ANTÓNIO CABRITA
HABITÁCULO: O BORRÃO

Tofo, 31 de Dezembro de 2005

O mistério: fechada a porta do futuro,

a simultaneidade não cessa. Desde sempre.

Desde que a atribulação bíblica extraviava

a locusta em terra de miragens, até às variações

de corrente que danificam os aparelhos

e dão mais alma a certos recantos selvagens.

Como nas imediações do Tofo, no Índico,

onde os réprobos demandam sol

e viver é tão imperioso como perder tempo.

 

De igual modo, não há acaso se entorno

a cerveja sobre o tampo e o aparo s’ engasga,

momentaneamente, perturbando o que tem

de ser dito. Ácaros e anjos, o invisível

só trabalha a seco, ainda que o trânsito

da passagem, fronteiriço

à pele, flua melhor no húmido.

 

O mistério: fechada a cancela

do futuro, há retornos extraordinários.

Não o de Lázaro, que não ria. Talvez

o do morcego que alegra o alpendre

com as suas asas constipadas

ou o da Ana (tem 9 anos) que começa

um diário datado de Janeiro de 2050.

 

Através da baforada, espreito a T´resa

a reler Duras e intuo o que Cristo anunciou:

Quando fizerdes de dois um, e fizerdes

do interior o exterior, e do exterior

o interior, e do acima o abaixo,

quando tornardes o macho e a fêmea

um só, então entrareis no Reino.

No reino de Monte Cristo 4: um

termo de relação e não de realidade.

 

Não há perdão. Eclode por trás da casa

contígua um feixe de raios laser,

vindos da praia, e uma batida de discoteca

sinaliza que abriram as hostilidades

do fim do ano: 2005 foi alvejado

pela flecha de Apolo. Boers

e moçambicanos acomodam na aljava

os seus gritos de celebração. Um dia

isto rebenta, a ideia de uma África

multirracial é uma pedreira explorada

às cegas e desapega como o morrão

do Monte Cristo que me chagava os dedos.

 

O mistério: extraviado o futuro, à vista

desarmada, persistem sinais de revivescência.

Mesmo que Bush II não passe de um filme

sofrível e que Matrix trivialize

o niilismo. E manifestam-se

as vantagens de ter nascido pobre,

pálida centopeia à beira de uma piscina

da Caparica: não embarco no fascínio

decapitante; a pau, equidistante

de sonhos e vigílias, navego

à cabotagem, ciente de que os náufragos

estão interditos na linha desta costa.

 

A morte é certa e o tempo é somente

a eternidade que se atrasa, preveniram

os egípcios e os modernos não

descortinaram maneira de os contrariar.

Nem eu, latino e vítima, craca e rocha

dos meus tumultos históricos,

para quem o emaranhado da fala

é uma selva escura, e idem os impostos.

 

Meanwhile, Ana e os micro-ondas não

conhecem a maldição de Nemrod,

apesar de em casa não beneficiarmos

dessa fauce tecnológica: é um saber

de miúdos, uma consciência sem

fronteiras. Meanwhile, a empregada

dormita, o som do mar abafa-lhe

humilhações profundas. Preparamo-nos

para a festa como pássaros habituados

a pular de galho em galho. Leio:

 

Hermótino, o clazomênio, costumava

deixar imóvel o seu corpo, enquanto

a sua alma viajava. Um dia, conta Plínio,

devotava-se o sábio a percorrer assim

o mundo, e a sua mulher expôs-lhe o corpo

aos inimigos que imediatamente

lhe deitaram fogo: a sua alma

ficou sem porto. Neste batel, tudo pacífico,

não sou por sorte filho de Medeia (livra!),

mas das suas tremendas qualidades a T’resa

pediu-lhe emprestada a constância:

a minha alma conhece Porto,

doce, seco, ou em balão aquecido.

 

O que de novo me trouxe África

foi o impulso. A noite cai mais rápida,

a malária não tem oráculos. O fresco

impera sobre a pintura a retoque:

voulez vous couchez avec moi, ce soir?

E o drama é mais nítido: chegado

ao teu habitáculo, já não imitas,

habituas-te a viver com muito pouco,

enquanto a morte paira à tua volta,

inolvidável como as mangas de Chicumbane.

Ficará o poema inacabado, ce soir.

de “Piripiri Suite”
António Cabrita nasceu no Pragal a 16 de Janeiro de 1959. Em 1979 publicou Oblíqua Visão de um Cristal num Gomo de Laranja ou Perene o Sangue que Arrebata os Anjos Vingadores. Parte considerável da sua obra poética está reunida em Arte Negra, livro de 2000 publicado pela Editora Fenda. Crítico de cinema e crítico literário no Expresso, António Cabrita é também editor das edições Íman, director da revista Construções Portuárias, autor de contos e argumentos para cinema.