Definimo-nos pela fala, por
isso não nos podemos calar! Pela fala nos tornamos na procura dum tu
que nos leva a nós. Pela fala nos formamos e pela fala queremos
provar a nossa existência. Diria mesmo, somos conversa; por vezes
conversa fiada. Nesta deixamos de nos tornar veículo e conteúdo para
nos reduzirmos a veículo apenas!
Na sequência dum artigo que
escrevi sobre Saramago, entre outros e-mails que recebi, um dizia:
"Gostei de ver Camões como bombeiro deste fogo da maldade! Afinal o
fogo do amor camoniano a combater o outro! Não escreva mais sobre
este “gajo” que os suecos usaram como os franceses usaram Linda de
Suza, para estigmatizarem Portugal e os Portugueses em flashes
imagéticos opostos ao que nós somos! Está ao nível da Maitê
Proença." Fim da citação.
Como dizia a princípio,
embora em contexto, definimo-nos pelo texto e através dele nos
desenvolvemos. É fácil perder-se no contexto sem chegar ao
texto. Se não fosse o texto bíblico e as suas afirmações e
contradições não nos encontraríamos tão adiantados
civilizacionalmente. Somos veículo e veiculados do mesmo mistério
que a Bíblia procura abordar. Por isso escrevo mais sobre o assunto.
Se não fossem as discussões e a vontade de encontrar a verdade, que
tem sempre, além da face oculta, a tua e a minha versão, então não
passaríamos da cepa torta; permaneceríamos de rosto voltado para a
sombra. A controvérsia, se for honesta e sincera leva à luz daqueles
que ainda se encontram de pé, a caminho, e ainda não morreram para
si e para a vida, ao contrário daqueles que permanecem pelo caminho
na sombra da rotina e dum progresso balofo, enquistados na
auto-suficiência e no dogma da própria opinião.
Naturalmente que Portugal é
universal e tem lugar para todos os antagonismos e a discussão pode
gerar a luz. O problema está na tesoura que se traz na cabeça e
censura tudo o que não corresponda à própria opinião e aos próprios
interesses.
A falta de formação e de
vontade de saber simplificam o trabalho incendiário de quem abusa da
ingenuidade. Saramago, na sua maneira como interpreta a Bíblia dá
a impressão de ser um fundamentalista. O fundamentalismo
religioso e ideológico alimenta-se da mesma manjedoura dos
adamastores do medo, do infantilismo e do interesse abusivo. Ele
desconhece que a Bíblia também é a biografia dum povo e duma pessoa,
descritas com as melhores metáforas e imagens protótipos do Homem e
da sociedade.
Camões em Os Lusíadas descreve
a acção e a herança cultural do povo lusitano. Os autores bíblicos,
à luz de Deus, descrevem, no Antigo Testamento, a acção do Homem em
relação com o Outro, com Deus que lhe dá forma.
A “Ilha dos Amores” de Os
Lusíadas certamente que não será aproveitada por Saramago para
difamar os portugueses como imorais. Nas descrições Bíblicas
encontra-se a vontade do povo mais relevante de toda a História, o
povo judeu, que na discussão com o seu Deus consegue afirmar a sua
identidade como povo contra o tribalismo circundante, contribuindo,
de forma eminente para o desenvolvimento da humanidade. Nos seus
mitos e na imagem do seu Deus se revela a sua grande personalidade e
vontade de ser. Com o seu Deus, que lhe dá identidade, “o povo
eleito” não submergirá na História como outros submergiram.
Quem faz guerra ”dá e leva”.
José Saramago sabe bem atear fogos. A melhor resposta ao fogo da
maldade será o esclarecimento, a formação cultural. Na escuridão
da desinformação, da ignorância e do egoísmo, até os pirilampos se
tornam grandes luzeiros. Precisamos é de mais promotores do amor, do
amor jesuino e do amor camoniano. Só este fogo purifica e
desenvolve! Então todos nós nos transformaremos em pirilampos a
iluminar a terra e não a viver da treva!
Então deixaremos de ser os
“cruzados” de hoje que vão ao caixote das mazelas da História buscar
o fogo para novos incêndios. As achas colocadas nas fogueiras por aí
ateadas são da mesma natureza das fogueiras medievais: as achas da
ignorância e das ideologias.
O autodidacta Saramago
revela grandes défices culturais a nível de saber científico. Não
deixa porém de ter a sua importância em certos aspectos literários e
de ocupar um papel relevante de identificação para os seus fiéis
correligionários e para pessoal miúdo que necessita de vedetas para
se galardoar e sentir grande. Cada um tem direito à felicidade à
sua medida e no seu biotopo próprio. O conjunto dos diversos
biotopos é que tornará belo o “jardim à beira mar plantado.”
Saramago parece ser beneficiado pelas tágides das letras mas, apesar
da sua idade, o espírito da sabedoria parece ser recalcado pelo
espírito adolescente!
Ao afirmar que a Bíblia é “um
manual de maus costumes" queria reduzi-la a um livro de ética
justificadora da sua ideologia! Saramago usa a guerra tal como o
povo judaico se serviu da dialéctica na procura da sua identidade
como pessoa e como povo. Ele quer afirmar a vulgata marxista
materialista à custa da vulgata judaico -cristã. Procura fora o que
deveria encontrar dentro.
A Bíblia é um universo de
mundos, encontrando-se nela lugar para as diferentes constelações e
concepções de vida. Na Bíblia se encontra a base da filosofia e
da cultura que produziu esta realidade que é a civilização
ocidental. Quem não entendeu isto desconhece o valor da religião e
da filosofia que são nosso berço e mãe. Saramago comunga da
douta ignorância oportuna posta ao serviço dum socialismo e
republicanismo ultrapassados que, apesar de tudo, mereceriam muito
mais qualidade e seriedade, na estratégia da sua promoção! O seu
internacionalismo não pode afirmar-se à custa da difamação e de
malentendidos sobre o nosso legado cultural, a não ser que nos
tenhamos tornado masoquistas e interessados na decadência e queda da
nossa civilização! Não há que destruir, mas sim renovar e
remodelar! O legado judaico – cristão sintetiizou nele o saber
doutras culturas e levou o Homem a não mais andar curvado à
obediência do conveniente e possibilitou o levantar-se mesmo contra
um deus da subserviência. O Deus biblico é libertador, como se pode
ver no seu fruto, a civilização ocidental, que apesar das suas
contradições mantem, por baixo do borralho das suas cinzas, o fogo
do amor, a lei das leis! Infelizmente um certo meio ideológico só
parece comprazer-se nos odores do esterco da História da Igreja
católica, como se esta só constasse da casa de banho! Torna-se
suspeito quem caça moscas com tais odores!... Precisa-se é da
vontade de saber , de formação humana e de crítica construtiva que
viva bem com a farinha do seu moinho sem desviar nem sujar a água
dos moinhos dos outros!
A discussão é necessária porque
muitos não usam a própria cabeça para pensar e se instruir,
preferindo encostar-se a um pequeno ídolo nobilitado pelo prémio
Nobel ou a uma opinião indiscutível. Os seus ataques desqualificados
revelam a arrogância do poder instalado consciente de que “para quem
é bacalhau basta”! Naturalmente que todos nós temos em nós algo da
natureza saramago, independentemente de nos chamarmos Saramagos ou
Antónios!
O saber bíblico é
personalizador, apostando na dignidade humana e nos direitos dos
humanos e dos seres em geral, apelando consequentemente para a
desobediência à banalidade do meramente factual e do pensar
correcto, rebelando-se contra autoridades meramente exteriores, não
favorecendo, por isso, as ideias peregrinas dos santuários das
autoridades e das ideologias. Se para alguns parece ser suficiente e
consolador o cheiro das ideologias para outros, para os conscientes
da História e da Humanidade não!
Cada época tem a sua luz e as
suas sombras. Cada argumentação também. Hoje procura reduzir-se tudo
a mercado e submeter-se tudo às leis da concorrência. O nosso
pensar de hoje, forjado pelo modelo económico é tão precário como o
modelo de pensamento de épocas passadas que arrogantemente
criticamos. Tornamo-nos prisioneiros do próprio discurso no
labirinto da dialéctica. O pensar bíblico ajudar-nos-ia a
complementá-lo e a deixar de viver em curto-circuito. Este novo
pensar em termos cristãos poderíamos dominá-lo de pensar trinitário
que é na sua essência complementar integral e não antagónico como o
binário (dialético) seguido do certo e errado, um pensar em contínuo
curto-circuito! Naturalmente que a aguilhada da dialética se revela
como uma boa estratégia de desenvolvimento, pelo menos à tona da
realidade!
Deus é mais que o que possamos
dizer dele pela positiva e pela negativa e a religião é mais que o
milagre. A bíblia é mais que poesia e que um livro de moral. Ela é
vivência, é caminho e vida.
Deus não submete o povo a
provações nem exige fidelidade e obediência externa. Ele é o mais
interior do Homem, a sua ipseidade, o seu selbst, a sua própria
possibilidade. De resto o nosso falar de Deus não passa dum falar do
Homem e de nós mesmos.
© António da Cunha Duarte Justo
antoniocunhajusto@googlemail.com
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