Tofo, 31 de Dezembro de 2005
O mistério: fechada a porta do futuro,
a simultaneidade não cessa. Desde sempre.
Desde que a atribulação bíblica extraviava
a locusta em terra de miragens, até às variações
de corrente que danificam os aparelhos
e dão mais alma a certos recantos selvagens.
Como nas imediações do Tofo, no Índico,
onde os réprobos demandam sol
e viver é tão imperioso como perder tempo.
De igual modo, não há acaso se entorno
a cerveja sobre o tampo e o aparo s’ engasga,
momentaneamente, perturbando o que tem
de ser dito. Ácaros e anjos, o invisível
só trabalha a seco, ainda que o trânsito
da passagem, fronteiriço
à pele, flua melhor no húmido.
O mistério: fechada a cancela
do futuro, há retornos extraordinários.
Não o de Lázaro, que não ria. Talvez
o do morcego que alegra o alpendre
com as suas asas constipadas
ou o da Ana (tem 9 anos) que começa
um diário datado de Janeiro de 2050.
Através da baforada, espreito a T´resa
a reler Duras e intuo o que Cristo anunciou:
Quando fizerdes de dois um, e fizerdes
do interior o exterior, e do exterior
o interior, e do acima o abaixo,
quando tornardes o macho e a fêmea
um só, então entrareis no Reino.
No reino de Monte Cristo 4: um
termo de relação e não de realidade.
Não há perdão. Eclode por trás da casa
contígua um feixe de raios laser,
vindos da praia, e uma batida de discoteca
sinaliza que abriram as hostilidades
do fim do ano: 2005 foi alvejado
pela flecha de Apolo. Boers
e moçambicanos acomodam na aljava
os seus gritos de celebração. Um dia
isto rebenta, a ideia de uma África
multirracial é uma pedreira explorada
às cegas e desapega como o morrão
do Monte Cristo que me chagava os dedos.
O mistério: extraviado o futuro, à vista
desarmada, persistem sinais de revivescência.
Mesmo que Bush II não passe de um filme
sofrível e que Matrix trivialize
o niilismo. E manifestam-se
as vantagens de ter nascido pobre,
pálida centopeia à beira de uma piscina
da Caparica: não embarco no fascínio
decapitante; a pau, equidistante
de sonhos e vigílias, navego
à cabotagem, ciente de que os náufragos
estão interditos na linha desta costa.
A morte é certa e o tempo é somente
a eternidade que se atrasa, preveniram
os egípcios e os modernos não
descortinaram maneira de os contrariar.
Nem eu, latino e vítima, craca e rocha
dos meus tumultos históricos,
para quem o emaranhado da fala
é uma selva escura, e idem os impostos.
Meanwhile, Ana e os micro-ondas não
conhecem a maldição de Nemrod,
apesar de em casa não beneficiarmos
dessa fauce tecnológica: é um saber
de miúdos, uma consciência sem
fronteiras. Meanwhile, a empregada
dormita, o som do mar abafa-lhe
humilhações profundas. Preparamo-nos
para a festa como pássaros habituados
a pular de galho em galho. Leio:
Hermótino, o clazomênio, costumava
deixar imóvel o seu corpo, enquanto
a sua alma viajava. Um dia, conta Plínio,
devotava-se o sábio a percorrer assim
o mundo, e a sua mulher expôs-lhe o corpo
aos inimigos que imediatamente
lhe deitaram fogo: a sua alma
ficou sem porto. Neste batel, tudo pacífico,
não sou por sorte filho de Medeia (livra!),
mas das suas tremendas qualidades a T’resa
pediu-lhe emprestada a constância:
a minha alma conhece Porto,
doce, seco, ou em balão aquecido.
O que de novo me trouxe África
foi o impulso. A noite cai mais rápida,
a malária não tem oráculos. O fresco
impera sobre a pintura a retoque:
voulez vous couchez avec moi, ce soir?
E o drama é mais nítido: chegado
ao teu habitáculo, já não imitas,
habituas-te a viver com muito pouco,
enquanto a morte paira à tua volta,
inolvidável como as mangas de Chicumbane.
Ficará o poema inacabado, ce soir.
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