Andréa Vieira Zanella:
A Casa das Artes

Entrei curiosa, mas ao mesmo tempo tranqüila. O gentil convite acalentou minha alma, e o calor do lugar me aqueceu naquele dia frio de inverno. Não foi desavisada que cheguei, pois alguém havia me dito que aquela casa era especial. Na verdade sabia disso, pois especial era a doce pessoa que ali vivia e que me recebeu logo cedo, vestindo um robe de chambre apeluciado que trazia em sua superfície pequenas bolinhas a indicar o tempo dedicado ao cuidado daquele corpo.

Entrei, e logo fui capturada pelos estridentes chamados de várias, inúmeras telas que decoravam as paredes e o teto, de imóveis esculturas que ocupavam um pequeno ou nem tão reduzido espaço no plano do assoalho, mas que se engrandeciam na medida em que delas me aproximava. Pareciam polvos estridentes a lançar seus tentáculos em minha direção, na tentativa de capturar meu olhar, meus sentidos, meu corpo.

Fiquei atordoada, sem saber a qual apelo me dirigir. Vaguei por aquelas diferentes texturas e cores, deixando-me capturar por uma ou outra, sem escolha. Capturada fui pelos apelos daquelas obras, que me prendiam e generosamente largavam para que outra e outra pudessem também me acolher. Um corpo solto, leve, vagando encantado pela riqueza daquelas imagens, imerso nas teias daquelas obras que generosamente se expandiam para acolhê-lo em suas entranhas e delicadamente se recolhiam para que esse mesmo corpo pudesse vagar por tantas e tantas outras obras que ali convivem.  

Vez ou outra esse corpo se arrumava, retomava a postura ereta de costume e a palavra vinha, embargada da emoção que o vagar suscitou. Mas pouco tempo durava essa condição, logo outra tela ou outra escultura lançava seus tentáculos e o capturava tal como uma planta carnívora que delicadamente chama a atenção de sua presa e depois se fecha para degluti-la.

Fui deglutida, certamente, por aquelas obras da Casa das Artes de minha doce amiga. Uma experiência que me marcou profundamente, e que estas palavras tentam de alguma forma narrar. Palavras que podem não ser potentes o suficiente para permitir a um outro compreender a intensidade do vivido, mas que me ajudam a registrar de algum modo esse acontecimento e que me permitirão revive-lo, revisitá-lo, sempre e sempre, mesmo quando o tempo tenha já coberto de areia os seus últimos vestígios. Palavras vento que me ajudarão a lançar para longe esses grãos de areia até que aquele vagar por texturas e cores, aquele corpo entregue ao movimento, possa ser revivido.

Voltei à Casa das Artes algum tempo depois, mas tudo estava muito diferente. Igual, mas diferente. Nada dali havia sido retirado e nenhuma obra havia sido trazida para fazer companhia às tantas que ali estavam. Mas tudo estava diferente. As obras paradas, inertes. Nenhum apelo. Nenhum tentáculo.

Estranhei o silêncio. Circulei pelos espaços, à procura da intensidade que havia me capturado naquela visita primeira. Mas as obras estavam quietas, talvez cansadas. Estranhei, e continuei a circular, pois não me conformava pensar que ali estavam somente objetos de decoração. Voltei meu corpo para aquelas obras que com mais intensidade haviam me segurado e cuja força do abraço continuei a sentir por todo o tempo entre a visita primeira e o segundo encontro, este do silêncio. E ali, no fundo daquelas texturas aparentemente inertes, consegui novamente imergir na intensidade de suas formas e cores, e senti pulsar novamente a vida que antes extravasava, mas que agora se recolhia para fazer-se ver somente a quem lhe pedia permissão e que maliciosamente podia vir a autorizar.

Inesquecível a experiência que vivi na Casa das Artes. Não sei se algum dia lá retornarei, e o que posso vir a encontrar. Mas certamente a intensidade dos apelos de seus supostos inertes habitantes continuará a pulsar no meu corpo, arte viva a atiçar o desejo de vida como arte.

Andréa Vieira Zanella. Brasileira, nascida em Pato Branco-Paraná, é professora associada da Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista em produtividade do CNPq. Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (1986), mestrado (1992) e doutorado (1997) em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Realizou estudos pós-doutorais na Università Degli Studi di Roma La Sapienza, em 2009. Tem experiência nas áreas de Psicologia Social e Psicologia Educacional e desenvolve projetos de pesquisa e extensão com os seguintes temas: constituição do sujeito, relações estéticas e processos de criação; psicologia social e arte; educação estética.
E-mail: azanella@cfh.ufsc.br