Este homem procura as cores mais secas do nosso entendimento;
vai connosco até à rua; responde-nos
um cigarro primeiro, uma construção na areia, depois um ferro
a espetar nas dunas e no mar
enquanto o mar houver e a paz durar;
come connosco à nossa própria mesa; ama a nossa mulher
e experimenta o odor da nossa casa aonde os nossos filhos
lhe entram pelos joelhos, o cobrem de carícias, lhe atiram
a satisfeitíssima bola de brincarmos aos adultos quando é tarde
ou os dias apresentam um cariz de pouca chuva.
Divide o nosso frango, a frugal fruta, as sobras do almoço
e sai-nos portas dentro quando o pôr-do-sol, a solução do sol, o sol
das terras de portugal e das noites de madrid
dialoga connosco, connosco estabelece a nítida fronteira
entre aeroportos, casas - oh as casas - e a mulher que,
podendo ser a de um estivador, do camisola amarela, desse
irreverente basquetebolista que por um grande azar não é das nossas relações,
foi, é, será sempre a mulher
encontrada e perdida na poeira, nas arcas, nas infâncias multicoloridas
que parcimoniosamente nos excedem.
Procura, sim, procura as cores do nosso entendimento;
bebe do nosso vinho; vai à missa connosco; veste-nos
a pele de lobos esfaimados nesta selva de ratos onde os ratos
se confundem com navalhas, intelectuais empalhados, inquiridores
por conta d'outrem (e própria), só para que o amor
um pouco sobreviva, exíguo e tenso; ri
às bandeiras despregadas como só um menino, como só
alguém que sabe da poda pode rir
enquanto os táxis, o choro, as dores de consciência
– que afinal não há, embora os cais... – atravessam o meio-dia, desesperadamente.
Ah, este homem procura as cores mais secas
do nosso entendimento; limpa-se
às nossas toalhas; chega
ao extremo de utilizar a escova privada da nossa privadíssima higiene; rompe
os nossos sapatos (meias inclusive); joga
à pancada connosco, ao eixo; e rouba-nos a carteira
como só quem sabe sorrir pode roubar-nos, pode
assinar de cruz por nós, solucionar
o problema da nossa talvez habitação
sem prestígio nenhum, ao menos uma praia de consolação em que morrer
com o mesmo à vontade, modéstia e alegria
deste homem que procura,
procura as cores mais secas do nosso entendimento.
de Green Man & French Horn, 1985
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Amadeu Baptista nasceu no Porto, a 6 de Maio de 1953.
Obras publicadas, poesia:
As Passagens Secretas. Coimbra, Fenda Edições, 1982
Green Man & French Horn (in A Jovem Poesia Portuguesa/2, em col.), Porto, Limiar, 1985
Maçã [Prémio José Silvério de Andrade – Foz Côa Cultural, 1985], prefácio de Maria da Glória Padrão, Porto, Limiar, 1986
Kefiah, prefácio de Floriano Martins, Viana do Castelo, Centro Cultural do Alto Minho, 1988
O Sossego da Luz, Porto, Limiar, 1989
Desenho de Luzes (edição galaico-portuguesa), Corunha, Amigos de Azertyuiop, 1997
Arte do Regresso (pelo primeiro capítulo deste livro, Cúmplices, recebeu o Prémio Pedro Mir, na categoria de Língua Portuguesa, promovido pela revista Plural, da Cidade do México, em 1993), Porto, Campo das Letras, 1999
As Tentações, Santarém, Edição “O Mirante”, 1999
A Sombra Iluminada (in Douro: Um Percurso de Segredos, em col.), S/l, Instituto Navegabilidade do Douro e Campo das Letras, 2000
A Noite Ismaelita, Guimarães, Pedra Formosa, 2000
A Construção de Nínive, Porto, Edições Mortas, 2001
Paixão (Prémio Vítor Matos e Sá, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2001 e Prémio Teixeira de Pascoaes, 2004), Porto, Afrontamento, 2003
Sal Negro (in Sal Negro Sal Branco) Almada, Íman Edições, 2003
O Som do Vermelho – tríptico poético sobre pintura de Rogério Ribeiro, Porto, Campo das Letras, 2003
O Claro Interior [Prémio de Poesia e Ficção de Almada – 2000/poesia], Almada, Íman Edições, 2004
Salmo, Porto, ASA, 2004
Negrume, Lisboa, Edições & Etc, 2006
Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982 – 2007), V. N. de Famalicão, 2007
O Bosque Cintilante, [Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama– 2007], V. Nogueira de Azeitão, Edição das Juntas de Freguesia de S. Lourenço e de S. Simão, 2007 (fora do mercado)
Organização de antologias:
Quanta Terra!!! - Poesia e Prosa Brasileira Contemporânea, 2001;
Álbum de Acenos – Antologia de Poesia e Fotografia, 2001.
Poesia Digital – 7 poetas dos anos 80, em col. Com José-Emílio Nelson, prefácio de Luís Adriano Carlos, Porto, 2003
Colaboração dispersa em jornais, revistas, livros colectivos e antologias nos seguintes países: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, E.U. A., Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, México, Portugal, Roménia e Uruguai.
Poemas seus foram traduzidos para castelhano, catalão, francês, italiano, inglês, romeno, neerlandês e hebraico. |