Vencedor da edição portuguesa do Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica, anunciado oficialmente ontem, Amadeu Baptista (n. 1953) começou a publicar em 1982 (As Passagens Secretas) e tem 20 livros editados em Portugal, além de poemas traduzidos para alemão, castelhano, catalão, francês, hebraico, italiano, inglês e romeno.
Em entrevista feita por e-mail, falou a este blogue da génese de Sobre as Imagens (o livro premiado), da escrita compulsiva, do seu “sistema” poético, do desemprego que vai enganando com o dinheiro dos vários prémios ganhos nos últimos meses e do “enxovalho” a que a maior parte dos autores estão sujeitos em Portugal.
A obra com que venceu o Prémio Palavra Ibérica tem como ponto de partida os 14 painéis do retábulo da capela-mor da Sé de Viseu, expostos no Museu Grão Vasco. O que é que o levou a este exercício de écfrase, aliás recorrente na sua obra?
Vi pela primeira vez os painéis do retábulo da capela-mor da Sé de Viseu na infância, além das obras de referência de Vasco Fernandes, designadamente o seu S. Pedro, que nunca mais esqueci. Há pouco tempo tive oportunidade de rever o conjunto (mas tinha-o vivo na memória, essa crença que sempre acompanha os poetas para o bem ou para o mal) e logo ficou a germinar a ideia de fazer uma série de poemas sobre eles, levando em linha de conta o seu esplendoroso poder, por um lado, e, por outro, o facto de, neste caso, como em tantos outros, serem obras-primas praticamente desconhecidas dos portugueses. Temos o grande defeito de desprezarmos o que é nosso e acontece que nos desarmamos por não amarmos o que nos pertence. Por isso, mais do que o mero intuito ecfrásico, de que por acaso até tenho algumas dúvidas ser assim tão evidente, pretendi, antes de mais, com a escrita de Sobre as Imagens, servir-me da minha natural apetência para a escrita para a realização de um prazer pessoal, pelo entrosamento dos poemas com estas obras em particular, e um modesto serviço público de divulgação da nossa arte, que também pode ser feito por esta via.
À agência Lusa, afirmou estar neste momento a escrever poemas inspirados em 500 obras de arte. Não 5 nem 50, mas 500. Repito por extenso: quinhentos. Isto é o quê? Uma obsessão ou um ataque de megalomania?
É um projecto, nada mais do que isso. Um projecto que está em fase de realização e que espero que o meu instinto consiga levar a bom porto. É, antes de mais, um trabalho, sem pretensões a ser mais do que isso mesmo. E nem estou preocupado em saber se conseguirei encontrar um editor para um volume tão extenso, quando, e se, o terminar. Isso é o que menos me preocupa durante o processo de criação, que lá terá as suas leis despóticas, embora nunca se saiba muito bem qual elas sejam. E isto para dizer que, antes de mais, escrevo para mim mesmo. E que me encoraja o desafio, sobretudo se está delineado à partida por um caminho a percorrer, seja ele de 5, de 50, ou 500 poemas. Importa é saber se ‘a tinta não está seca e se levanta as lebres’, como diz o meu amigo António Cabrita, a que este país ignaro empurrou estupidamente para o exílio, a propósito destas coisas.
Em pouco mais de seis meses, ganhou quatro prémios literários. Como é que explica esta prolixidade? Tinha os livros na gaveta?
Uns, sim. Outros, não. No caso específico de Sobre as Imagens o livro era, à data, o meu livro mais recente, tal como aconteceu com Poemas de Caravaggio (Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, 2007) e Outros Domínios (Prémio Literário Florbela Espanca, 2007). O Bosque Cintilante (Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, 2007) esteve na gaveta uns dez anos, até que resolvi pô-lo a mexer, em direcção ao mundo. Mas a verdade é que, embora não saiba muito bem o que seja a prolixidade, sou capaz de preparar um livro em muito pouco tempo (alguns dias bastam, até porque corro o risco de perder a mão que dá unidade ao livro se não estiver atento ao ritmo da escrita), seja por acesso de raiva de escrevente em busca do que não existe, seja porque a tal satisfação pessoal me incita a perseverar no projecto do conjunto. Sei que haverá quem pense que é uma blasfémia confessar que escrevo poesia directamente no computador, mas escrever assim não só me garante uma tensão mais próxima e veloz no fio da escrita como também me permite não ter que me confrontar com os hieróglifos da minha caligrafia, que, cada vez mais, me são menos legíveis. Quanto a livros inéditos, já deixei de os contar. Devo ter mais de 25 livros inéditos, fruto, exactamente, da perseverança que quem escreve deve ter, sob pena de se afastar inexoravelmente do que pretende realizar.
Não teme ser visto como um papa-prémios, um caça-níqueis, um rival bastante sério de José Jorge Letria nestas lides?
Escrevo desde que me conheço e estou-me borrifando para o que os invejosos possam pensar do facto de concorrer a prémios literários e os ganhar. O Camões sabia muito bem o que estava a fazer quando pespegou como última palavra de Os Lusíadas a palavra inveja. Não tenho que defender o José Jorge Letria, cuja obra conheço mal, diga-se de passagem. Tal como, no caso, não tenho que me defender dos ciumentos da obra alheia, que não têm estatura senão para a cobiça, a preguiça e a desonestidade intelectual. Não frequento capelas, tenham elas a marca que tiverem. Quem me conhece sabe como facilmente me nauseia o panorama ‘literário’ da paróquia e que quem está a meu favor está, sem rebuços, a meio do caminho do meu desfavor, sendo que não me faltam os inimigos de estimação — que não passam disso mesmo, porque não têm talento para mais. Acontece é que um desempregado deve usar a enxada que tem à mão para se defender das vicissitudes da vida. Mal de mim senão tivesse ganho os prémios que ganhei nestes últimos meses: não estaria no limiar da miséria, mas no seu centro geográfico, sem outra solução do que morrer à fome. No caso, sou como os dois milhões de portugueses a quem, com muita humildade, presto a minha reverência, com lágrimas nos olhos.
Que importância é que estas distinções acabam por ter na sua actividade poética? São um incentivo? Abrem portas? Aceleram o processo de publicação?
Eu mesmo me incentivo à criação, esse paradoxo salvífico, de que muito me orgulho porque é fruto do meu trabalho e da minha teimosia. Quanto a saber se as portas se abrem, penso que a questão é demasiado redutora. A questão é saber se, neste país, aqui e agora, há portas — e a que abismos de fome e desencanto elas vão dar. E se há pachorra para sequer delas nos querermos aproximar, tendo em vista a indigência mental que vai nos corredores e as práticas fascistas da democracia vigente. Logo se verá a questão da publicação — e em que termos. Publicar livros em Portugal é outro enxovalho a que os autores podem estar sujeitos senão estiverem atentos e crispados. Já não falo do roubo sistemático dos direitos de autor, que raramente são pagos (há, é claro, as excepções honrosas), mais a mais tratando-se de poesia, mas da falta de consideração pelo resultado de um trabalho aturado e efectivo, que duas penadas de um qualquer plumitivo de serviço pode condenar às calendas do ostracismo ou da condenação soez, tão do agrado da mesquinha gente. E nem sequer falo por mim, que até nem me posso queixar de alguma fortuna crítica, mas pelo que se vê, se se olhar com atenção e cuidada vigilância. Ponha-se nisto mais a tendência para o assassinato dos que, com talento e trabalho, dão voz, testemunho e defesa da nossa cultura e está tudo, mais ou menos, dito.
Se lhe pedisse para escolher um poema central de Sobre as Imagens, qual seria?
Um poema central de Sobre as Imagens? É difícil escolher, porque, como se sabe, um autor está sempre apegado aos seus pertences, como o musgo à pedra — e magoam-lhe as escolhas. Mas pronto, a ter de destacar um, destaco Descida da Cruz.
Em 2007, editou Antecedentes Criminais (Quasi), uma “antologia pessoal” da sua obra publicada desde 1982. De que modo é que os novos livros se aproximam e afastam desse corpus?
Os novos livros são uma parte do meu ’sistema’ poético, que só se completará quando eu morrer — ou se deixasse de escrever, coisa que, nem por sombras, está no meu horizonte de curto, médio ou longo prazo. Se deixasse de escrever, mesmo entendendo a escrita como coisa tão compulsiva a que não me é possível escapar jamais, estaria a vedar a mim mesmo toda a capacidade de respiração, toda a minha aptidão para resistir, na luta quotidiana. É certo que escrever é um suicídio permanente, que, a prazo, terá consequências inultrapassáveis. Mas aqui, digamos, para sintetizar, que o que faço tem o estigma das rectas paralelas, que, como se sabe, acabam sempre por se encontrar no infinito, que nada mais é que um dos outros nomes que tem o esquecimento. |
Amadeu Baptista nasceu no Porto, a 6 de Maio de 1953.
Obras publicadas, poesia:
As Passagens Secretas. Coimbra, Fenda Edições, 1982
Green Man & French Horn (in A Jovem Poesia Portuguesa/2, em col.), Porto, Limiar, 1985
Maçã [Prémio José Silvério de Andrade – Foz Côa Cultural, 1985], prefácio de Maria da Glória Padrão, Porto, Limiar, 1986
Kefiah, prefácio de Floriano Martins, Viana do Castelo, Centro Cultural do Alto Minho, 1988
O Sossego da Luz, Porto, Limiar, 1989
Desenho de Luzes (edição galaico-portuguesa), Corunha, Amigos de Azertyuiop, 1997
Arte do Regresso (pelo primeiro capítulo deste livro, Cúmplices, recebeu o Prémio Pedro Mir, na categoria de Língua Portuguesa, promovido pela revista Plural, da Cidade do México, em 1993), Porto, Campo das Letras, 1999
As Tentações, Santarém, Edição “O Mirante”, 1999
A Sombra Iluminada (in Douro: Um Percurso de Segredos, em col.), S/l, Instituto Navegabilidade do Douro e Campo das Letras, 2000
A Noite Ismaelita, Guimarães, Pedra Formosa, 2000
A Construção de Nínive, Porto, Edições Mortas, 2001
Paixão (Prémio Vítor Matos e Sá, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2001 e Prémio Teixeira de Pascoaes, 2004), Porto, Afrontamento, 2003
Sal Negro (in Sal Negro Sal Branco) Almada, Íman Edições, 2003
O Som do Vermelho – tríptico poético sobre pintura de Rogério Ribeiro, Porto, Campo das Letras, 2003
O Claro Interior [Prémio de Poesia e Ficção de Almada – 2000/poesia], Almada, Íman Edições, 2004
Salmo, Porto, ASA, 2004
Negrume, Lisboa, Edições & Etc, 2006
Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982 – 2007), V. N. de Famalicão, 2007
O Bosque Cintilante, [Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama– 2007], V. Nogueira de Azeitão, Edição das Juntas de Freguesia de S. Lourenço e de S. Simão, 2007 (fora do mercado)
Organização de antologias:
Quanta Terra!!! - Poesia e Prosa Brasileira Contemporânea, 2001;
Álbum de Acenos – Antologia de Poesia e Fotografia, 2001.
Poesia Digital – 7 poetas dos anos 80, em col. Com José-Emílio Nelson, prefácio de Luís Adriano Carlos, Porto, 2003
Colaboração dispersa em jornais, revistas, livros colectivos e antologias nos seguintes países: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, E.U. A., Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, México, Portugal, Roménia e Uruguai.
Poemas seus foram traduzidos para castelhano, catalão, francês, italiano, inglês, romeno, neerlandês e hebraico. |