AS PULGAS Cunha de Leiradella 13-12-2004 www.triplov.org |
MONSIEUR Pontualíssimo. LEMOS Obrigado, Monsieur. MADEMOISELLE Alberto, pontualíssimo é o nosso relógio. Você é só pontual. MONSIEUR (Guardando o relógio) Mas o senhor se chama mesmo... LEMOS Lemos, Monsieur. Alberto Lemos da Silva. MONSIEUR Pois, senhor Silva... MADAME Silva, Lemos. MONSIEUR Pois senhor Silva Lemos... MADAME Lemos, Silva. MONSIEUR Pois senhor Lemos Silva... MADAME Porra, Silva! MONSIEUR Pois senhor Porra Silva... MADAME Desculpe, ó Monsieur, mas é outra emergência! (A Monsieur) Silva! O Monsieur é Lemos. Silva somos nós, merda! MONSIEUR Ah, sim, sim. Silva somos nós, é claro. Mas como eu estava dizendo, senhor Porra... MADAME Silva! Lemos! Lemos, entendeu? MONSIEUR Claro que entendi, Ifigênia. Lemos, Lemos. MADEMOISELLE Lemos, papai. Só Lemos. MONSIEUR Só Le... MADAME No singular, Silva! MONSIEUR Ah, no singular! (A Lemos.) Lemos. Claro, claro. Conheço muito. Aliás, no plural, conheço muitos Lemos. MADAME O Monsieur é o convidado de Ana Maria, Silva. MONSIEUR Ah, o senhor é que o convidado? Ótimo. Ótimo. Convidados são sempre ótimos. Mas, como eu estava dizendo... Ifigênia, o que era mesmo que eu estava dizendo, hem? MADAME Você estava falando, Silva. MONSIEUR Ah, sim! Eu estava falando. Pois como eu estava falando... Mas eu estava falando o quê, Ifigênia? MADEMOISELLE Da pontualidade, papai. MONSIEUR Ah, sim. Da pontualidade. Pois como eu dizia, os homens pontuais chegam sempre a tempo e pagam sempre as suas dívidas. LEMOS Principalmente as dívidas, Monsieur. MONSIEUR Sim, sim. Claro. Principalmente, as dívidas. Mas, como eu estava dizendo, lorde Nelson, por exemplo, sempre foi um homem pontualíssimo. Tão pontual que... MADEMOISELLE Alberto, lorde Nelson... MADAME Ana Maria, tenha modos! Seu pai está falando. E, além do mais, o Monsieur conhece Londres. Continue, Silva. MADEMOISELLE Ah, conhece, Alberto? Que bom! MADAME Ana Maria! Continue, Silva. MONSIEUR Ah, o senhor conhece Londres? Pois é um belo hábito, um belíssimo hábito, sim, senhor. Conhecer Londres é um belíssimo hábito, não há dúvida. Pessoalmente, eu admiro muito Londres. Londres, o Tâmisa de Londres, a Torre de Londres... Por falar na Torre de Londres, o senhor sabe se ela foi mudada? LEMOS Eu... MONSIEUR Eu também. Eu também. Mas Ifigênia acha que foi. MADAME Silva. MONSIEUR Quer dizer, certeza, certeza mesmo, ela não tem. Mas o senhor sabe... MADAME Silva! Você estava falando de lorde Nelson. MONSIEUR Ah, sim. lorde Nelson. Como eu estava dizendo, lorde Nelson é uma pessoa que eu admiro muito. Muito mesmo. O monumento então!... LEMOS Grandioso, Monsieur. MONSIEUR Grandioso? LEMOS Monumental, Monsieur. Um verdadeiro monumento! MONSIEUR Estou vendo que o senhor também é um apreciador. Um verdadeiro apreciador, pode-se até dizer. Mas, como eu estava dizendo, eu acho aquele monumento de uma dignidade... Aliás, por falar em dignidade, deixe-me que lhe diga, dignidade é coisa que nós não temos. Nunca tivemos. Basta ver os nossos monumentos. O senhor já viu o Tiradentes? Aquela corda no pescoço... O que é que o senhor acha daquela corda, o senhor que entende disso, hem? LEMOS Eu... MONSIEUR Eu também. Eu também. E é por isso que eu sempre digo: com monumentos assim, não admira que o Brasil seja o que é. LEMOS Na verdade... MONSIEUR Exatamente. Na verdade, o senhor faz muito bem em viajar. MADEMOISELLE Papai... LEMOS Eu... MONSIEUR Eu também. Eu também. E lhe digo mais. Pessoalmente, eu acho as viagens... MADEMOISELLE Papai! MONSIEUR É verdade, minha filha. Pessoalmente... MADEMOISELLE Papai... MONSIEUR Sim, minha filha. MADEMOISELLE O Alberto gostaria de ver a nossa biblioteca. Não é, mamãe? MONSIEUR Ah, o senhor gostaria? Ver bibliotecas é um belo hábito. Um belíssimo hábito, não há dúvida. Eu próprio, no meu tempo, li consideravelmente. Consideravelmente mesmo. MADAME Meu marido, antes de viajar, lia muito, ó Monsieur. MONSIEUR Ah, muito! E mesmo durante as viagens também li muito. Eu sempre viajei muito. LEMOS Eu também leio alguma coisa. Não tanto como o senhor, assim consideravelmente, mas... MONSIEUR Ah, mens sana in corpore sano! MADEMOISELLE Mente sã em corpo são, Alberto. MADAME Ana Maria, tenha modos! O Monsieur faz malhação. MADAME Ah, faz, Alberto? Que bom! LEMOS Eu... MONSIEUR Eu também. Eu também. O senhor sabe que eu admiro demais o latim? E sabe por quê? Por causa daquelas frases lapidares. Em que outra língua, por exemplo, se poderia dizer vae victis, ai dos vencidos, hem? Diga. Diga. Vamos, diga. Não se acanhe. Diga. Eu sei que o senhor entende disso. LEMOS Realmente, o latim, Monsieur... MONSIEUR Ah, mas aí é que está. Os antigos não inventaram só frases lapidares. Inventaram também coisas muito mais que lapidares. Por exemplo, hoje qualquer um ganha uma Olimpíada. Antigamente, não. Antigamente, só os antigos ganhavam olimpíadas. Homens extraordinários, aqueles antigos. É uma pena que não existam mais antigos para ensinar as novas gerações. LEMOS Realmente, Solon, Alexandre, Platão... MONSIEUR Eu não falei, Ifigênia? (A Lemos.) O senhor é professor? LEMOS Eu... MONSIEUR Eu também. Eu também. Mas diga. Diga. Não se acanhe. Nós estamos em família. Eu não sou um professor como o senhor, mas... LEMOS Mas eu não... MONSIEUR Mas é claro que não. E eu também não. Eu sou banqueiro, mas admiro muito os professores. MADAME Silva. As viagens... MONSIEUR Sim, sim, claro. E as viagens também. (A Lemos.) Eu, pessoalmente, viajei muito. Ah, viajei! De Miami a Paris, pode-se dizer que conheço a Europa toda. MADAME Silva. MONSIEUR Então não conhecemos, Ifigênia? Aliás, é você que sempre diz isso. MADEMOISELLE Papai, o Alberto gostaria de ver a nossa biblioteca. Não é, mamãe? MONSIEUR Ah, o senhor também admira bibliotecas? Pois é um belo hábito, sim, senhor. Um belíssimo hábito, não há dúvida. E deixe que lhe diga, professor... LEMOS Mas eu não sou professor, Monsieur. MONSIEUR Pois eu pensei que fosse. Assim falador... LEMOS Eu... MONSIEUR Eu também. Eu também. E antes que o senhor me desminta, eu quero lhe dizer uma coisa. Aliás, talvez o senhor não saiba, mas isto é um velho hábito de um velho liberal. Não sou um professor como o senhor, claro, mas aprecio muito os livros. Pessoalmente, considero as bibliotecas indispensáveis. Tão indispensáveis que, para o senhor fazer uma idéia, até lá no banco eu tenho uma. Pequena, uns dois metros, dois metros e meio. Aliás, a daqui de casa também não é das maiores. Uns trinta metros, trinta e dois. Por aí. MADAME Que mania a sua, Silva! A nossa biblioteca é das maiores! (A Lemos.) E não sou só eu que digo, ó Monsieur. Os Souza, sempre que vêm aqui... MONSIEUR O senhor conhece os Souza, certamente. LEMOS Eu... MONSIEUR Eu também. Eu também. Gustavo Souza é um perfeito cavalheiro. Carioca, mas um perfeito cavalheiro. Uma das maiores fortunas do Rio de Janeiro. Só a casa de praia... MADEMOISELLE (A Lemos) Fica em Búzios. Não é, mamãe? MADAME Na praia. MONSIEUR Em Búzios ou na praia, é uma das melhores que já vi. Realmente, Gustavo Souza é um perfeito cavalheiro. E também é um apreciador. Talvez o senhor não saiba, mas, para Gustavo Souza e para mim, os livros são como as jóias da coroa. Mesmo que sejam falsos, são sempre verdadeiros. MADAME Os Souza também viajam muito, ó Monsieur. MADEMOISELLE Só não têm mordomo. MONSIEUR Ah, nesse ponto, Gustavo Souza sempre foi um pioneiro. Mas, no resto, é um perfeito cavalheiro, não há dúvida. E temos viajado um pouco, sim. MADAME Silva, lá está você! (A Lemos.) Nós sempre viajamos muito, ó Monsieur. (A Lemos.) E os Souza sempre viajam conosco. MADEMOISELLE É, sim, Alberto. Nunca param em Búzios. Não é, mamãe? MONSIEUR É o único senão de Gustavo Souza. Não parar. Mas quem não tem senões hoje em dia? O senhor, que é professor, aprecia professores. Eu, que sou banqueiro, aprecio livros. É a vida. Mas só de Shakespeare, como estava lhe dizendo, eu tenho mais de três bibliotecas. MADEMOISELLE Nós temos... MADAME Quatro estantes e mais de quinze pacotes embrulhados. MONSIEUR Para o senhor fazer uma idéia, eu tenho Shakespeare, em mais de trinta originais e umas quarenta coleções. LEMOS Uma verdadeira viagem cultu... MONSIEUR Ah, eu sempre viajei muito, sim. De Miami a Paris... MADEMOISELLE Temos mais de mil volumes. Não é, mamãe? MADAME Dois mil e dois. Fora os pacotes do porão. LEMOS Realmente, Monsieur, o senhor aprecia demais... MONSIEUR Ah, eu sou assim. Quando aprecio, ou aprecio ou não aprecio. Aliás, para o senhor fazer uma idéia, só de Shakespeare, eu tenho Shakespeare em inglês, eu tenho Shakespeare em francês, eu tenho Shakespeare em alemão... MADEMOISELLE Trouxemos de Nova Iorque em amarelo. Não foi, mamãe? MADAME Por sinal, um amarelo horrível. MONSIEUR (Continuando, sem dar atenção a Mademoiselle e a Madame) ... eu tenho Shakespeare em espanhol, eu tenho Shakespeare em americano, eu tenho Shakespeare em inglês... MADEMOISELLE Em inglês o senhor já falou, papai. MONSIEUR Ah, já? Mas não importa. Shakespeare é sempre Shakespeare, seja inglês ou espanhol. (A Lemos.) Para o senhor fazer uma idéia, eu ainda tenho Shakespeare em sueco, em italiano... MADEMOISELLE Trouxemos de Zurich em verde. Não foi, mamãe? MADAME Bonito, aquele verde. Mesmo sendo italiano, o verde dos suíços é fantástico. MONSIEUR Isso é verdade. Os suíços são fantásticos. Só os bancos... MADAME Silva, os livros. MONSIEUR Ah, sim. Os livros, claro. Pois, como eu estava dizendo, eu ainda tenho Shakespeare em ecumênico, eu tenho em japonês, eu tenho em australiano, eu tenho em argentino, eu tenho em... Eu tenho em... Para o senhor fazer uma idéia, até em português eu tenho Shakespeare. MADEMOISELLE Esse trouxemos de Paris, em vermelho. Não foi, mamãe? MADAME Presente dos Pereira, quando fomos a Milão. Os Pereira... MONSIEUR O senhor conhece os Pereira, claro. LEMOS Eu... MONSIEUR Eu também. Eu também. Manoel de Pereira é um verdadeiro fidalgo. Só a casa de praia no Estoril... LEMOS Eu conheço uns Pereira... MONSIEUR Ótimo. Ótimo. Conhecer é um belo hábito. Um belíssimo hábito, não há dúvida. LEMOS São até meus vizinhos... MADAME Os nossos Pereira são portugueses, ó Monsieur. LEMOS Madame... MONSIEUR Todos os Pereira têm vizinhos, Ifigênia. MADAME Só que os nossos têm casa de praia no Estoril, Silva. MONSIEUR Realmente, hoje em dia, sem uma casa de praia não há praia. (A Lemos.) O senhor tem, naturalmente. LEMOS Eu... MONSIEUR Eu também. Eu também. Aliás, como eu sempre digo, e ainda agora disse, hoje em dia, sem uma casa de praia não há praia. O relógio bate duas horas. Depois, toca a Ave Maria, de Schubert. |