Raras vezes me franquearam a porta
e me deixaram entrar. A febre
sitia-me a alma e quem me vê
assusta-se do aspecto do meu rosto,
esta barba por fazer onde um rouxinol
se esconde. E mais ainda assusta
a minha altura, este lugar de vertigem
e palavras poderosas, a presença
de ilimitados segredos que ninguém quer conhecer,
o estremecimento que corre nos meus ombros.
Embora nada peça, sabem que sou um pedinte.
E quando entro nas casas os meus gestos
afeiçoam-se a alguma coisa enigmática
que contorna o pavor e o entrega
por não se saber que espécie de vida ou de morte
vem comigo. Obviamente, eu abençoo
quem me deixa entrar, dou a entender
que alguma coisa brilha nas minhas mãos
e posso matar a fome com uma ou outra palavra
próxima do amor, um dedo nos cabelos
de quem me recebe. Subi as escadas que vão dar a esta casa
em silêncio e em silêncio aceitei que me aguardassem
com as inefáveis sombras que vejo nos outros
e tento decifrar para meu contentamento.
Mandaram-me sentar e deram-me de beber.
Esse álcool reconfortou-me a alma.
E a minha gratidão expressa-se deste modo, limpo
e nítido, observando a mulher nesse sem fim
das coisas, onde todos os mistérios avançam
para uma explicação que a qualquer momento
pode irromper do espírito como uma explosão.
Olho-te nos olhos e recebo as duas moedas
que me ofereces, o teu rosto é-me familiar
se recuar à infância e subitamente perceber
que também pertenci ao exercício desta árvore
que nesta sala se levanta. Em frente,
na fotografia que o meu olhar alcança
porque me alcança o olhar que dela se desprende,
inscreve-se o enigma que me fez aqui chegar,
mais que um rumor ou um fio ténue
com o nome de todas as coisas inesperadas
que me aconteceram na vida, sempre
que me franquearam a porta e deixaram entrar.
Agora, com a memória de ter estado em tua casa
e ter recebido a graça de alguma atenção,
eu, que sou pedinte embora nada peça,
entrego-te este sulco da desordem
sobre a página em branco e agradeço-te
com o conhecimento de um outro mundo
ainda mais inexplicável.
Não tendo havido despedida, sabe que permaneço
e na encruzilhada das dores que me couberam viver
não esquecerei o teu nome no dia em que também tiver partido
e mais nenhuma luz houver além daquela
que ilumina o teu rosto na solidão da noite.
Os anjos esperam-me. Não me é possível demorar.
Que me seja a alba a tua tolerância.
de Desenho de Luzes, 1997
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Amadeu Baptista nasceu no Porto, a 6 de Maio de 1953.
Obras publicadas, poesia:
As Passagens Secretas. Coimbra, Fenda Edições, 1982
Green Man & French Horn (in A Jovem Poesia Portuguesa/2, em col.), Porto, Limiar, 1985
Maçã [Prémio José Silvério de Andrade – Foz Côa Cultural, 1985], prefácio de Maria da Glória Padrão, Porto, Limiar, 1986
Kefiah, prefácio de Floriano Martins, Viana do Castelo, Centro Cultural do Alto Minho, 1988
O Sossego da Luz, Porto, Limiar, 1989
Desenho de Luzes (edição galaico-portuguesa), Corunha, Amigos de Azertyuiop, 1997
Arte do Regresso (pelo primeiro capítulo deste livro, Cúmplices, recebeu o Prémio Pedro Mir, na categoria de Língua Portuguesa, promovido pela revista Plural, da Cidade do México, em 1993), Porto, Campo das Letras, 1999
As Tentações, Santarém, Edição “O Mirante”, 1999
A Sombra Iluminada (in Douro: Um Percurso de Segredos, em col.), S/l, Instituto Navegabilidade do Douro e Campo das Letras, 2000
A Noite Ismaelita, Guimarães, Pedra Formosa, 2000
A Construção de Nínive, Porto, Edições Mortas, 2001
Paixão (Prémio Vítor Matos e Sá, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2001 e Prémio Teixeira de Pascoaes, 2004), Porto, Afrontamento, 2003
Sal Negro (in Sal Negro Sal Branco) Almada, Íman Edições, 2003
O Som do Vermelho – tríptico poético sobre pintura de Rogério Ribeiro, Porto, Campo das Letras, 2003
O Claro Interior [Prémio de Poesia e Ficção de Almada – 2000/poesia], Almada, Íman Edições, 2004
Salmo, Porto, ASA, 2004
Negrume, Lisboa, Edições & Etc, 2006
Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982 – 2007), V. N. de Famalicão, 2007
O Bosque Cintilante, [Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama– 2007], V. Nogueira de Azeitão, Edição das Juntas de Freguesia de S. Lourenço e de S. Simão, 2007 (fora do mercado)
Organização de antologias:
Quanta Terra!!! - Poesia e Prosa Brasileira Contemporânea, 2001;
Álbum de Acenos – Antologia de Poesia e Fotografia, 2001.
Poesia Digital – 7 poetas dos anos 80, em col. Com José-Emílio Nelson, prefácio de Luís Adriano Carlos, Porto, 2003
Colaboração dispersa em jornais, revistas, livros colectivos e antologias nos seguintes países: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, E.U. A., Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, México, Portugal, Roménia e Uruguai.
Poemas seus foram traduzidos para castelhano, catalão, francês, italiano, inglês, romeno, neerlandês e hebraico. |