estruturas da violência, que se torne libertação também
para o homem e libertação dos ídolos masculinos.
A emancipação pressupõe uma revisão da vida humana sob a perspectiva do
olhar fecundo da mulher não interessada apenas numa satisfação ocasional
sempre repetida, mas numa correcção de perspectiva de futuro, o que
implicaria uma rectificação dos valores. Valores femininos, de que se
sente a falta no modelo de sociedade em prática.
O homem parece continuamente precipitado na correria ao orgasmo, na
realização do herói, do conquistador, numa correria de destruição, duma
ventania que passa, num instinto de morte a fugir a si mesma. Enquanto o
homem se esgota no acto, a mulher repousa na acção com a força da
paciência da vida que na sua gestação, acção criadora, implica a
paciência da gravidez que se realiza no viver. Naturalmente que a
ventania masculina também é importante, mas, sem a persistência, sem a
continuidade feminina, só realiza conquistas, devastações, utopias de
embalar para não sentir o contínuo morrer. Se o homem traz nele o
tanatos (a morte), a mulher traz nela a vida; um e outro são
inseparáveis. Trata-se da união dos dois, na vivência consciente da
tensão polar entre os dois na realização dum terceiro ser: o nós. O
homem precisa de adquirir a paciência para sentir a vida a realizar-se
nele e não se contentar com o sentimento da vida a passar. Uma
actividade feminina mais presente unida a uma virilidade mais paciente
poderiam parir um outro tipo de sociedade em que a humanidade, a
complacência estivessem em casa.
Num primeiro momento a feminidade educaria a masculinidade conduzindo a
sociedade para um novo caminho. Então a massa morta do povo passaria a
levedar um novo estar, um novo ser. Não se trata do amolecimento do
masculino, ou de se criar um homem maricas decadente, nem uma mulher
macho, um virago. Trata-se de conseguir a união da privacidade íntima
com o público representativo. O mundo tecnológico e partidário seriam
mitigados por uma maior presença duma cultura de arte, literatura e
ideias, passando da ortodoxia de que se apoderou o homem para uma
ortopraxia. Não é suficiente que o homem continue a instrumentalizar o
feminino, servindo-se do erótico da mulher para melhor expressar e
transportar a sua masculinidade na cultura e sociedade.
Não se avistam modelos concretos de sociedade que tenham respeito pela
feminidade e menos ainda que a integrem. Capitalismo, Comunismo,
Socialismo materialista são os melhores exemplos duma cultura
tipicamente masculina. Só uma mudança de valores, que não a de valores
masculinos em voga, que são o resultado e o objectivo duma ordem
masculina unilateral, garantirá libertação do homem e da mulher, em
conjunto. A masculinidade foi separada da feminidade tal como a
sociedade do trabalho separou a família da sociedade, em detrimento da
sociabilidade e da privacidade.
O empreendimento duma sociedade humana implica esforços em todas as
direcções: da filosofia para que esta dê mais relevo ao método indutivo,
da religião para que esta dê mais relevo à feminidade divina, da
economia para que esta dê mais relevo ao carácter humano e duma política
menos partidária e mais solidária que reflicta o espírito das
disciplinas anteriores. Isto pressupõe o projecto duma mulher autêntica
e do homem autêntico, ambos em processo aberto, sem se deixarem
instrumentalizar e funcionalizar.
Trata-se de ultrapassar o mesmo espírito que deu forma às sociedades dos
escravos, dos senhores e à actual sociedade do trabalho para passarmos a
uma infra-estrutura, baseada no Homem feminino e masculino, geradora
duma sociedade humana. Passar duma sociedade dos serviços para uma
sociedade do humano, duma sociedade que não se esgote no acto sexual mas
se delicie também na gestação!... Uma sociedade já não do homem, mas do
Homem, uma sociedade grávida de humanidade sem lugar para poleiros
baseada na mística do galo e da galinha. A diferença é uma constante na
natureza que apela à solidariedade. O que determina a essência
ontológico do homem é a mulher e o que determina a essência ontológico
da mulher é o homem, doutro modo seríamos reduzidos, uns e outros à
esterilidade.
Já fomos, demasiado tempo, conquistadores e heróis, talvez se aproxime o
tempo em que possamos ser todos peregrinos. Então Adão reconciliar-se-á
com Eva deixando de se afirmar pela coacção e de viver do salário barato
da obediência e da subjugação.
Que vale a descrença, que vale o cepticismo se se desfaz numa outra fé?
Então seria mais oportuno voltar à fé primeira numa ortopraxia.Então
será óbvia a libertação e não a emancipação. Aquela constrói, enquanto
que esta é a táctica de domínio do homem: divide para reinar!...
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo |
ANTÓNIO da Cunha Duarte JUSTO . Nasceu em Várzea-Arouca (Portugal). E-mail: a.c.justo@t-online.de.
Professor de Língua e Cultura Portuguesas, professor de Ética, delegado da disciplina de português na Universidade de Kassel .
PUBLICAÇÕES
- Chefe Redactor de Gemeinsam, revista trimestral do Conselho de Estrangeiros de Kassel em alemão com secções em português, italiano, turco, françês, grego, editada pela cidade de Kassel, tiragem 5. 000 exemplares.
- Editor da Brochura bilingue: "Pontes Para um Futuro Comum – Brücken in eine gemeinsame Zukunft", editada na Caritas, Kassel
- Editor de "O Farol" , jornal de carácter escolar e social em colaboração com alunos, pais e portugueses das cidades de Bad Wildungen, Hessisch Lichtenau, Kassel, Bad Arolsen e Diemelstadt( de 1981 a 1985)
- Editor de „Boletim da Fracção Portuguesa no Conselho de Estrangeiros de Kassel (1984)
- Autor da Brochura „Kommunalwahlrecht für Ausländer – Argumente“ editada pela Câmara Municipal de Kassel, Fevereiro de 1987.
- Co-autor da Brochura „Ausländerbeiräte in Hessen - Aufgaben und Organisation“, editada pela AGAH e Hessische Landeszentral für politische Bildung, Wiesbaden, 1988.
Colaborador de vários jornais e do programa de rádio semanal de português de Hamburgo.
http://blog.comunidades.net/justo
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