Lembrança de Max Ernst

NICOLAU SAIÃO
Nicolau Saião (Portugal). Poeta, pintor e ensaísta


                       A Cruzeiro Seixas, nos seus límpidos 97 anos de idade

O livro das lendas – homenagem a Max Ernst (ns)

 

MAX ERNST ou a elipse da imaginação

No dia 1 de Abril de 1976 faleceu na sua residência de Paris, com disfarçado regozijo de certos “humanistas”, um pintor de cabelo branco e esvoaçante nascido em 2 de Abril de 1891 perto duma estranha e maravilhosa floresta alemã que tantas vezes seria o enquadramento mágico da sua obra plástica: chamava-se Max Ernst e, se sempre viveu como poucos, soube desaparecer como ele só – com o sonho nos olhos, na boca, no coração.

Dadaísta e libertário, surrealista e perpétuo adversário dos que à Arte e à Vida tentam colar a medalha pútrida do bom-senso irrisório, o grande pintor dissera no princípio da sua carreira que “pouco importa ser entendido ou ignorado, admirado ou desprezado, assobiado ou aplaudido, triunfar ou ficar na sombra”, o que em tradução natural e livre quererá sempre dizer “não ligues importância aos que desejam o teu corpo e a tua voz para enfeitar as cidades e os escaparates da mediocridade pomposa, fica-te pela conquista da Verdade construída por ti, pois nada mais necessitas que a beleza e a bondade verticais e inteiras”.

 Passados que são muitos invernos sobre o falecimento do autor do “Elefante Celebes”, creio que não será descabido debruçarmo-nos um pouco sobre a obra dum artista que, como derradeira e suprema irreverência poética, foi tombar precisamente no denominado “dia das mentiras” – ele que sempre vivera pautado pela autenticidade e a nobreza de não transigir com o falso testemunho dos pintamonos sem talento. É o que se chama, surrealmente, cair na altura própria e só por distracção se poderá ver neste facto nada mais que um coincidência admirável e de assinalar. Seria não ver o carácter deliberado, cósmico, de toda a existência de Ernst, tanto mais que foi ele quem declarou em 1971 que preferia “a harmonia à cronologia”. Somando-se aos milhares de quadros que executou, isto acrescenta um elemento mais ao conhecimento perfeito do que foi a curiosa aventura deste “principe renano” que nunca buscou honrarias e que, como nos disse Jeanine Warnod, tinha “o maior prazer em redescobrir através da sua obra realidades sem identidade e em passear-se num universo que se situa entre o visível e o invisível, revivendo todas as suas introspecções”. A sua pintura, na verdade, é disso prova cabal.

Max Ernst adorava as “surpresas e os mistérios do acaso”. Envolto numa infância propícia e serena, repleta de oráculos e segredos, o futuro pintor armazenava inconscientemente imagens e sonhos que mais tarde iria transpor para a tela e para o papel com todo o vigor do génio. Conta-nos Patrick Waldberg que um dos acontecimentos insólitos que mais o perturbaram foi a morte simultânea, quando contava seis anos, da sua irmã mais velha e de um papagaio, mascote preferida do pequeno Max. Daí em diante nunca mais as figuras tutelares das aves e das crianças abandonariam os seus solilóquios, primeiro, e os seus quadros, depois. “Num país da cor do peito da rola eu pedi o envio de cem mil pombos. Vi-os sair das florestas negras do desejo, das paredes e dos mares sem fim”, escreveu um dia este pintor que era, simultaneamente, filósofo, sociólogo e poeta.

    Autor inspirado de incursões plásticas pelo mundo da imaginação sem peias, deu-se igualmente à escrita, exprimindo-se em textos repletos de singeleza e magia. E impossível, efectivamente, reduzir a temas fixos o universo de Ernst, pois nos seus objectos esculpidos, nas suas colagens, nos desenhos e nos óleos, abundam as imagens e os símbolos mais diversos e perturbadores: o senhor Loplop, a bela Jardineira, o elefante ministro, o conde milhafre, o pássaro flor, o capricórnio rei, enfim, todo o circo mítico duma humanidade torpe e sublime, a liberdade solar e a estrela semi-morta. Magnífica e desenfreada, a planície de Ernst regurgita de amorosos confundidos num abraço enternecedor e desesperado, de luzes enfeitiçadas sobre as pedras do deserto, de lagos, fontes e páteos interiores, moradias e seres de tijolo e carne onde se sentem pulsar e vibrar anseios e solidões. Um quadro de Ernst é sempre um acervo rico e complexo de elementos donde brota quer a funcionalidade mais saudável, quer o grito mais assustador.

Os “jardins traga-aviões”, os “diamantes conjugais”, as “cidades sonhadoras” que minuciosamente construía na tela mediante o cuidadoso fulgurar das tintas, têm excelente contraponto nas paisagens e retratos fantástico executados através da “esfregadela” e da “raspagem”, métodos picturais e de viagem mental que inventou e que, mais tarde, outros artistas levariam por outros caminhos de descoberta. “Num chuvoso dia de 1919 – conta-nos o pintor – numa cidade do Reno, as páginas dum catálogo impresso provocaram o meu olhar excitado. Os anúncios ilustravam objectos relacionados com pesquisas antropológicas, microscópicas, psicológicas, mineralógicas e paleontológicas. Descobri aí uma sucessão alucinatória de imagens contraditórias, duplas, triplas, múltiplas, sobrepondo-se umas em cima das outras com persistência e rapidez características de memórias amorosas e visões de sonolência…Basta juntar às ilustrações uma cor, uma linha, uma paisagem estranha aos objectos representados, por um simples desenho ou pintura…Estas mudanças transformam as páginas banais de anúncios em dramas que revelam os meus mais secretos desejos”(1936).

Pioneiro do surrealismo, membro fundador do movimento Dada, “essa máquina belíssima que não cortava os calos nem tirava o chapéu a ninguém”, representante de vulto da moderna arte fantástica, Max Ernst situa-se na confluência de dois mundos, aquele que parte do “desabar definitivo de uma maneira de viver e de pensar” e o que se edifica nos altiplanos  da originalidade  e da aventura de viver.  A obra de Ernst, intensamente poética e misteriosa, possui uma altíssima qualidade técnica que nada, evidentemente, tem a ver com a “perfeição” a custo perseguida, mas sim com o ultrapassar incessante das barreiras do hábito, da rotina e do consciente. Grande navegador dos mares profundos do inconsciente humano e dos mitos ancestrais, ele descobria os “mecanismos secretos da Natureza” sem tentar ordenar mecanicamente os arbustos do seu bosque mental. No universo de Ernst não se encontra o gracejo superficial, a fantasia de pacotilha, o maravilhoso de bazar como é próprio de imitadores pretensamente habilidosos mas vazios de interioridade. Nele tudo é austeridade criadora e justa inquietação, riso e sensualidade, mistério e multiplicação dos signos que forjam mundos milenários. Ali residem os ferreiros-dos-sonhos, os totens e as máscaras da Oceânia, a revolução da noite e do amor, os segredos temidos e desejados das meninas expulsas dos Carmelos, as cartas e os mapas da rota amaldiçoada ou bendita, a serenidade dum local como a vila debaixo duma Lua imensa, pintada em 1937, em que o anil do céu longínquo se casa oniricamente com o avermelhado nocturno dos muros devastados, com o azul distante dos palácios petrificados.

 As portas insuspeitadas abriram-se e permaneceram sempre escancaradas para este pesquisador de universos singulares. Viajante do meio-dia e da meia-noite, habitante dos abismos e do paraíso, homem do rio “fabuloso e fértil” e da “selva obscura” transfigurada pelas súbitas luzes, com a mão operosa e o rosto aflorado pelo vento doce das Pleiades, assim foi este pintor onde a poesia residiu, homem e aedo, artista descobrindo as moradas solenes e conquistador de todos os Pássaros-Rosa, de todas as Ninfas-Echo de que o Tempo pode fazer mercê.

E dele assim se deu, aqui, notícia emocionada – para que constado fique.

                                                                                                 ns