INÚTEIS COMO OS MORTOS
Cunha de Leiradella
www.triplov.com 16-09-2005

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CENA IV
Quarto de hotel. Eduardo e Nininha. Deitados.
 

EDUARDO

Sabe? Quando eu era menino gostava de ficar só.

 

NININHA (Ao mesmo tempo)

Adoro as suas mãos.

 

EDUARDO (Continuando)

Deitava-me na cama e ficava olhando o teto do quarto.

 

NININHA (Ao mesmo tempo)

Me dá as suas mãos.

 

EDUARDO (Continuando)

E quando os olhos se cansavam, sabe?, o teto começava balançando, balançando, e, pouco a pouco, ia baixando, baixando, até eu lhe poder tocar com um dedo.

 

NININHA (Ao mesmo tempo, pegando as mãos de Eduardo)

Adoro as suas mãos.

 

EDUARDO (Continuando)

Nunca tocava, claro. Mas só a idéia que podia fazê-lo já me deixava feliz. E, às vezes, o teto baixava tanto, que eu falava com ele como se ele fosse meu amigo.

 

NININHA (Ao mesmo tempo)

Eduardo...

 

EDUARDO (Continuando)

Mas me chamavam de menino bobo, sabe? Todos me chamavam de menino bobo. Quando eu tinha dez anos, eu tinha até medo de adormecer à noite, só de pensar que podia acordar no inferno.

 

NININHA (Ao mesmo tempo)

Eduardo...

 

EDUARDO (Continuando)

O inferno, todos me diziam, era o lugar pra onde iam os meninos bobos, que tinham tetos amigos e conversava com eles como se eles fossem gente. Levei anos pra deixar de ter medo do inferno, sabe?

 

NININHA (Tapando a boca de Eduardo com a mão)

Você gosta de mim?

 

EDUARDO

Você sabe que eu gosto.

 

NININHA

Quando vi você naquela tarde, no cinema, a primeira coisa que olhei foi prás suas mãos. Adorei as suas mãos. (Acaricia as mãos de Eduardo.) Quê que você mais gostou em mim, quando me viu, hem?

 

EDUARDO

` De verdade?

 

NININHA

De verdade.

 

EDUARDO

Foi dos seios.

 

NININHA

E se eles não fossem...

 

EDUARDO

Eu não teria gostado de você.

 

NININHA

Não teria gostado mesmo?

 

EDUARDO

Não. Você não gostou das minhas mãos?

 

NININHA

Os seios da sua mulher também são grandes?

 

EDUARDO

Escuta...

 

NININHA

Por quê que você casou com ela, então?

 

EDUARDO

Você também não casou com seu marido?

 

NININHA

Foi diferente. Eu...

 

EDUARDO

É sempre diferente.

 

NININHA

Eu não casei com meu marido por causa dos seios dele, não, Eduardo.

 

EDUARDO

Eu também não casei com minha mulher por causa das mãos dela.

 

Um tempo.

 

NININHA

Me dá a bolsa.

 

Eduardo pega a bolsa em cima da mesa-de-cabeceira e dá-a a Nininha. Nininha acende um cigarro. Eduardo acende o cachimbo. Um tempo.

 

EDUARDO

Sabe? Às vezes, eu fico pensando: e se, naquela tarde, um de nós não tivesse ido àquele cinema? São coisas assim que me fazem pensar no destino. Numa cidade como esta, um dia, dois desconhecidos resolvem ir ao mesmo cinema, na mesma hora, e sentam juntos. Parece até que alguém nos empurrou pra dentro daquele cinema, naquela hora. Só pra que as nossas vidas tivessem que mudar. Você não acredita que foi o destino? Hem?

 

NININHA

Você nunca viu as minhas coleções.

 

EDUARDO

Coleções? Que coleções?

 

NININHA

Eu tenho malas e malas cheias de coisas velhas.

 

EDUARDO

E pra quê que você coleciona coisas velhas, hem?

 

NININHA

E pra quê que você pergunta se eu acredito no destino? (Apaga o cigarro.) Mas, ontem, já joguei fora duas malas.

 

EDUARDO (Ao mesmo tempo)

Pra quê?

 

NININHA (Continuando)

E, logo mais, vou jogar as outras todas. Já não preciso mais delas. Agora, já não preciso de mais nada. Se o Wilson entendesse que ele só fez parte da minha coleção porque eu precisava ter alguma coisa... Mas, amanhã, eu digo a ele. Ele quer um filho, sabe? Sempre diz que quer um filho. Vovó também acha que nós devemos ter um filho. Mas eu não posso colecionar filhos como colecionava coisas velhas. (Abraça Eduardo.) Sabe? Hoje, saí de casa tão contente, mas tão contente mesmo, que quase dancei no meio da rua. Você acredita que eu nunca tinha visto as árvores da minha rua?

 

EDUARDO

Eu nem sei se a minha rua tem árvores.

 

APAGA A LUZ