Regresso de férias, resta na minha
consciência um mau sabor a natureza desprezada! Enquanto me espreguiçava
no jardim da minha casa da Branca, ouvia o sofrimento a ecoar pelo monte
de S. Julião fora. Aqui, a natureza, atada a um cadeado, numa ânsia de
libertação, ladrava infeliz, para o ar, os pecados e os erros de quem a
aprisiona; de quem aprisiona a natureza num cão. Acolá projectos humanos
que desrespeitam e ferem a fisionomia e o brilho da paisagem. Enfim, uma
desfeita à natureza numa natureza cada vez mais desfeita.
Deus criou o homem à sua imagem e
semelhança e criou a natureza a espelhar a imagem do homem. No Homem e
na Natureza se revela a imagem de Deus e na natureza se encontra e
reflecte a imagem do Homem. Uma má visão e um mau trato da natureza
implica uma má visão e um mau trato do ser humano e de Deus, diria hoje
Tomás de Aquino. Imagem e realidade encontram-se numa relação intrínseca
e mútua.
A natureza encontra-se doente porque o
espírito humano se encontra atrofiado e enfermo numa relação doentia de
objectivação e mercantilização da vida. O Homem sofre ao ser reduzido a
mercadoria e a natureza sofre ao ser reduzida, por falta de consciência
natural, por falta de dignidade humana; falta esta que o leva a
desprezar o seu corpo, a natureza.
O Homem encontra-se atado ao cadeado das
necessidades imediatas, às cadeias do governo e do emprego e por isso
não sofre ao amarrar o cão à sua casota, reduzindo-o à sua imagem de
animal útil. O Homem instrumentaliza-se a si mesmo ao instrumentalizar a
natureza, escraviza-se ao torná-la escrava e não senhora.
O processo de desnaturalização do Homem
acentuou-se com o mecanicismo materialista e com o racionalismo
exacerbado. A urbanização da sociedade distanciou mais o ser humano de
si mesmo e do seu biótopo natural. Com a desespiritualização da natureza
processa-se a demonização do Homem e consequentemente a falta de
horizonte da natureza e do Homem.
O olhar perturbado do homem ao reunir em
si todos os olhares de todos os animais, de todas as plantas, de toda a
natureza, perturba a sua visão individual. O homem torna-se
paulatinamente num ser estranho e desnaturado, vivendo sem respeito
pelas outras criaturas com se também elas não tivessem direito a uma
vida condigna. Ao deixar de contemplar os horizontes espirituais de si
mesmo, deixa de admirar a paisagem natural e começa a desconsiderar as
espécies. Não só se torna cego mas deixa também de ouvir a voz das
espécies. Conhece a sua cidade mas desconhece a sua terra, o seu lar.
Uma vida em segunda mão, desnatura-se e atraiçoa a natureza,
desconsidera o seu biótopo natural refugiando-se em substitutos
virtuais, em ideologias, moralismos ou fobias.
A Terra deixou de ser o Éden onde animais
e Humanidade, irmanados viviam na complementaridade e na harmonia do
respeito mútuo. Ao desprezar a natureza o Homem despreza-se a si mesmo,
perde a consciência da realidade e perde o horizonte divino dum Sol que
brilha para todos, sem distinção. Deus sentiu agrado ao criar o Homem,
depois de três biliões de anos de vida na Terra sem o ser humano. Este
porém não aceita ser parceiro de Deus e torna-se cada vez mais o
desagrado da Natureza, cada vez mais alheio a Deus no sistema ecológico.
A vida que foi dada a todos como bem comum é arrebanhada pelo Homem
sendo assim destruído o seu sentido. Não se trata de dispor do outro mas
de todos nos encontrarmos na disponibilidade dum serviço mútuo.
O ser humano teima em viver em segunda
mão, criando para si um mundo virtual, o mundo das ideias que já não
tem, como nos tempos bíblicos, lugar para toda a criação. Deus fez a
aliança com o Homem para que este continue a aliança com a natureza. Na
mesma arca, com a natureza caminhamos e “convergimos” no sentido do
ponto Ómega de Teilhard de Chardin. O lugar privilegiado do Homem
bíblico é um lugar de responsabilidade, numa relação de filho adulto em
relação ao “irmão Sol, ao “irmão burro”, ao outro. O Homem, espelho da
divindade, embacia-se de tal modo que embacia os animais e as plantas.
A força centrípeta do ser humano (o
egoísmo) parece automatizar-se de modo a não reconhecer a órbita do
sistema a que pertene. Ameaça assim afundar-se em si mesmo e
desequilibrar todo o sistema e toda a natureza. Esta já geme de rosto
afogueado e protesta através dos seus elementos. A força centrífuga
(altruísmo) terá de ser reforçada para podermos fazer uma caminhada
comum, se bem que em diferentes velocidades, no sentido Ómega, a
natureza de Cristo. O Homem e o Animal, o Homem e o seu biótopo
pressupõem uma complementaridade do ser e do existir no diálogo do eu
com o tu numa plataforma comum dum nós trinitário.
Na natureza, podemos descobrir o brilho do
nosso rosto que é o fulgor de Deus. Ele criou e dignificou a matéria e
todas as espécies na pessoa de Jesus (matéria) e de Cristo (divindade).
“Não separem o que Deus uniu”: feminilidade e masculinidade, matéria e
espírito, tempo e espaço!
Os animais e as plantas já existiam, por
si mesmas, muito antes do Homem. Que direito tem o ser humano, pelo
facto de ser o mais novo na criação, de apoderar-se do que Deus já
criara antes? A natureza já se encontrava toda desde o início a germinar
na natureza de Cristo. Deus realiza-se na Natureza e não apenas no ser
Humano. O olhar de Deus transcende em toda a natureza e dá-lhe forma. O
tempo e o espaço é roupa que a todos nos cobre.
Se todos somos a sombra da divindade,
porque nos arrogamos o direito de instrumentalizar umas sombras em
benefício das outras? Só o respeito e a consciência do mistério, que nos
são comuns, nos poderão preservar juntos. Nós só sobreviveremos com a
natureza. Ela pode sobreviver sem nós. O Deus bíblico criou-nos
solidários e interdependentes. O ser humano é a sua cabeça. Uma “cultura
contra natura” só favorecerá a visão dum Homem desnaturado.
“Lembra-te que és pó e em pó te hás-de
tornar”, recorda-nos a liturgia de quarta-feira de cinzas. Por mais que
nos distanciemos da terra e do casulo, como a borboleta, teremos de
voltar a ela, para com ela ressurgirmos.
Só uma natureza acarinhada nos
acompanhará. Há dois anos adquiri um gato de 8 semanas. A princípio
acarinhava-o e levava-o comigo nos meus passeios da tarde a um parque
perto de minha casa. Hoje quando saio de casa ele salta e acompanha-me,
como se fosse um cão, todo o caminho.
Em conjunto, animais e plantas,
conseguiremos superar a crise ecológica. Em conjunto tornar-nos-emos uma
sinfonia, um salmo de louvor ao Senhor. Para isso teremos de aprofundar
o nosso olhar teleológico de toda a natureza em conjunto e com ela
caminhar no sentido do mistério da Trindade. Uma ideia de Homem e da
natureza apenas racional atraiçoaria o Criador e o seu projecto. O olhar
da razão seria insuficiente para descrever a realidade se não fosse
complementado pelo do sentimento e da mística. Daí surgirá uma nova
atitude perante os animais e as plantas. A dignidade humana não pode ser
arquitectada de modo parasita em relação aos animais e aos seres em
geral. A hominização da natureza só será legítima se no sentido da
divinização do Homem e da Natureza. Naturalmente que a vida, mais que
uma comédia é um drama, mas não uma tragédia.
Se o mundo levou tanto tempo a dar à luz o
ser humano, não há que desesperar se o Homem adolescente ainda precisa
de algum tempo para se transformar e, com ele, o mundo. Se a terra
caminhou para o Homem, o Homem caminhará para o Espírito no respeito de
tudo o que é vida. O ladrar do cão pode deixar de ser uma queixa e
tornar-se num louvor. Tudo depende de nós. |