CUNHA DE LEIRADELLA - SÍNDROME DA IGUALDADE COMPARADA |
|
|
|
O carro dobrou a esquina, devagar. Era um carro grande, de quatro portas, e o homem olhava a rua atentamente. - Deve ser por aqui. Eu só vim aqui uma vez, com Valdo, mas você sabe como é a minha memória. Não falha nunca. De repente, sorriu e deu uma palmada no volante, e apontou um letreiro luminoso. - Eu não falei? Freou o carro e recostou-se no assento. - Viu? Eu sabia. Eu nunca esqueço um lugar. E olha que só vim aqui uma vez. A mulher não respondeu e o homem olhou os carros estacionados ao longo do meio-fio. - O que dana é isto. O governo fala, fala, mas fazer, que é bom, nada. Apontou a fila, estendida até depois do cruzamento. - Sabe o que é que eu fazia, se fosse prefeito desta porcaria de cidade? Mandava rebocar todo mundo. Fez uma pausa e apontou a porta do restaurante. - Mas você vai gostar, você vai ver. Valdo diz que é um dos melhores restaurantes que tem por aí. Um casal chegou junto da porta e um garçom veio recebê-lo. O homem apontou o casal, conversando com o garçom. - Será que era preciso fazer reserva? A mulher não respondeu. O casal entrou, seguido do garçom, e o homem engrenou a marcha do carro. - É melhor você entrar. Mas escolhe uma boa mesa, viu? Se for preciso, fala com o maître. Valdo diz que... A mulher saiu do carro sem responder. Entrou no restaurante e nem esperou o garçom acompanhá-la. Sentou na primeira mesa vaga e acendeu um cigarro, e dispensou o garçom com um gesto. Pouco depois o homem entrou, sorrindo, e sentou-se. - Eu não falei? Uma cervejinha e ó, o guarda só faltou cair de quatro. Logo, logo, apareceu uma vaga. Ô paizinho corrupto. Recostou-se na cadeira e olhou o salão. - Mesa ótima. Precisou falar com o maître? A mulher não respondeu e o homem ajeitou-se na cadeira. - Já pediu? A mulher continuou sem responder e o homem abriu o guardanapo e colocou-o em cima dos joelhos. - Podia ter pedido. - Prefiro que você peça. O homem chamou um garçom. O garçom aproximou-se e colocou dois cardápios em cima da mesa. A mulher continuou fumando e o homem leu o cardápio atentamente. - Valdo diz que o peixe daqui é ótimo. A mulher não respondeu e o garçom inclinou-se, sorrindo. - Ótima escolha, senhor. O nosso peixe à brasileira... - Como está o camarão? Eu vim aqui recomendado por um cliente antigo de vocês. O Dr. Valdo Menezes. - Conheço muito o Dr. Valdo, senhor. O nosso camarão... - E a lagosta? O Dr. Valdo... - Todas as nossas lagostas são importadas, senhor. O homem sorriu, satisfeito, e entregou o cardápio ao garçom. - Ótimo. Traz uma das grandes, bem caprichada. - Thermidor, senhor? O homem olhou a mulher. A mulher continuou imóvel, olhando a ponta fumegante do cigarro. O homem olhou o garçom e acenou com a cabeça. - Pode ser. A mulher fez um sinal ao garçom. - Pra mim, filé com legumes. O homem olhou a mulher. - Mas eu pedi... A mulher esmagou o cigarro no cinzeiro e continuou falando com o garçom. - Na chapa, bem mal passado. O garçom anotou o pedido e pegou o cardápio da mulher. - Bebida, senhor? - Diz o Dr. Valdo que vocês têm uns vinhos alemães muito bons. - Auslese, senhor? - Pode ser. Mas bem gelado. Com este calor... O garçom afastou-se e o homem ajeitou-se na cadeira e olhou o salão. - Até que Valdo tem razão. É um senhor restaurante, realmente. A mulher não respondeu e o homem recostou-se na cadeira e meteu os polegares nos bolsos do colete. - Encontrar isto aqui, depois de tanto tempo, já valeu a pena. Fez uma pausa e olhou a mulher. - Você não acha que valeu a pena? A mulher não respondeu e o homem voltou a olhar o salão. Passado algum tempo a mulher acendeu um cigarro. - Que filme vamos ver hoje? O homem, ainda olhando o salão, não respondeu. A mulher puxou uma tragada e repetiu a pergunta. - Que filme vamos ver hoje? - Que filme nós vamos ver? Um que está passando naquele shopping novo. Mas por que é que você perguntou? A mulher riu. - Quando a gente janta fora não é dia de cinema? - Valdo diz que o filme é ótimo. É sobre um menino que se perdeu... - Durante a guerra e, depois, soube que os pais tinham morrido. O homem olhou a mulher, espantado. - Como é que você sabe? Você não viu o filme. - Vi o anúncio na televisão. - Valdo diz que a fotografia é lindíssima. Fez uma pausa e acenou com a cabeça. - Você vai gostar, você vai ver. Calaram-se. O homem recostou-se na cadeira e olhou o salão e a mulher ficou imóvel, fumando. - Lúcia vai deixar Valdo. O homem voltou-se, num gesto brusco, e olhou a mulher, espantado. - Lúcia vai o quê? - Vai deixar Valdo. - Lúcia vai deixar Valdo? E como é que Lúcia vai deixar... A mulher riu. - Deixando, ora. - Mas isso é um absurdo. É um absurdo e você sabe que é um absurdo. Lúcia não pode deixar Valdo. Principalmente, assim de repente, sem avisar. - Lúcia diz que Valdo também acha. - Mas é claro que Valdo tem que achar. Casamento é casamento. Uma coisa muito séria. A mulher não respondeu e o homem recostou-se na cadeira. - Mas como é que você soube? Ainda ontem Valdo esteve lá no banco e não me disse nada. Disse, sim, que tinha dado um carro novo para Lúcia, de presente. A mulher puxou uma tragada profunda e bateu a cinza do cigarro no cinzeiro. - Lúcia só falou com ele hoje. - Mesmo depois do presente? A mulher riu. - Vai ver, Lúcia não gostou. - Como não gostou? Carro novo é carro novo. Você sabe muito bem que carro novo é carro novo. Calou-se e ajeitou-se na cadeira, e passou o guardanapo no rosto. - Lúcia não pode deixar Valdo. Você conhece Valdo. Valdo vai ficar abaladíssimo. Fez uma pausa e olhou a mulher durante alguns instantes. - Será que Lúcia está fazendo isso só porque Valdo... Respirou fundo e abanou a cabeça com força. - Mas não é possível que Lúcia não entenda. Aquela menina, para Valdo, é apenas distração, todo mundo sabe disso. Valdo jamais faria fosse o que fosse, que pudesse prejudicar Lúcia e as crianças. Não viu o presente do carro? Valdo tem o maior respeito por Lúcia e Lúcia sabe disso. Aquela menina é, apenas, uma distração, todo mundo sabe disso. - Lúcia já decidiu. - Mas decidiu como? Como é que Lúcia pode ter decidido, se Valdo nem sabia? E, além do mais, se Lúcia fizer isso, como é que fica a carreira de Valdo? Você sabe que Valdo foi promovido agora e o menor escândalo... Fez uma pausa e passou o guardanapo no rosto. - Será que Lúcia está fazendo isso só para obrigar Valdo a voltar para o Rio? - Lúcia quer voltar pro Rio, mas sozinha. - E perder tudo que tem aqui? Você sabe quanto custa, hoje, um carro zero, igual ao que Valdo deu a Lúcia? Custa uma fortuna. Mais de cinqüenta mil dólares. A mulher não respondeu e o homem debruçou-se sobre a mesa. - Será que Lúcia está doente? Vai ver, de repente... Fez uma pausa e recostou-se na cadeira. - Quem sabe, às vezes, um bom médico não resolve? Tem médicos aí, você sabe muito bem, você mesma já consultou alguns e com ótimos resultados, que, eu tenho certeza, podem resolver o problema. O importante, é não deixar que Lúcia cometa uma loucura, concorda comigo? A mulher não respondeu. Puxou uma tragada profunda e esmagou o cigarro no cinzeiro, e olhou o homem durante algum tempo. - Quê que você faria se eu fosse Lúcia? O homem olhou a mulher, boquiaberto. - Se você, o quê? - Se eu fosse Lúcia. O homem não respondeu. Ajeitou-se na cadeira e olhou a mulher fixamente. - O que é que eu faria se você fosse Lúcia? Foi isso que você perguntou? A mulher não respondeu e o homem continuou olhando para ela. Ficou assim algum tempo e, de repente, deu uma gargalhada. - Mas é claro que eu não faria nada. E não faria nada, porque você não é uma mulher igual a Lúcia. Fez uma pausa e voltou a olhar a mulher. - Você é uma mulher igual a Lúcia? A mulher não respondeu e o homem deu outra gargalhada. - Claro que você não é uma mulher igual a Lúcia. Você sabe que eu nunca me casaria com uma mulher igual a Lúcia. A mulher baixou a cabeça e olhou a toalha da mesa. - É. Você tá certo. Realmente, eu não sou uma mulher igual a Lúcia. O homem riu. - Claro que você não é uma mulher igual a Lúcia. Você é você, e você sabe muito bem quem você é. Calou-se e recostou-se na cadeira e meteu os polegares nos bolsos do colete. - Ou não sabe? A mulher não respondeu. Acendeu um cigarro e puxou uma tragada profunda e o homem olhou para ela e sorriu. - Sabe o que é que nós estamos precisando? Numa noite como esta e depois de uma notícia igual a essa? Chamou o garçom e cancelou o vinho, e pediu uma garrafa de champanhe. |
|